31/05/08





Não temas
deixa meus gestos
descerem-te trago a trago
Deixa minha boca
à deriva
para a macieza transparente
do que julgas não querer

Não digas nada
Confia
A precisão te levará
às paragens longínquas
onde o cheiro do feno
e a saliva insubmissa
se misturam

Nada te fará perigar
nem a frieza do ocaso
nem as farpas aceredas
no vórtice da traição

Não mudes estes caminhos
espécie de jóias
ou lâmpadas salpicando
meu feroz desejo de ti

Não temas
Fecha os olhos
Concede a fúria louca
das nascentes
que num sussurro
atiro com ternura
à tua mudez assustada

Victor Oliveira Mateus, Poema 3
In "Movimento de Ninguém", Lisboa, 1999.

30/05/08




no olhar dos peixes as águas
são tranquilas, réstias de fogo
invadem a certeza do meu partir
no reflexo dos arrozais,
onde o chapinhar das abelhas vai prateando
de alfazema a folhagem inquieta.

no olhar dos peixes um barulho
de asas assustadas, um zumbido
triste por eu não poder voltar
aí, onde a noite, revestida
de conchas opalinas, não atiça já
a vastidão da memória resistente
no subtil olhar dos peixes...

Victor Oliveira Mateus, poema 2 In "Movimento
de Ninguém", Lisboa, 1999.

( Nota - este poema foi gentilmente
gravado em C.D. pela actriz Hermínia Tojal.)

29/05/08



Por todo o lado me cercas
Com teus ramos de límpida filigrana o dia inundas,
os bosques, as colinas persistentes onde o destino
é uma luz difusa, como árvore dilacerada de cores,
no rumor inconsolado da terra

Por todo o lado te anuncias
Com teus oblíquos desígnios verdes em precisão
desvelas a nitidez vaga do horizonte, onde os
símbolos se misturam, na vastidão impenetrável
do silêncio:
a mesa das oferendas para o Alto inclinada
a taça repleta de cerejas
uma mão inerte junto ao umbral
Por todo o lado me cercas, ó fabulosa imagem
e em teu fervor de natureza morta
ao meu corpo prometes vida

Victor Oliveira Mateus, In " Cerejas - poemas
de amor de autores portugueses contemporâneos",
Editorial Tágide, 2004, pág. 64

Áspera e vulgar era a manhã
quando de novo à minha mesa te sentaste:
falaste-me do mar, do teu equilíbrio na crista
das ondas e de um país ao sul, onde em júbilo
incontrolado, novas praias te esperavam

E nessa manhã tão simples, não te falei eu
do que sempre te vou roubando: a brancura
da pele, o ruivo do cabelo, o impetuoso fulgor
de um admirável corpo solar
- vertente do meu fascínio, com inúmeras
flores de cerejeira soberbamente enriquecida;
minha aprazível e quase obscena fonte, onde
sempre me procuro e sempre me acabo por
perder

Afinal foi numa vulgar manhã, que uma vez
mais, com astúcia, te armadilhei: escondidos
foram, num dos teus bolsos, pedaços do meu
destino; réstia de um pretexto que a tua vinda
me desenha

Victor Oliveira Mateus, In "Cerejas - poemas de
amor de autores portugueses contemporâneos",
Editorial Tágide, 2004, pg 65.

28/05/08

Poetas

"Paris", foto de Laurent Beuplet


"L'Imperfection Est La Cime"


Il y avait qu'il fallait détruire et détruire et détruire,
Il y avait que le salut n'est qu'à ce prix.

Ruiner la face nue qui monte dans le marbre,
Marteler toute forme toute beauté.

Aimer la perfection parce qu'elle est le seuil,
Mais la nier sitôt connue, l'oublier morte,

L'imperfection est la cime.


