08/05/08

Poetas

"Um indiano dormindo numa escadaria",
In "Mère Teresa de Calcutta", Paris, Éditions
du Seuil, 1973.


"Os Expostos"

Há ainda pássaros de luz nas árvores anoitecidas.
Os retardatários deixam a avenida, envoltos já em
capas de sombra, e mergulham nas ruelas da cidade
antiga, por onde me aventuro eu também em busca
não sei de quê. Esta mulher triste leva nos olhos, que
não conseguem esconder-se, as cinzas ainda mornas
de um amor. Em toda a parte eros comanda a vida,
mesmo nos bairros da penúria e do fracasso ou da
avidez do negócio que por aqui fervilha. Por detrás
das portas que se fecham adivinha-se gente a fazer
contas ao destino e à escassez, mas há também lá
dentro beijos e abraços de corpo inteiro. O ouro das
aparências empalidece agora. Os olhos da escuridão
gelam gestos e projectos, empurram os desistentes
para as rotinas da sobrevivência.
E eis que encontro a morte nesta rua. Uma jovem,
violentada pela miséria, além se quedou, em chão de
pó, anónimo cadáver a decompor-se, com duas velas
compassivas à sua beira. Aguarda que sobre ele
caiam uma a uma pequenas moedas até se perfaze-
rem as cinquenta rupias que as autoridades exigem
para decidir o enterro.
Não adormeças ainda, não descanses, minha fé na
vida. Mas esta noite é um muro sem limites, com o
implacável reflexo de duas ou três estrelas na
podridão de um charco.

Urbano Tavares Rodriges, In "Rostos da Índia
e alguns sonhos"