13/05/13



 
Tarde no El Corte Inglês com um pequeno grupo: almoço, conversa, livraria, cinema... Com tanta coisa que tenho para ler, há muito que deixei de me debruçar sobre certas críticas: a de cinema é uma delas. Por vezes vou mesmo ao ponto de testar esta posição: quando os amigos me diziam que a crítica deitava abaixo dado filme da Liliana Cavani, eu já sabia que era obra a ver; quando hoje me anunciam que o filme X de David Lynch é unanimente louvado, percebo logo que é algo a evitar. Não me tenho dado nada mal com este meu método! Tudo isto para dizer que acabámos por ir ver o último do Costa-Gravas: "O Capital". À noite, e para me contradizer, resolvi ir ler as críticas que andam pela net. Deuses, uma indigência que arrepia! Para muitas das oraculares vozes analíticas o cinema de Gravas resume-se a...  ... um imediatismo que retrata o aqui e agora´, muitas vezes, através da parábola e da denúncia. E pronto, têm dito!!! Claro que fico sem saber como entram nesta caracterização dados diálogos; o do duche de Marc Tourneil (Gad Elmaleh) quando a mulher sente repulsa por ter de usar um vestido que acabara de custar 20.000E, aliás, as figuras femininas são neste filme - à excepção da "tonta" Claude!- personagens muito interessantes, são figuras da inconformidade e do conflito ético-moral que nada têm a ver com uma exposição crua do imediato. Outro momento também que escapa ao retratismo presentificado é o diálogo de Marc com o tio durante o almoço em casa dos pais, logo seguido da observação fugaz das crianças brincando com tudo o que é tecnológico - estamos, aqui, em pleno campo da análise simbólica ou até mesmo de cunho psicologizante, sobretudo se observarmos bem o filho de Marc. O próprio fim do filme nada tem de imediatista: é uma hipérbole onde se ridiculariza o sistema financeiro e, entrando mesmo pelo profético adentro, afirma explicitamente que a bolha acabará por rebentar, já que é da própria essência da todas as bolhas a sua implosão. No final do filme, e como corolário, Costa-Gravas não fala do imediato, fala-nos do futuro: o facto de ter optado por um monólogo para a camara (mais um!) e pelo fecho abrupto da acção parece indiciar um certo temor ante o inevitável que parece avizinhar-se. Este filme não é apenas uma denúncia, é também uma premonição com laivos de uma pedagogia derradeira e desesperada.
Excelentes desempenhos de Gad Elmaleh, Llya Kabele e dos veteranos Gabriel Byrne e Hippolyte Girardot..
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12/05/13

 
 
 
Critério de diagnóstico de Perturbação da Personalidade Narcísica
 
  Padrão de grandeza global ( em fantasia ou comportamento), ausência de empatia e hipersensiblidade perante a avaliação dos outros, com início no princípio da idade adulta e presente numa variedade de contextos, como indicado por pelo menos cinco dos seguintes:
 
1. Reage às críticas com sentimentos de raiva, vergonha ou humilhação ( mesmo que não expressos);
2. É explorador nas relações interpessoais: tira vantagens dos outros para atingir os seus fins;
3. Tem um sentimento grandioso de auto-importância: por exemplo, exagera os seus êxitos e talentos, espera ser notado como "especial" sem nada fazer que o justifique:
4. Acredita que os seus problemas são únicos e só podem ser compreendidos por outros indivíduos "especiais";
5. Está preocupado com fantasias de êxito ilimitado, poder, brilhantismo, beleza ou amor ideal;
6. Tem um sentido de que tudo lhe é devido: esperanças irracionais de tratamento favorável especial; por exemplo, entende que não precisa de esperar numa fila como os outros indivíduos;
7. Exige constantemente admiração e atenção; por exemplo, procura ser elogiado;
8. Ausência de empatia: incapacidade para reconhecer e experienciar os sentimentos dos outros; por exemplo, ressentimento e surpresa quando um amigo que está gravemente doente cancela um encontro;
9. Preocupa-se com sentimentos de inveja.
 
  Rodrigues, Vítor Amorim (e Luísa Gonçalves). Patologia da Personalidade: Teoria, Clínica e Terapêutica. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998, p 149.
 
 
(Nota: existe neste blogue uma vasta biografia relacionada com as perturbações da personalidade. Procurar na lista de autores.)
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11/05/13


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Alberto Eiguer, um dos grandes especialistas da perversão narcísica, fala aqui
do seu último livro sobre o tema.
(Nota - apesar de ser patologia da qual não sofro, interessa-me, contudo, bastante
o seu estudo já que conheci muita gente que navegava nestas águas!)
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09/05/13

Dia 11 de Maio, pelas 18h30, na Livraria 100ª Página, em Braga, decorrerá uma Leitura Poética

promovida pelo WORLD POETRY MOVEMENT ( Organização Internacional que promove a

literatura, a paz e a liberdade de expressão), sendo, nesse momento, apresentada a Antologia

Poética Doce Inimiga organizada por Maria do Sameiro Barroso e publicada pela Editora

Labirinto. Os autores que integram essa obra são: ALBANO MARTINS, ALICE MACEDO

CAMPOS, AMOSSE MUCAVELE, ANA PINTO, ANTÓNIO SALVADO, ARTUR COIMBRA,

CARLOS VAZ, CLÁUDIO LIMA, DANIEL GONÇALVES, DELMAR MAIA GONÇALVES,

GISELA RAMOS ROSA, ISABEL MENDES FERREIRA, JOSÉ JORGE LETRIA, JOÃO

RASTEIRO, JORGE VELHOTE, JULIANA MIRANDA, MARIA AZENHA, MARIA AUGUSTA

SILVA, MARIA DO SAMEIRO BARROSO,  MARIA TERESA DIAS FURTADO, RICARDO

GIL SOEIRO, RICARDO MARQUES, PEDRO SABORINO, POMPEU MIGUEL MARTINS,

TERESA RITA LOPES, VICTOR OLIVEIRA MATEUS.
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08/05/13



         "  da coragem  "