Yves Bonnefoy, In "Poèmes", Mercure de France,
Paris, 1986, pg. 117

26/05/08

Poetas

Theatergroep Hollandia (Betty Schuurman, Bert Luppes
e Adri Overbeeke), foto de Mario Hooglander/ 1992


há um resto de ti no arvoredo
quando o dia desprende a solidão
quando digo frenético e descanso
os meus olhos na sombra da restinga

há um resto de ti que encontro a medo
no imenso abat-jour de gaze branca
sobre a lâmpada rosa do relâmpago
onde as nossas imagens se concentram

há um resto de ti neste fulgor
de ritual de coxas e de línguas
entre dunas de sol e de lianas

há um resto de ti que me não cansa
por ser sombra e ser fundo e ser tecido
de cicatriz contínua entreaberta

Olga Gonçalves, In "só de amor"

Poetas

"Maturação"

era uma vez uma senhora que podia viver sozinha.
que podia em silêncio, ver crescer os frutos de cada
laranjeira. e as árvores nasciam fora e dentro de sua
casa. barravam, por vezes, o caminho, e tomavam
formas e perfumes diferentes para cada noite.
rutilando envoltas numa prosa que as colocava
sobre pedestais. assim, perigosas. assim, irónicas.
assim, susceptíveis de estrangular o medo.

uma senhora triste ao longo das raízes do seu sonho.
quando lhe perguntaram se acreditava em deus
apenas murmurou sim, ando porém a ver se acredito
nos meus sentidos. e alisou a prega do incêndio que
lhe subia às mãos.

Olga Gonçalves, In "caixa inglesa"

.
.

" O Melro"
.
.
O melro, eu conheci-o:
Era negro, vibrante, luzidio,
Madrugador, jovial;
Logo de manhã cedo
Começava a soltar, dentre o arvoredo,
Verdadeiras risadas de cristal.
E assim que o padre-cura abria a porta
Que dá para o passal,
Repicando umas finas ironias,
O melro; dentre a horta,
Dizia-lhe:"Bons dias!"
E o velho padre-cura
Não gostava daquelas cortesias.
.
O cura era um velhote
Malicioso, alegre, prazanteiro:
Não tinha pombas brancas no telhado
Nem rosas no canteiro:
Andava às lebres pelo monte, a pé,
Livre de reumatismos,
Graças a Deus, e graças a Noé.
O melro desprezava os exorcismos
Que o padre lhe dizia:
Cantava, assobiava alegremente;
Até que ultimamente
O velho disse um dia:
"Nada, já não tem jeito!, este ladrão
Dá cabo dos trigais
Qual seria a razão
Por que Deus fez os melros e os pardais?!"
E o melro entretanto
Honesto como um santo,
Mal vinha no oriente
A madrugada clara,
Já ele andava jovial, inquieto,
Comendo alegremente, honradamente,
Todos os parasitas da seara
(...)
Chegou a coisa a termo
Que o bom padre-cura andava enfermo;
Não falava nem ria
Minado por tão íntimo desgosto;
E o vermelho oleoso do seu rosto
Tornava-se amarelo dia a dia.
(...)
Enxergou por acaso (que alegria!,
Que ditoso momento!)
Um ninho com seis melros, escondido
Entre uma carvalheira.
E ao vê-los exclamou enfurecido:
"A mãe comeu o fruto proibido;
esse fruto era a minha sementeira;
Era o pão, e era o milho;
Transmitiu-se o pecado.
E, se a mãe não pagou, que pague o filho,
É doutrina da Igreja. Estou vingado!"
... ...
... ...
"O Melro" (excertos), In "A Velhice do Padre Eterno"
.


24/05/08

Inabalável Memória

"Strasbourg", foto de Benoît Linder


"Querer Ser"


Ser
azul, azul, azul, azul ainda
o voar das águias
o canto dos pássaros
das nuvens o capricho

Ser máquina - máquina magnífica
reluzente, complicada de fios, anilhas
pistões, rolamentos, cabos, rodas
roldanas, parafusos, roscas, alavancas
a funcionar
máquina, só objecto impressionante
a não servir para nada
orgulho humilde
ser água britando de cristal de rocha
serpenteando em floresta virgem
ora lago ora cascata
sôfrega de oceanos
ser crista branca de espuma
das ondas do mar em tempestade
na certeza dum fundo sereno
ser estrela cadente
em galáxias infinitas
arco-íris
porque não o homem invisível?

