24/05/08

Inabalável Memória

"Strasbourg", foto de Benoît Linder


"Querer Ser"


Ser
azul, azul, azul, azul ainda
o voar das águias
o canto dos pássaros
das nuvens o capricho

Ser máquina - máquina magnífica
reluzente, complicada de fios, anilhas
pistões, rolamentos, cabos, rodas
roldanas, parafusos, roscas, alavancas
a funcionar
máquina, só objecto impressionante
a não servir para nada
orgulho humilde
ser água britando de cristal de rocha
serpenteando em floresta virgem
ora lago ora cascata
sôfrega de oceanos
ser crista branca de espuma
das ondas do mar em tempestade
na certeza dum fundo sereno
ser estrela cadente
em galáxias infinitas
arco-íris
porque não o homem invisível?

Não ser... e ser
o aroma das flores
o sabor do sal
o luar-sol da noite
erva no fundo da ravina
neve no alto das montanhas
- não pisadas

Ser corajosa sem medo
cantata de Bach
as quatro estações de Vivaldi
sonata de Beethoven
prelúdio de Chopin
valsa de Mozart
concerto de Stockhausen
sinfonia
polifonia (é talvez uma maneira
de nos amarmos uns aos outros)
xilofone em silêncio
filarmónica em dia de festa na aldeia

Ser leite, gema de ovo
borboleta, pirilampo
o fumo de um cachimbo bem aceso
ser girassol, que maravilha
de Van Goh, que loucura!

Ser o tocar dos sinos à tardinha
o delírio do vento nas searas de Chartres
o flamejar do beijo do abraço
amor perfeito esquecido em livros de horas.

Querer efémero.


Merícia de Lemos, In "12 Poemas", Imprensa Nacional-
Casa da Moeda, Lisboa, 1990 (posfácio de Maria de
Lourdes Belchior)