Deus, ensina à nossa vida que não há coragem inútil,
que os lugares do impossível se deslocam
quando a confiança toca o chão das coisas
e não é crença ornamental, alegoria

liberta a nossa vida do discurso da resignação
que é o fatalismo,
do derrotismo, que é a filosofia espontânea dos proletários

livra-nos, Senhor, do niilismo passivo, da crença desfeita --
as grandes portas abertas ao fascínio do terror,
livra-nos de tolerar o mundo,
a perversão à escala industrial, a conivência da morte

dá ao nosso corpo a graça das viagens sem bagagens,
sem outro futuro que a coragem,
sem outro combate que a justiça e o direito à diferença

arma os nossos olhos da paciência ardente
e os nossos braços da ternura real,
para acolhermos a aurora do teu Dia
no cruzamento do que em nós se repete e se interrompe,
se desloca e se excede,
e descubramos o esplendor da tua face
de mãos dadas com quantos,
de todos os horizontes te procuram
e te proclamam

santo, justo e imortal


    Mourão, José Augusto. O Nome e a Forma: poesia reunida. Lisboa: Pedra Angular, 2009, pp 27 - 28.
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07/05/13

 
 
Quem poderia reconhecer
depois de tão longa espera
a esteira viva de uma estrela
que se apagou num frémito obscuro
que ritmou as palavras esparsas?
 
Ei-la aqui viva e já morta
a estrela de um gesto de amor
que seria eu sem ti viva ou morta?
 
Eu quero guardá-la na minha boca
como a serpente guarda o veneno
para o gérmen que anuncia o mundo
 
 
  Rosa, António Ramos. Numa folha, leve e livre. Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim Editora, 2013, p 25.
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O meu corpo espera
banhar-se
numa água transparente
a que germina aqui

Avanço com o meu nome
até ao muro
poderei libertar-me
das imagens?

Se escrevo
é para entrar no claro círculo do dia
e ser uma pedra que respira
um núcleo branco


    Rosa, António Ramos. Numa folha, leve e livre. Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim Editora, 2013, p 22.
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06/05/13


Organizada pelo poeta moçambicano Amosse Mucavele a Antologia Poética "A Arqueologia

da Palavra e a Anatomia da Língua", com Prefácio do Prof. Paulo Sebeu de Azevedo

(Universidade Federal do Rio Grande do Sul), inclui diversos autores dos vários países que

têm como língua oficial o português e dos quais mencionamos apenas alguns:

Micheliny Verunschk, Eduardo White, Alberto Estima de Oliveira, Ana Mafalda Leite,

Victor Oliveira Mateus, Donizete Galvão, Luís Carlos Patraquim, Mia Couto,

Maria do Sameiro Barroso, Maria ângela Carrascalão, Jorge Melícias, Dina Salústio,

Cláudio Daniel, João Melo, Conceição Lima, Amosse Mucavele, Maria Teresa Horta,

Affonso Romano de Sant'Anna, Adelino Timóteo, José Inácio Vieira de Melo, Lau Siqueira,

Gisela Ramos Rosa, Aurelino Costa, Ronaldo Cagiano, Vera Duarte, João Maimona,

João Rasteiro, Dinis Muhai...   ...


NOTA: clicando sobre a imagem terá uma lista mais completa dos autores do espaço lusófono
que integram este volume.
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Capa da autoria do pintor cabo-verdiano Mito Elias.
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Nestes últimos tempos é certo a esquerda fez erros
Caiu em desmandos confusões praticou injustiças
 
Mas que diremos da longa tenebrosa e perita
Degradação das coisas que a direita pratica?
 
Que diremos do lixo do seu luxo - de seu
Viscoso gozo da nata da vida - que diremos
De sua feroz ganância e fria possessão?
 
Que diremos de sua sábia e tácita injustiça
Que diremos de seus conluios e negócios
E do utilitário uso dos seus ócios?
 
Que diremos de suas máscaras álibis e pretextos
De suas fintas labirintos e contextos?
 
Nestes últimos tempos é certo a esquerda muita vez
Desfigurou as linhas do seu rosto
 
Mas que diremos da meticulosa eficaz expedita
Degradação da vida que a direita pratica?
 
 
     Andresen, Sophia de Mello Breyner (poema datado de 1977).
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05/05/13

 

                                                                        Sou no que pode o eco, não o lamento.
                                                                        escrita, a ti me entrego, e me possuis
                                                                        no vão das horas, nas máscaras do tempo.

                                                                                  Antonio Carlos Secchin, in Terra


    " Poema 10" do Ciclo Elementos


Nenhuma viagem é mais terrível
do que aquela que é feita ao mais fundo de nós,
a esse impalpável reino onde se acumulam,
e ardem, pedaços do que nunca seremos.
Nenhuma viagem é mais tormentosa,
mais negra, mais cheia de enganos e monstros
do que aquela com que enfeitamos a ruína
do último dia. Perante o irremediável -
as mãos abertas, uma canção estilhaçada
numa boca anónima, o desespero
a refulgir no terraço onde eu há muito
deixei de procurar. É assim toda a viagem:
nem errada nem certa; paisagem a insistir,
fixa, iluminada, de onde minha imagem deserta.


 Mateus, Victor Oliveira. Gente Dois Reinos. Fafe: Editora Labirinto, 2013, p 32 (Prefº de Inocência Mata, Texto da Contracapa de José Ángel García Caballero).
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Gisela Ramos Rosa, Ana Cristina Silva, Maria João Cantinho, Victor Oliveira Mateus
   


     " Poema 3" do Ciclo Elementos


Ao terceiro dia ninguém separou a luz
das trevas. Nenhuma deusa, nenhum demiurgo,
nenhum deus, maior ou menor, decidiu
perfilhar-nos; decidiu recriar as águas,
as aves, as plantas (agora transgénicas),
as cidades (cada vez mais cóio de corruptos),
o sexo (apressada ejaculação por hábito,
por aprendizagem ou no minúsculo extra
que se cria em qualquer intervalo conjugal,
quando o trabalho se distrai ou finge,
mas a engrenagem insiste, por agora
e sempre). Ao terceiro dia nenhum de nós
esboçou o mais pequeno traço
entre um intento etéreo e o fogo do lugar.