Não ser... e ser
o aroma das flores
o sabor do sal
o luar-sol da noite
erva no fundo da ravina
neve no alto das montanhas
- não pisadas

Ser corajosa sem medo
cantata de Bach
as quatro estações de Vivaldi
sonata de Beethoven
prelúdio de Chopin
valsa de Mozart
concerto de Stockhausen
sinfonia
polifonia (é talvez uma maneira
de nos amarmos uns aos outros)
xilofone em silêncio
filarmónica em dia de festa na aldeia

Ser leite, gema de ovo
borboleta, pirilampo
o fumo de um cachimbo bem aceso
ser girassol, que maravilha
de Van Goh, que loucura!

Ser o tocar dos sinos à tardinha
o delírio do vento nas searas de Chartres
o flamejar do beijo do abraço
amor perfeito esquecido em livros de horas.

Querer efémero.


Merícia de Lemos, In "12 Poemas", Imprensa Nacional-
Casa da Moeda, Lisboa, 1990 (posfácio de Maria de
Lourdes Belchior)

22/05/08




(Nota - não tenho, neste momento, nem o título
deste soneto, nem o nome do livro a que pertence,
mas mesmo assim...)

Hei de morrer em ti, nesse teu corpo estranho
Num espanto feroz, feito de febre e fúria,
Feliz pelo que tive, amante enquanto dure
A alta fonte do amor e seu limpo rebanho.

A tua alma assassina assistirá, contente,
A um sonho agonizante e por si só perdido
E, sonho do meu sonho, esse fim terá sido
Nada de verdadeiro, o falso de quem sente.

Morrerei nos teus olhos, morrerei nas memórias
Do teu mundo cabal, cadafalso de histórias,
Rupturas, padrões, fábulas, ossos, chifres.

Sentirás o meu peso, isso que não sentiste
Senão como um olhar, talvez mau, talvez triste.
Serei por fim em ti, para que me decifres.

Renata Pallottini




    "Atira para o mar"


Atira para o mar as tuas coisas
abandona os teus pais
muda de nome

esquece a pátria
parte sem bagagem
fica mudo e ensurdece
abre os teus olhos

Se o teu amor não vale tudo isso
então fica onde estás
gelado e quieto.

O amor só sabe ir de mãos vazias
e só vale se for
o único projeto.

Pallottini, Renata. Um Calafrio Diário. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002, p 79.
.

20/05/08




seduzem-me
os barcos que abandonam o porto
ao romper do dia
e a sua navegação solitária
entre as ilhas

a outra mão dos maestros
e todas as mãos
que falam dão e recebem
e se acariciam

as paisagens
quentes do sul
os sons duma guitarra
e os gestos lentíssimos do tai chi
esse estranho e antigo bailado matinal

seduzem-me
os livros abertos
e os olhos ardendo
de palavras e sinais

os olhos correm
juntam símbolos e correm
decifram a mensagem fixam a notícia
detêm-se por momentos
para medirem a realidade circundante
da casa do chá

o tempo de virar a página

e ei-los a correr de novo
até à última linha
entre amores e ódios
delírios e intrigas
prazeres e dores
leis e razões
dúvidas e medos
sonhos
esperanças
e cantos

imensa roda
a preto e branco
de um mundo que é sempre notícia

aberta aos sentidos

António Cardoso Pinto, In "A lua dos astronautas
não é a minha lua", Gradiva, Lisboa...

18/05/08


.
.
              "La Mendiga"
.

La mendiga bajaba siempre a la misma hora y se situaba
en el mismo tramo de la escalinata, con la misma enigmática
expresión de filósofo del siglo diecinueve. Como era habitual,
colocaba frente a ella su platillo de porcelana de Sèvres pero
no pedía nada a los viandantes. Tampoco tocaba quena ni
violín, o sea que no desafinaba brutalmente como los otros
mendigos de la zona.
A veces abría su bolsón de lona remendada y extraía algún
libro de Holderlin o de Kierkegaard o de Hegel y se concentraba
en su lectura sin gafas.
Curiosamente, los que pasaban le iban dejando monedas o
billetes y hasta algún cheque al portador, no se sabe si en
reconocimento a su afinado silencio o sencillamente porque
comprendían que la pobre se había equivocado de época.

Mario Benedetti, In "La Vida ese Paréntesis"

17/05/08

Poetas

"Funeral Blues"

Stop all the clocks, cut off the telephone,
Prevent the dog from barking with a juicy bone,
Silence the pianos and with muffled drum
Bring out the coffin, let the mourners come.

Let aeroplanes circle moaning overhead
Scribbling on the sky the message He Is Dead,
Put crêpe bows round the white necks of the public doves,
Let the traffic policemen wear black cotton gloves.

He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest,
My noon, my midnight, my talk, my song;
I thought that love would last for ever: I was wrong.

The stars are not wanted now; put out every one;
Pack up the moon and dismantle the sun;
Pour away the ocean and sweep up the wood;
For nothing now can ever come to any good.

W. H. Auden

Tradução de Maria de Lourdes Guimarães:


"Blues Fúnebres"

Parem todos os relógios, desliguem o telefone,
Não deixem o cão ladrar aos ossos suculentos,
Silenciem os pianos e com os tambores em surdina
Tragam o féretro, deixem vir o cortejo fúnebre.

Que os aviões voem sobre nós lamentando,
Escrevinhando no céu a mensagem: Ele Está Morto,
Ponham laços de crepe em volta dos pescoços das
pombas da cidade,
Que os polícias de trânsito usem luvas pretas de algodão.

Ele era o meu Norte, o meu Sul, o meu Este e Oeste,
A minha semana de trabalho, o meu descanso de domingo,
O meio-dia, a minha meia-noite, a minha conversa,
a minha canção;
Pensei que o amor ia durar para sempre: enganei-me.

Agora as estrelas não são necessárias: apaguem-nas todas;
Emalem a lua e desmantelem o sol;
Despejem o oceano e varram o bosque;
Pois agora tudo é inútil.

(Abril, 1936)

W. H. Auden, In "Diz-me a Verdade Acerca do Amor"

15/05/08

Poetas


Nota: não são apenas alguns poemas que me influenciam
e/ou intimidam, há também autores perante os quais sou
incapaz de articular o mínimo juízo, ou de acerca deles
executar qualquer tarefa, por mais anódina que seja. Em
tempos pediram-me um texto para uma antologia sobre
Neruda - não fui capaz de o fazer! Mas entre os autores
que exercem sobre mim esse bloqueio, para além de Neruda,
estão também os nomes de Pasolini e de Pavese. Assim,
segue-se um dos mais belos poemas de Pavese: no original
e na versão francesa, apesar de serem duas línguas que
domino razoavelmente, não ousei fazer a tradução para
português...
.
.
.
Verrà la morte e avrà i tuoi occhi -
questa morte che ci accompagna
dal mattino alla sera, insonne,
sorda, come un vecchio rimorso
o un vizio assurdo. I tuoi occhi
saranno una vana parola,
un grido taciuto, un silenzio.
Cosí li vedi ogni mattina
quando su te sola ti pieghi
nello specchio. O cara speranza,
quel giorno sapremo anche noi
che sei la vita e sei il nulla.
.
Per tutti la morte ha uno sguardo.
Verrà la morte e avrà i tuoi occhi.
Sarà come smettere un vizio,
come vedere nello psecchio
riemergere un viso morto,
come ascoltare un labbro chiuso.
Scenderemo nel gorgo muti.
.
.
22 marzo 1950
.
.
Cesare Pavese, In "Verrà la morte e avrà i tuoi occhi"
.
.
.
Tradução do italiano para o francês
feita por Gilles de Van (Éditions Gallimard):
.
.
.
La mort viendra et elle aura tes yeus -
cette mort qui est notre compagne
du matin jusqu'au soir, sans sommeil,
sourde, comme un vieux remords
ou un vice absurde. Tes yeux
seront una vaine parole,
un cri réprimé, un silence.
Ainsi les vois-tu le matin
quand sur toi seule tu te penches
au miroir. O chère espérance,
ce jour-là nous saurons nous aussi
que tu es la vie et que tu es le néant.
.
La mort a pour tous un regard.
La mort viendra et elle aura tes yeux.
Ce sera comme cesser um vice,
comme voir resurgir
au miroir un visage défunt,
comme écouter des lèvres closes.
Nous descendrons dans le gouffre muets.
.
.
22 mars 1950.
.
.
Cesare Pavese

14/05/08




"Os loucos"


Há vários tipos de loucos.

O hitleriano, que barafusta.
O solícito, que dirige o trânsito.
O maníaco fala-só.

O idiota que se baba,
explicado pelo psiquiatra gago.
O legatário de outros,
o que nos governa.