O lume, voraz, ecoava nas grelhas, no estralejar
do carvão, e, alheio, emoldurava igualmente o vozear
ácido dos bêbedos, o entrechocar dos copos
à mistura com os meus pensamentos.
Na gordura do balcão os cotovelos do rapaz
do retábulo desenhavam circunferências
concêntricas, assim como tu ali bem perto
e o meu duplo a distanciar-se cada vez mais
através da noite, enfim, tanta gente (ou ninguém)
para me descentrar da porta, de mim próprio,
de uma lealdade indefinível, uma estranha
lealdade que sempre me acrescenta
no vasto rol das cedências feitas e onde eu sabia
(por antecipação) que tu jamais poderias caber.

Ao terceiro dia levei-te ao lugar da minha infância
Uma mulher, reconhecendo-me,
abriu-nos a sua porta, mostrou-se-nos por dentro
com bens e infortúnios. Era uma mulher simples,
como simples eram os dedos que te percorriam
o antebraço, como simples ( e derrotados)
eram os meus olhos: cúmplices de um tempo
que eu ia escondendo na voragem cega
que haveria de chegar... Depois vieram os painéis
de azulejos, também eles sobreviventes
de terramotos; o esboroado chafariz
onde os muares se dessedentaram
e os carroceiros mataram suas frustrações
de uma república que não tinha valido a pena;

a mina, de água salobra, já seca e sem qualquer
uso; as hortas - ainda resistentes -
que nos pusemos a inventariar neste tempo
de aparências e artifício. Ao terceiro dia
misturei memória e imaginação,
percepçãp presente e antiga, concreto
e expectativa e como o meu duplo
relativamente a escritas antigas,
assim forjei palavras e versos
onde se escondessem todos os abismos
que eu não pedira. Mais tarde, muito
mais tarde, acusar-me-ias de inaptidão,
de incapacidades várias e envenenamentos
de uma narrativa há muito condenada;

mais tarde, tu, meu outro no desdobramento
de mim, quando te pedi a não dureza das palavras,
só então percebeste do silêncio a sua fala
mais estreita, essa uterina busca de águas
e grutas inexpugnáveis, essa clareira
onde um colo de raízes se desenha, e, ao cair
da noite, de novo volta para me cobrir
com seu manto de angústia e perdas várias.
- Tu não és daqui!, dizia-me o rapaz
do retábulo, enquanto Erato ajeitava a saia
e olhava de soslaio a porta, dividida agora
entre o crepitar do fogo e um ecrã cego
a derramar sons no olhar vítreo dos bêbedos
que, ausentes, me reconheciam igual e sem futuro.


   Mateus, Victor Oliveira. Gente Dois Reinos. Fafe: Editora Labirinto, 2013, pp 22 - 24 ( Prefº de Inocência Mata, Texto da Contracapa de José Ángel Garcia Caballero).
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02/05/13

Lançamento...

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      "  Poema  60  "


Nascer aqui é falhar ainda
O silêncio das árvores em crescimento,
Nascer aqui é sempre demasiado tarde
Para ir beber à fundura de um poço,
Nascer aqui dói às pedras
Que excederam a altura da casa,
Nascer aqui impede os cães de conduzir
A cegueira dos espelhos desde o olhar até à visão,
Nascer aqui afugenta o invisível para longe da vida,
Nascer aqui é um ruído de fundo
Para dissuadir a hospitalidade do tempo à nossa mesa,
Nascer aqui é demasiado tarde para sermos
perpendiculares
À oferenda mútua dos corpos,
Nascer aqui desfaz a aritmética dos passos sem
caminhante,
Nascer aqui muda-nos a todo o instante de origem e
destino,
Nascer aqui atenta contra o trabalho escultórico
De uma minuciosa nudez dos pensamentos para pôr a
salvo
O vazio de nascer agora e por fim em nenhum lugar.

  Carita, Fernando Eduardo. Le Salut Par le Vide/ A Salvação Pelo Vazio (Édition bilingue). Châtelineau: Editions Le Taillis Pré, 2005, p 132.
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  " Poema  48  "


Nem o centro está no centro
Nem deus está em deus,
Fatais os equívocos, vãs as buscas;
De nada adianta querer agora perseguir
O rasto das aves no inverno
Nem tão-pouco o das palavras no tacto das coisas;
Somos meros supranumerários
De uma abstinência provisória do nada
De que deus afinal é o mais fiel dos substitutos.


  Carita, Fernando Eduardo. Le Salut Par le Vide/ A Salvação Pelo Vazio (Édition bilingue). Châtelineau: Editions Le Taillis Pré, 2005, p 108.
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01/05/13



   " Poema  7  "


Antes de libertar uma ave
Deverás primeiro certificar-te
De que o seu voo te não fica preso
Às mãos.


  Carita, Fernando Eduardo. Le Salut par le Vide/ A Salvação pelo Vazio (Édition bilingue). Châtelineau: Editions Le Taillis Pré, 2005, p 26.
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30/04/13

 
 
Eu gosto de Dom Miguel
- O de São Martinho de Anta-,
Que escrevia com pincel;
E, às vezes, pintava a manta.
 
 
Deixou-nos grande legado
Em prosa e em poesia.
Era um homem apagado
E as coisas que ele sabia.
 
 
   Barata, Manuel. Quadras Populares: umas sim, outras quase. Lisboa: Fólio Exemplar, 2012, p 50.
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(Nota: a quadra de raiz popular, e alicerçada na oralidade, é vulgarmente menorizada por certos autores e estudiosos com tudo o que isso implica de ocultação de aspectos ligados ao social, ao histórico-político e até ao linguístico. A tudo isso acrescenta-se a importância de escritores do género que, pelo seu valor - como é o caso de António Aleixo - , têm funcionado igualmente como elemento intimidatório ao cultivo deste tipo de poesia. No caso do poeta aqui presente - licenciado em Estudos Portugueses, variante Português/ Francês -, apesar de nunca perder de vista raízes estéticas alicerçadas no popular, podemos encontrar dele também outros textos para além da quadra, veja-se - por exemplo - um livro ainda não postado aqui: "Fragmentária Mente", de 2009.
 As duas quadras deste poste inspiram-se no célebre soneto de Camões "Sete anos de pastor Jacob servia", as duas do poste seguinte referem-se, como é óbvio, a Miguel Torga.)
 
 
Eu serviria sete anos
Pra de ti ouvir um sim.
E outros sete serviria
Pra te ter ao pé de mim.
 
Tenho tanto pra te dar,
Se quiseres receber.
Umas asas pra voar
Umas pernas pra correr.
 