O depressivo que salva
o mundo. Aqueles que o destroem.

E há sempre um
(o mais intratável) que não desiste
e escreve versos.

Não gosto destes loucos.
(Torturados pela escuridão, pela morte?)
Gosto desta velha senhora
que ri, manso, pela rua, de felicidade.


António Osório, In "A Ignorância da Morte"

13/05/08




ISSILVA

rodrigo pereira issilva
soares constante issilva
alves bandeira issilva
simões quintino issilva
macedo bastos issilva
sotto mayor issilva
rosado rosado issilva
nunes fernandes issilva
vieira tavares issilva
rebelo teixeira issilva
madeira romão issilva
vicente cabral issilva
nogueira guerra issilva
espírito santo issilva
de maldonado issilva
de lacerda issilva
de moraes issilva
nunes valente issilva
f. lacombe issilva
domingues magalhães issilva
m. athayde issilva
monteiro pires dassilva


Alexandre O'Neill, In "Poesias Completas",
1951/1986, pgs. 332/3

12/05/08




      "Visita"


Que ela chegue
sem clarins ou trombetas,
entre como facho de luz
pelas gretas da janela
e atravesse o quarto
na sua claridade.

Que ela chegue
inesperada,
como a chuva
na tarde calorenta
e faça subir o odor
de poeira molhada.

Que ela chegue
e se deite ao meu lado,
sem que a perceba.
Que me lave
com água da fonte
e me cubra
com o bálsamo branco
do silêncio.


Donizete Galvão, In "Mundo Mudo"

10/05/08

Poetas

Foto de Davy Liger


aqui cheguei com o tempo
gasto na bagagem e a casa
vazia para ocupar
a terra era quente e o milho
crescia entre espasmos de sol

nos meus olhos marejados de solidão
insinuou-se o teu horizonte
ponte entre duas ilhas

o dia começou noite
e adormeci em teu regaço

Paulo Moreiras, In "Do Obscuro Ofício"

09/05/08

"Carta a meus filhos sobre Os Fuzilamentos de Goya"



Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse "com suma piedade
e sem efusão de sangue".
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente
quanto haviam vivido,
ou as cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham
consciência de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos
tanto não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de serem vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam "amanhã".
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.

(Lisboa, 25 Junho 59)

Jorge de Sena, In "Poesia II", s/c, Moraes Editores, 1978.

08/05/08

Poetas

"Um indiano dormindo numa escadaria",
In "Mère Teresa de Calcutta", Paris, Éditions
du Seuil, 1973.


"Os Expostos"

Há ainda pássaros de luz nas árvores anoitecidas.
Os retardatários deixam a avenida, envoltos já em
capas de sombra, e mergulham nas ruelas da cidade
antiga, por onde me aventuro eu também em busca
não sei de quê. Esta mulher triste leva nos olhos, que
não conseguem esconder-se, as cinzas ainda mornas
de um amor. Em toda a parte eros comanda a vida,
mesmo nos bairros da penúria e do fracasso ou da
avidez do negócio que por aqui fervilha. Por detrás
das portas que se fecham adivinha-se gente a fazer
contas ao destino e à escassez, mas há também lá
dentro beijos e abraços de corpo inteiro. O ouro das
aparências empalidece agora. Os olhos da escuridão
gelam gestos e projectos, empurram os desistentes
para as rotinas da sobrevivência.
E eis que encontro a morte nesta rua. Uma jovem,
violentada pela miséria, além se quedou, em chão de
pó, anónimo cadáver a decompor-se, com duas velas
compassivas à sua beira. Aguarda que sobre ele
caiam uma a uma pequenas moedas até se perfaze-
rem as cinquenta rupias que as autoridades exigem
para decidir o enterro.
Não adormeças ainda, não descanses, minha fé na
vida. Mas esta noite é um muro sem limites, com o
implacável reflexo de duas ou três estrelas na
podridão de um charco.

Urbano Tavares Rodriges, In "Rostos da Índia
e alguns sonhos"


  "Antes e Depois do Amor"


Lembro-me
(ou imagino que me lembro?)
de uma rosa antes do amor
e depois do amor.
Os olhos a morderem a rosa
eternizando
astros indomáveis. Uma bruxa
a varrer intrusos, uma fada a multiplicar
o acerto do prazer.
Lembro-me
(ou imagino que me lembro?)
da caneca do chá a seguir
a todas as rosas, o colar de pérolas
na penumbra.
Lembro-me do espelho
estilhaçado por um choque brutal
de temperaturas
(ou imagino que me lembro?)