  Barata, Manuel. Quadras Populares: umas sim, outras quase. Lisboa: Fólio Exemplar, 2012, p 16.
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29/04/13

 
 
     " O  Anjo "
 
Pousa o Anjo em meu ombro
E permanece com os pés
Cheios de sons que não escuto
Só adivinho o Anjo no meu
Ombro tem um jeito discreto
De falácia e uma cor
Que não se exprime por
Pincéis mas é real
A cor de suas vestes que não
Vejo a cor além da
Cor uma verdade acima da
Verdade como só o
Anjo pode ser
Aquela que não encontro e seus
Braços longos têm uma
Curvatura infatigável
A inocência de um quadro
De Chagall que não vi e
Seu rosto seu rosto
Lembra um pássaro que não existe
Um pássaro voando
Belo como a beleza
Intocável da liberdade
 
 
   Goulart, Helvécio. Poemas Reunidos. Goiânia: Editora da UCG, 2007, p 112.
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28/04/13



   " Pássaros "


Ela ficara simplesmente olhando
O vestido verde preso de um lado só do corpo
Uma jovem olhando o mundo que começava a afundar
O coração dos homens batia devagar
O relógio batia devagar dentro do coração dos homens
Ela ficara simplesmente parada
A hera subia pelas paredes do Verão
Tiritavam de medo os loucos os devotos os bandidos
Dormiam criaturas inocentes dentro de casas remotas
Feitas dos dias que tinham chegado e partido
No olho das vidraças embaçadas
No rosto sem nenhuma esperança
Na colheita do fogo noturno
Na grande distância cinzenta dos sorrisos
No latido dos cachorros conduzindo os tiranos
Nos gritos nas torturas por afogamento
No massacre dos campanários
Nos pés descalços e frios das cidades
Ela ficara parada com o braço para o alto
Uma estátua com uvas coroando-lhe a cabeça
Com pássaros cantando dentro de seus olhos
No pântano das lágrimas
Na longínqua floresta da alegria

    Goulart, Helvécio. Poemas Reunidos. Goiânia: Editora da UCG, 2007, p 98.
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Da vida, da poesia e de todas as coisas...


                                   Uma alegoria ao correr da pena…

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    Quando eu era menino, acedíamos à quinta de duas formas: por uma porta que um tio-avô mandara fazer nas traseiras de sua casa ou por um portão que a caseira, morando no outro extremo das habitações, tinha no seu quintal. Geralmente, eu e os meus primos escolhíamos a primeira alternativa. Certo dia, contudo, a minha avó, por uma questão de colheitas e de dinheiros, incompatibilizou-se com o irmão: mandou fechar o extenso corredor que ligava as duas casas, deitou abaixo uma das paredes traseiras e, uma vez com acesso directo à quinta, ordenou que se fechasse o poço a cadeado. Os meus pais ainda a tentaram persuadir com o célebre argumento de que água não se nega a ninguém, ao que ela respondia, célere e inflexível: Nem a honra, nem a dignidade! Minha avó nunca mais falou ao irmão, considerando sempre que aquilo que os distinguia jamais poderia ser colmatado por quaisquer tipos de elos ou afinidades. Eu e os meus primos passámos a ter dificuldades acrescidas nos nossos jogos e brincadeiras, já que o meu tio-avó, por vezes, vingava-se em mim e nos netos: Eles hoje não saem; Eles hoje têm de estudar, etc. No entanto, quando nos encontrávamos todos era uma festa: os mais velhos subiam às árvores à cata de ninhos, as raparigas preferiam as cavalariças e o picadeiro, um ou outro corria atrás dos gansos (imagem que mais tarde me daria um certo jeito para um poema da Antologia da Hariemuj!) de vergasta em punho, quanto a mim – e excluindo o descarregar dos porcos, com os seus guinchos aflitivos, de que nunca gostei – ia para um lado qualquer dos que eles escolhessem. Mas – e para confessar – aquilo que mais me seduzia era ficar a observar o enorme galinheiro: era um enorme edifico que os meus bisavós tinham mandado fazer entre três pilares que haviam pertencido a um moinho de vento… eu ficava fascinado a observar a ordem que naquilo tudo havia: as diversas capoeiras estavam unidas entre si por estreitas passagens, todavia, as galinhas jamais trocavam de divisória e quando Adelaide (a única mulher que até hoje vi de pera e bigode e a única empregada de que eu fugia sempre sete a pés!) vinha com as sêmeas, o milho ou as hortaliças, a aproximação ao comedouro era uma autêntica cerimónia de poder e de submissão: elos de vassalagem, medos, rituais de sedução levados a cabo por alguma ave infortunada visando conseguir algo -- Deuses, como a minha observação infantil do galinheiro me viria a ser útil vida afora, quantas e quantas vezes a reencontrei sob disfarces múltiplos e camuflagens torpes! Mas – e deixem-me confessar – daquilo que eu gostava mesmo, nessa altura e durante essas observações, era das minúsculas galinhas da India: indiferentes às regras das grandes, saltavam de divisória em divisória, comiam e dormiam onde lhes apetecia e ao pé de quem lhes apetecia, era como se fossem aves de outro mundo, de um mundo paralelo que escapava à normalização vigente do galinheiro uniformizado em função de regras e submissões… As galinhas da India, naquela sociedade perfeitamente hierarquizada, poedeiras de ovos desprezíveis, com a sua figura e cantar frágeis, não serviam naquela quinta para absolutamente nada… para nada é como quem diz: a mim serviram-me para apurar o ver, para me ensinar a afastar de aparências e fraudes, para evitar os caminhos demasiado tortuosos e investir, apenas, naquilo que a mim se possa dar -- em autenticidade e com rasgos de absoluto. V.O.M. (Lx, 24/4/2013, 22h09)
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27/04/13

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O PRÉMIO LITERÁRIO GLÓRIA DE SANT' ANNA na imprensa de Moçambique.
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26/04/13



    " Partilha "


Entrego-te a casa e as árvores
que vivem com a casa
o riacho que passa embaixo
dos gravatás e anêmonas
Entrego-te a rua que flutua
em teu olhar como a asa
de um canário amarelo que ainda canta
no pessegueiro em flor
Entrego-te a esquina que te encanta
do outro lado da casa o odor
dos pinheiros retilíneos e sensuais
os ígneos raios da manhã
resplandecente os silêncios abissais
a envolver a palavra doce e vã
que me disseste e eu disse
Entrego-te o começo e ingloriamente o fim
a seriedade a alegria a tolice
e assim tudo o que foi e o que restou de mim

  Goulart, Helvécio. Poemas Reunidos. Goiânia: Editora da UCG, 2007, p 28.
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24/04/13

 
  ( Segundo poema do Ciclo Sonya's Fairytale )
 
 
 
... right in front of the approaching train
a woman and a man fuck in the snow.
 