Silva, Maria Augusta. Dança de Matisse. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2004, p 44.
.

  "Insubmissos"


Dias tenho em que me afundo
na terra
como toupeira escavando sonos
longos.
Pertenço a esse reino de procura
esperando
encontrar dálias na tua urna. Dálias
e a sinfonia
guardada na caixa verde, fecunda
identidade
do amor que nos fez insubmissos

 
Silva, Maria Augusta. Dança de Matisse. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2004, p 61.
.

06/05/08




o mundo pelo teu último sorriso,
a vida pelo teu primeiro olhar


Jorge Reis-Sá, In "A Palavra no Cimo das Águas"


a vida inteira esperei por
alguém como tu

mesmo sabendo que não sei como és

e mesmo que
ainda não se tenha passado
a vida inteira


Jorge Reis-Sá, In "quase e outros poemas
de querença"

05/05/08

 


Nas dunas mais douradas próximas do mar
descobri tua morada. Mas te ausentaras.
Olhei barcos de pesca marinheiros ao sol
não estavas lá. Entre os que puxavam redes
e escolhiam peixes por qualidade e tamanho
também não estavas. Indaguei ninguém sabia teu nome
riam do embaraço com que eu buscava descrever-te.
Ninguém vira alguém assim. Esperei junto à duna
as horas passavam descuidadas e nada sabiam
de ti. No céu as primeiras estrelas assomaram
e riam do meu rosto desfeito de cansaço.
Vasculhei desesperada o antro em que te abrigas
vi sinais tão vagos: marcas de pés descalços
um vasilhame intacto e vestes brancas.
Nada parecia usado pela vida. Tua coleção
de conchas nacaradas teu chapéu de algas
te denunciavam.
Existes ó ausente ou és somente quem buscamos
numa realidade arisca e improvável?


Dora Ferreira da Silva, In "Poemas da Estrangeira"

04/05/08

Poetas



"Em pura ausência (I)"


Em pura ausência
reconstruo o dia.

Fugiu-me a alma das coisas.
A rosa não é rosa,
apenas uma sombra.

A música de Mozart
é triste melodia
na tarde que se escoa.

Tua ternura antiga
urge ser esquecida.
Destruo lembranças

como quem queima
a vida.

Lara de Lemos. In "Águas da Memória"

Poetas

Jacopo Tintoretto, Autorretrato, ca. 1547-1548


"Difícil Amor"

Acordas líquido no teu sangue sobre meu sangue
de asas paradas
Acordas distante e próximo e cantas-me o cântico sem fundo
Cantar amigo inimigo cantar dobrado que desde a infância
escutei
E amo-te amo-te sem saber o objecto amado
Sem esquecer todo o óleo derramado em tuas mãos pesadas
De bens que não são os meus
E contudo tudo é amor incoerente e real e que se reconhece
Sem coragem de romper os linhos do amanhã
E não te amo não não se ama esta ferida de mistério
que se sente em já saudade de barro húmido
lavrando no beijo a secura da humilde pele
E eu sei o que é amar e ser amada meus olhos limpos
não dizem adeus.
E os deuses não esperam

Matilde Rosa Araújo, In "Voz Nua"

03/05/08

Poetas

"Dawn", Foto de Annette Blattman

"Paisagens"


Paisagens tranquilas ou desoladas.
Paisagens da estrada da vida mais do que da superfície da Terra.
Paisagens do Tempo que se escoa lentamente, quase imóvel
e às vezes como que de marcha atrás.
Paisagens de retalhos, de nervos lacerados, de "saudades".
Paisagens para tapar as feridas, o aço, o estoiro, o mal,
a época, a corda ao pescoço, a mobilização.
Paisagens para abolir os gritos.
Paisagens como um lençol puxado até à cabeça.