Consider, my soul, this texture of stubbornness and quiet:
as she falls and rises above him in the air,
 
he wants her and he does not want her, he wants
her with the promise of that fullness.
 
Consider this approaching train in which the conductor whistles,
rings the bell and shouts
 
as if refusing to believe they are deaf.
Consider, my soul, the deafness
 
and the man, its earthly vehicle.
The train stops, the conductor whispers
 
May you win the lottery and spend it all on doctors!
The woman straightens her coat, and laughs ---
 
" One of us had to stop first, sir. I couldn't. "
 
 
   Kaminsky, Ilyá. Bailando en Odesa ( Edição Bilingue). Madrid: Libros del Aire, 2012, p 116.
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20/04/13

 
 
   " American Tourist "
 
 
In a city made of seaweed we danced on a rofftop, my hands
under her breasts. Subtracting
day from day, I add this woman's ankles
 
to my days of atonement, her lower lip, the formal bones of her face.
We were making love all evening ---
I told her stories, their rituals of rain: hapiness
 
is money, yes, but only the smallest coins.
She asked me to pray, to how
towards Jerusalem. We bowed to the left, I saw
 
two bakeries, a shoe store; the smell of hay,
smell of horses and hay. When Moses
broke the sacred tablets on Sinai, the rich
 
picked the pieces carved with:
"adultery" and "kill" and "theft,"
the poor got only "No" "No" No."
 
I kissed the back of her neck, an elbow,
this woman whose forgetting is a plot against forgetting,
naked in her galoshes she waltzed
 
and even her cat waltzed.
She said: "All that is musical in us is memory" ---
but I did not Know English, I danced
 
sitting down, she straightened
and bent and straightened, a tremble of music
a tremble in her hand.
 
 
   Kamínsky, Ilyá, Bailando en Odesa (Edición bilingue). Madrid: Libros del Aire, 2012, pp 32 - 34.
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19/04/13


Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruito,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a Fortuna não deixa durar muito,
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca enxuito,
Aos montes insinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.

Do teu Príncipe ali te respondiam
As lembranças que na alma lhe moravam,
Que sempre ante seus olhos te traziam,
Quando dos teus fermosos se apartavam;
De noite, em doces sonhos que mentiam,
De dia, em pensamentos que voavam;
E quanto, enfim, cuidava e quanto via
Eram tudo memórias de alegria.

De outras belas senhoras e Princesas
Os desejados tálamos enjeita,
Que tudo, enfim, tu, puro amor, desprezas,
Quando um gesto suave te sujeita.
Vendo estas namoradas estranhezas,
O velho pai sesudo, que respeita
O murmurar do povo e a fantasia
Do filho, que casar-se não queria,

 Camões, Luís de. Os Lusíadas ( Canto III, 120 - 122 ). Lisboa: Empresa Lit. Fluminense, 7ª Edição, p 141.
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18/04/13

 
 
      " Solo Para Voz Femenina "
 
 
Si te marchas, amor, lloverá;
llama la soledad que viene a visitarme
y yo maldeciré mi destino;
bendeciré en cambio tus dias.
 
Igual que un vendaval diste en mi vida
y cayeron mis muros igual que bastidores.
Has destrozado el techo de mi casa
y no me has dado un nuevo amparo.
 
Me moría mil veces. Y aquí apareciste.
Quise la dicha, estar cerca sin ser molesta.
Cómo ibas a oír tú mi silencio
si ni una sola vez me has escuchado.
 
 
  Kaléko, Mascha. Tres Maneras de Estar Sola. S/c.: Editorial Renacimiento, 2012, p 125 (Tradución de Inmaculada Moreno).
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17/04/13

Prémio Literário Glória de Sant' Anna.

 
O Júri do PRÉMIO LITERÁRIO GLÓRIA DE SANT' ANNA  2013, constituído por:
 
FERNANDA  ANGIUS
 
TERESA  ROZA  D' OLIVEIRA
 
EUGÉNIO  LISBOA
 
VICTOR  OLIVEIRA  MATEUS
 
e  AMÉRICO  MATOS,
 
 
elegeu como finalistas do referido Prémio as seguintes obras:
 
"O Poeta Diarista e os Ascetas Desiluminados "  de EDUARDO  WHITE
 
"Estrada  sem  Asfalto "  de  CUSTÓDIO  DUMA
 
" Livro  Mulher "  de  ADELINO  TIMÓTEO.
 
 
O vencedor do presente Prémio Literário será revelado publicamente no dia 15 de Maio de 2013.
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  " Versos Para Ningún Salterio "


No quisiera ser Dios en estos tiempos
y reinar resguardado tras las nubes
omnisciente de bombas y cañones
que escupen a mis hijos roja muerte.

Qué penoso escuchar un coro de ángeles
si por la tierra suenan los llantos de los niños.
Diosabe que por nada me cambiaba
con el Querido Dios allá en el cielo.

Pienso que semejante maquinaria
de oscuridad y pirotecnia obliga.
Ha realizado acaso algún milagro
como hiciera en sus tiempos en Egipto?

Alabad al Señor que calla! En tales tiempos
- y perdona, Pastor - es el silencio un crimen.
Sin embargo parece que Su gloria es no hablar
ni siquiera a favor del Cordero más manso.

El Señor Sabaoth pasea por el bosque de las nubes.
Lo que yo opine a Él le importa un rayo.
No quisiera ser Dios en estos tiempos.
Y cómo se lo explico yo a mi hijo?


  Kaléko, Mascha. Tres Maneras de Estar Sola. S/c.: Editorial Renacimiento, 2012, pp 27 - 29 ( Tradución de Inmaculada Moreno).
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15/04/13

 
 
Mas um velho, de aspeto venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
Cum saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:
 
" Ó glória de mandar, ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
Cua aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles exprimentas!
 