Henri Michaux, In "Peintures"

Poetas

"O pássaro que se apaga"


É durante o dia que ele aparece, no dia mais branco. Pássaro.
Bate as asas, voa. Bate as asas, apaga-se.
Bate as asas ressurge.
Pousa. E depois desaparece. Com um bater de asas
apagou-se no espaço branco.
É assim que se comporta o meu pássaro familiar,
o pássaro que vem povoar o céu do meu pequeno pátio.
Povoar? Bem se vê de que maneira...
Mas permaneço quieto, a contemplá-lo, fascinado
pela sua aparição, fascinado pela sua desaparição.

Henri Michaux, In "Apparitions"

02/05/08

Inabalável Memória

"A lição dos Horizontes"

Um ceu dormente
morre nas curvas baças do Horizonte...
E Ceus e Longes, Horizontes e Ceus,
abraçam-se, confumdem-se irmãmente.

Abraçam-se, confundem-se irmãmente,
- e nem eu sei, ó Horizontes rasos,
atrás de que alto enlevo é que abalais,
sempre com ar ausente,
suspensos, misteriosos, sempre iguais!

Ruim quebranto
que de indiziveis coisas nos alaga,
por todo êste concavo em que habito
vai uma ânsia indefinida, vaga.
Não sabe a gente,
na indecisão em que ela ondeia e erra,
onde termina a Terra e se entra no Infinito,
onde o Infinito acabe e seja a Terra!

A estrofe embaladora da Distancia,
num marulhar de encanto, em nossas veias
dilui-se em opio, em opio se desfaz.
Atrás da fluida estancia,
abalam sem partir os Horizontes,
que essa cantiga, irmã da das sereias
arrastadoramente as leva atrás!

... ... ...
Ó circulo da Vida! Ó mito da Serpente!
Só é feliz quem a lição te aprova!
Meu coração, descansa, não te agites,
- não sejas tu também a Estrada-Nova!

A posse da Existência está somente
na aceitação gostosa dos Limites!

Exalta-te, mas fica! Não te sumas,
meu coração, na febre de abalar!
Desejos sem raiz são cinza, espuma,
- desfazem-se o ar!

Olha, menino e moço. os Horizontes
querem partir, mas deixam-se ficar!

Antonio Sardinha, In "A Epopeia da Planicie"
Coimbra, França Amado Editor, 1940,

Nota 1- conservo sempre a grafia das edições.

Nota 2- as rubricas: "Poetas", "Poemas" e "Inabalável

memória" são só para poemas, mesmo que os autores

sejam conroversos, mas nos comentários poderá ser

escrito o que entenderem sobre o tema. Outras

rubricas existem com outro tipo de preocupações

como, por exemplo, a "Notas soltas"...

01/05/08

Poetas

"Salisbury Plain, South Georgia", Foto de Thijs Heslenfeld

" Princípio e Fundamento"


Quem rega com amor não morre.
Rebentam flores.
Os frutos esplendem.
Rompe a semente
tecido vivo.

Quem rega com amor não morre.
Conhece o início
e os fins do tempo.

Quem rega com amor não morre.
Adianta-se à terra
e serve.

Ruy Cinatti, In "corpo-alma"

Poetas

Retrato de Mme Judith Teixeira, In "Ilustração
Portuguesa", nº 886, de 10/2/1923.


"A Minha Amante"

Dizem que eu tenho amores contigo!
Deixa-os dizer!...
Eles sabem lá o que há de sublime,
nos meus sonhos de prazer...

De madrugada, logo ao despertar,
há quem me tenha ouvido gritar
pelo teu nome...

Dizem - e eu não protesto -
que seja qual for
o meu aspecto
tu estás
na minha fisionomia
e no meu gesto!

Dizem que eu me embriago toda em cores
para te esquecer...
E que de noite pelos corredores
quando vou passando para te ir buscar,
levo risos de louca, no olhar!

Não entendem dos meus amores contigo -
não entendem deste luar de beijos...
- Há quem lhe chame tara perversa,
dum ser destrambelhado e sensual!
Chamam-te o génio do mal -
o meu castigo...
E eu em sombras alheio-me dispersa...

E ninguém sabe que é de ti que eu vivo...
Que és tu que doiras ainda,
o meu castelo em ruína...
Que fazes da hora má, a hora linda
dos meus sonhos voluptuosos -
Não faltes aos meus apelos dolorosos...
- Adormenta esta dor que me domina!

Judith Teixeira, In "Decadência"