Dura inquietação d'alma e da vida,
Fonte de desemparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios!
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana.
 
A que novos desastres determinas
De levar estes Reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas,
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos e de minas
De ouro, que lhe farás tão fàcilmente?
Que famas lhe prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?
 
Mas, ó tu, gèração daquele insano
Cujo pecado e desobediência
Não sòmente do Reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência,
Mas inda doutro estado, mais que humano,
Da quieta e da simpres inocência,
Idade de ouro, tanto te privou,
Que na de ferro e de armas te deitou:
 
Já que nesta gostosa vaidade
Tanto enlevas a leve fantasia,
Já que à bruta crueza e feridade
Puseste nome "esforço e valentia",
Já que prezas em tanta quantidade
O desprezo da vida, que devia
De ser sempre estimada, pois que já
Temeu tanto perdê-la Quem a dá:
 
    Camões, Luís de. Os Lusíadas (IV 94 - 99). Lisboa: Empresa Litª Fluminense, 7ª Edição, pp 170 - 171.
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O regresso de Tornatore.


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" A Mellhor Oferta" de Giuseppe Tornatore com Geoffrey Rush (Virgil Oldman), Donald Sutherland e Jim Sturgess.
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Os sentimentos humanos são como a obra de arte: nunca se consegue distinguir o que neles é verdadeiro das falsificações bem conseguidas. Conseguir-se-á separar na amizade e no amor aquilo que neles é autêntico e verdadeiro do que aí não passa de mentira e mero logro? Não, não se consegue e Virgil Oldman, um leiloeiro bem sucedido que ousa amar uma jovem desconhecida e confiar num amigo, aprenderá essa lição à sua custa e com um alto preço. Nenhum homem maduro deve mostrar o seu tesouro à primeira jovem que insiste em amar, aliás, o Fedro de Platão já começava exactamente com este dilema, mas à tese do filósofo, o cineasta contrapõe os riscos que corre quem não sabe separar as águas, isto é, não há qualquer garantia para quem demonstre o que tem de mais valioso e se, mesmo assim, insiste nessa demonstração está por sua conta e risco: esta parece ser a lição que o realizador pretende fazer passar. Expor uma obra de arte, ou um sentimento, é sempre um convite ao roubo, à traição: roubar uma parede cheia de quadros ou atraiçoar um mundo interior não faz, para quem rouba, qualquer diferença. Um filme a não perder, uma lição a manter intacta. Excelentes interpretações com Geoffrey Rush no seu melhor. Não descurar também a grande música de Morricone.
André Téchiné, em Les Voleurs, e Woody Allen, em Match Point, já tinham andado à volta deste tema: Téchiné de um modo bem mais labiríntico, enquanto que Woody Allen e Tornatore com um rigor na caracterização psicológica das personagens, que eu considero perfeito. 
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12/04/13



      "  Animais Que  Brilham  "


Amar é perder a cara para ganhar a do outro
a de todos os outros, múltiplo: o espasmo
Na linha das zebras que se espalha até à loucura
Perde-se, entra nos teus olhos, procura um fio condutor
Feito só de energia quente, até à elegia última
Ao mais perfeito abraço, ao beijo mais puro,

Procurar é ter sede, gastar todas as línguas, entrelacá-las
Até à loucura, ganhar uma nova e única, em tudo fluorescente
sobe pela medula a febre dos girassóis, o seu caule
Cheio de leite quente e gordo de baleia, cheio de espera condensada
e marítima;
Só o amor permite ver mais longe:
cão guia cego que procura uma vontade nova
Os olhos são o espelho da alma e os amigos são o espelho de deus

  Brito, Nuno. Duplo Poço. S/c.: Hariemuj Editora, 2012, p 50.
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09/04/13



( Excerto de Sunset Boulevard
Ode Gente )


...     ...     ...     ...    ...    ...
Acende um Farol em cada praia. Não esperes os navios. Entra em todos os seus porões sem aviso - Recheia os capitães de Susto - Enche os porões de riso e espasmo... Penteia-os com gel de golfinho. Sempre estive perto da loucura, se não fui ela própria, sempre quis ter bigodes púrpura e ser só a chuva lá fora -


Nunca quis ser um poeta, só quis ser um navio em chamas: Um navio violado pelo seu tio, todas as manhãs e todas as tardes, um navio que à noite lê Bataille - Um Navio que se afasta dos outros navios se não tiver cuidado, um navio que só quer ser ponte,
limite e União.
Um navio que com os seus óculos de Sol, escreve na sua rota: - Não existe o que se escreve nas rotas -
Um navio que mesmo assim escreve e insiste em escrever, seja no osso de uma namorada morta, seja no computador, seja em rolo de papiro, em pergaminho, em papel, em folha de gelatina, em mármore, em porta de casa de banho, em quadro (pode ser com unhas ou com dentes) em areia molhada, no braço ou nas costas em tatuagem num deserto mexicano, num campo relvado, a chantilly num bolo de chocolate, no lodo, na lama, no gelo com patins, na cerâmica, na argila, no fogo, desenhando um rasto de gasolina, com urina num ladrilho seco - Não interessa o suporte, mais ou menos perene, ele só prova a nossa inocência, a nossa necessidade de partilhar -
A literatura só pode ser União... Um navio que escreve rápido no ar e em fumo de cigarro

( são precisos bons reflexos e ante-braço forte) - A LITERATURA TEM DE SER, É UNIÃO.

Nunca quis ser um poeta, sempre quis ser um espelho colocado no centro da Austrália, sempre quis ser a "fome de gente" que os espelhos têm - Pequenos fios dourados, Guardar uma coisa qualquer, um hipermercado, um segredo, proteger essa coisa dos lobos; Ser vários cangurus espalhados pelo deserto reflectidos na minha cara fosca, de um e do outro lado, uma cara fosca que é só deserto espelhado carregado de nuvens vermelhas no vidro e na sede de ter Muitas Línguas - Deserto Compositor a Criar um Requiem em Braille para que os cegos cantem uma Osana Perfeita  -
(...)
Não interessa a escolha do caminho, mas a intensidade com que se o percorre, seja ele um ou em tudo múltiplo e comprido. Deserto a abraçar deserto, deserto a espalhar-se, vermelho na perda por deserto e deserto, deserto com sede de pessoas.
...    ...     ...     ...     ...     ...     ...
 
  Brito, Nuno. Duplo Poço.  S/c:  Hariemuj Editora, 2012, pp 32 - 33.
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07/04/13



      "  A  Sombra  "


Ó sombra da respiração
Minha mãe
Que abandonaste teu filho às margens de uma estrada grande
Parco de tudo o que existe menos de ignorância
Altiva como o nada que nos assola pela manhã
Assola à tarde e nos assola de novo na aurora

Minha mãe
Sombra da respiração de onde vim
Desenha uma porta neste caracol vazio que é a nossa vida
Deixa-me sair de mim e de ti
Que nada aconteceu entre nós que não se possa apagar
Como a luz que acontece às vezes no campo nas noites escuras

Ó minha sombra de respiração
De quem sou filho e filho também do que nada sei
És a responsável
Pelo desequilíbrio com que se começa a vida
Por tudo o que cai e se desfigura
Muitos ou apenas poucos dias depois

Meu coração é do tamanho do escuro
É à porta de mim que se faz luz
Não tenho dores em lugar algum para mostrar
Há em mim uma parte de todos
Que se espalha entre nós como sémen
Um humano desperdício vingativo

Tenho a cabeça derramada na laje fria
E não é a primeira nem será a última
Escrever da dificuldade de respirar
Da dificuldade de ver que vim de onde vim
É crer na noite e no fim de tudo
Crer é um enorme ponto final

  Miranda, Paulo José. Cintilações da Sombra, antologia poética. Fafe: Editora Labirinto, 2013, pp 59 - 60 (Organização de Victor Oliveira Mateus).
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06/04/13

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       "  Poema  18.  "


Atirei-te com um poema
não pela porta, nem pelo tubo de escape: deixei-to preso
no limpa-vidros               Atirei-te com um poema, mas tu
não estavas       durante mais de três dias não vieste
a casa         e o meu pobre poema ali ficou: perdido
imerso no ruído dos outros carros, no passar fétido
de todas as errâncias, que não a minha
sempre a ler sonhos na frieza das ruas


Atirei-te com um poema
escrito por outro que não eu: deixei-to preso
no limpa-vidros, para que te limpasse o dia
                           para que te abrisse o horizonte
nas riscas brancas de um qualquer navio
ou nas malhas acesas da madrugada
quando me perco na sedução vaga do teu olhar


Sei que irás suspeitar de mim
pensarás que ando agora pelas ruas
                                                 atirando poemas
como pássaros       a todo o rosto entrevisto
no clamor sórdido dos dias
Irás supeitar deste mistério que é o meu para ti
enquanto eu, artilhando a minha-espingarda-dos poemas,
te preparo este, para ser mais certeiro, mais eficaz
Este poema que te desperte,
que te traga de volta, que


   Mateus, Victor Oliveira. A Noite e a Voz. Lisboa: Universitária Editora, 2001, p 47 (Prefácio de Ana Paula Dias).
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04/04/13

Cristina Carvalho escreve sobre Poesia.

Sessão de apresentação do livro de poesia “Cintilações da Sombra” na Livraria Pó dos Livros, em 21 de Março 2013
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                     A literatura e a poesia, esses milagres!
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Muito boa tarde a todos os presentes.
E começo por agradecer a Victor Oliveira Mateus este convite para apresentar o livro – Cintilações da Sombra – conjuntamente com a Maria João Cantinho de quem sou amiga e a quem reconheço um importantíssimo e um superior valor poético.
Todo o começo se prende com alguma coisa e, sendo assim, inicio a minha apresentação com uma citação de François Mauriac,
Diz-me o que lês e eu dir-te-ei quem és. Mas conhecer-te-ia melhor se me dissesses o que relês.
Todos os poetas habitantes deste volume são, a meu ver, de grande e inquestionável qualidade. Faltam aqui alguns nomes importantíssimos e disto mesmo já dei conta a Victor Oliveira Mateus. De todo o modo, Victor Oliveira Mateus, ele próprio um dos poetas que integram esta antologia e que foi também o organizador-coordenador deste conjunto poético, teve o maior cuidado e rigor na seleção que agora se mostra.
Li todos os poemas aqui presentes. Naturalmente que aprecio uns mais que outros, mas isso é natural. Estranho seria que os apreciasse a todos do mesmo modo e com a mesma intensidade. Aqui estão reunidos poetas que eu não conhecia e também aqui estão presentes nomes consagradíssimos da poesia portuguesa contemporânea. Há também nomes não consagrados nem consagradíssimos, mas que eu espero, realmente, que venham a ser do conhecimento de todos. Poesia que conheço bem de pessoas que mal conheço mas que reconheço com toda a minha admiração.
É pois uma escolha total, esta, a de Victor Oliveira Mateus. Uma escolha de primeira grandeza e que em nada, mas mesmo nada, nada, nada se pode comparar, nem de perto nem de longe, a tanta, mas tanta antologia “poética” que, quase todos os dias é publicada. Mal publicada. Sem critério, sem rigor, sem qualidade. Apenas para vender todos os livros, de preferência todos de uma vez logo na sessão de apresentação aos familiares, aos vizinhos, aos amigos, aos amigos dos amigos. Negócio, portanto. Pequenas satisfações. Pequenos serviços, quanto a mim de muito mau gosto e de péssima conduta que resultam num empobrecimento cada vez maior do gosto de cada um, num país com um diminuto grau de conhecimento. Já não digo cultural. Digo, de conhecimento e de interesses.
Voltando a este livro, naturalmente que não vou mencionar nomes. São todos valorosos. Muito valorosos. E a diferença está à vista. Nem vale a pena discutir. Alguém poderá afirmar: o que é bom para ti pode não ser bom para mim e vice versa.
Não! Isso é sofisma! Desconhecimento! A definição de “bom”, muito para além da sensibilidade intrínseca, além da imagética e da idiossincrasia de cada um, o “bom” tem uma definição mais não seja estética! Há bom e há mau. Na poesia, na literatura, na pintura, na escultura, na culinária, no cabeleireiro, na rádio, nas televisões, nos jornais, em todo o lado. E a fraca qualidade literária é uma realidade também.
Temos, pois aqui, um livro muito bom. Com grandes poetas. De grande e absoluto sentimento. Não são segréis, nem jograis nem trovadores. São poetas por inteiro todos os nomes aqui apresentados. É poesia o que aqui se mostra.
A arte literária é mais uma insignificância do cosmos. Quantos e quantos quilómetros de linhas já foram escritas? Quantos pensamentos gloriosos já oferecemos aos nossos deuses? Quantos restam? Quantos encantos e desencantos vamos sofrendo? O que é que aprendemos? O que é que valemos? Que interesse tem tudo?
Tanta interrogação…
A poesia é algo que, usando palavras, não se pode definir nem soletrar. É uma expressão artística ambiciosa, que usa sangue e corpo, que tem de ser livre – como todas as expressões de arte ou como a própria vida –
Deverá ser simples e compreensível como uma correnteza de água, como um estremecer de folhas de árvore.
Cito John Keats, – “Se a poesia não surgir tão naturalmente como as folhas de uma árvore, é melhor que não surja mesmo.”
Mas não é, infelizmente, o que vemos. Eu diria até que a poesia que se deixa ver através de um vidro fosco, se não fosse tudo aquilo que sabemos que é, essa dita “poesia” estaria a definhar, tal é a indigência apresentada com todo o despudor, com toda a desvergonha, numa ânsia incompreensível de notoriedade, numa sede, numa fome, quase num desespero que em nada contribui para o conhecimento real do que, na verdade, é a poesia. Nem documento social é – e isso sim, teria muito interesse histórico!
Não que não seja legítimo toda a gente escrever e dar a conhecer as suas sensações. Claro que sim! Mas sempre a mesma coisa? Não há mais nada para desenhar que não sejam amorosos e delambidos poemas de amor? O mundo resume-se a si próprio? É tudo poesia? Frases colocadas em fila, umas por debaixo das outras, sem nexo nem melodia? É tudo poesia?
Também Hélia Correia diz em entrevista a Ana Marques Gastão em o “Falar dos Poetas”, edições Afrontamento – “É uma aberração chamar poesia à expressão de sentimentos em versinhos. A deriva semântica deu nisso e eu não posso deixar de indignar-me.”
E eu digo: sim senhor! Tudo é legítimo. Todas as vozes são para se ouvir, umas expressando-se melhor, outras pior, mas todas as vozes devem ser ouvidas. Não chamem é poesia a tudo o que se cozinha, a tudo o que se come, engole e regorgita. Haverá outras definições, certamente.
Quanto a mim, o papel da literatura e da poesia não é explicar o mundo. A literatura é o próprio mundo. A poesia é o próprio mundo. Porque são sentimentos, ideais, histórias experimentadas, visitas, efabulações, desenhos de memórias, conquistas, alegria e desespero. As palavras escritas devem formar um todo compreensível, – um romance, um conto, um poema. As palavras que servem as ideias, têm de ser uma dádiva. As palavras não podem viver subterraneamente de modo incompreensível ou navegar ao sabor da moda; as letras não devem agrupar-se em palavras que não tenham significado. Isso não é bom. Não é essa a interrogação que precisamos. Não é isso que perdura. Não é isso que prende. E está à vista de todos.
O pensamento existe. A estética da linguagem, também existe. O ideal também existe. As histórias existem. Os livros existem. A pessoa existe e a pessoa é a interrogação. É a pessoa que escreve histórias que deseja que a outra pessoa as leia, mas sobretudo, que as compreenda.
Não me atribuo, pois, o direito de ter sequer a pretensão de me pôr a analisar este livro ou seja o que for. Quando digo – analisar – estou a referir-me a uma situação teórica ou académica ou então, daquelas conversas que não são entendíveis por um ser humano normal, de atitude simples. O que eu quero dizer é que quando emito uma opinião, falo com o que o meu coração e os meus sentimentos e os meus poucos conhecimentos, ditam. Nada de intrincado e obscuro, portanto. A clareza e simplicidade acima de tudo.
Ao ler-se este livro fica o sentimento, o pensamento, reflexão sobre a vida, sobre a humanidade, sobre a sua verdade, principalmente sobre a sua verdade, tudo traduzido em poesia. Este é um livro de sentimentos. Procura incessante duma certa alegria, talvez.
E, finalmente, do meu entendimento da poesia, amiga com quem convivo desde que me conheço, desde que comecei a ler, posso dizer
Que não é estado de espírito; que não é necessidade; nem intempérie de amor, nem rumor ou piedade, nem doença nem saudade.
Não é, certamente, um acumular de palavras num esforço patético de dar voz aos amores e dar voz a coisa nenhuma. A poesia é para ser lida e observada meticulosamente, é para ser sorvida com todo o cuidado, é para ser apreciada palavra por palavra, frase por frase, conceito por conceito porque toda ela é densa, sofisticada, significante.
A poesia, o texto poético nasce da vida e acompanha a vida numa união imperceptível que se adensa na progressão infinita, que se espraia e se entende e purifica e anima e constrói. É uma arte. E como toda a arte tem uma linguagem que permite tudo, sempre! As obras e os actos do homem ou se condenam ou se purificam e a poesia ou os eleva ou os atinge.
Um livro de poemas não é algo que se devore instantaneamente. O leitor recebe a poesia preparado para a receber. Não porque um poeta seja uma pessoa diferente das outras. A poesia é que é uma arte distinta, é uma arte de palavras e nada tão difícil de saborear como uma palavra nascida e escrita e alinhada que pretende dizer sobre a alma, sobre a vida, sobre os Homens. A poesia pode dizer tudo o que quiser. Pode ser lamacenta ou transparente, vertigem ou luz do luar.
Termino. Desde 1999 que se celebra o dia 21 de Março como o Dia Mundial da Poesia sendo um dos seus propósitos divulgar, ensinar e promover a poesia em todo o mundo.
Foi, pois, e em boa hora, apresentado e divulgado ao público português, resplandecente na sua cintilação poética e sem sombra de dúvida, a antologia “Cintilações da Sombra”. Desejo-lhe um futuro caleidoscópico e radiante.
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CRISTINA CARVALHO
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( texto protegido por direitos de autor)
21 de Março de 2013 em livraria Pó dos Livros na apresentação do livro de poesia “Cintilações da Sombra” – Labirinto Editora.
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NOTA - Este texto, postado aqui com o conhecimento da autora, encontra-se, no entanto, protegido pela legislação relativa aos Direitos de Autor.
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