"Jumpin' Jack Flash", Foto de Ekkeheart Gurlitt
"Passado Tanto Tempo..."
Procura guardá-las, Poeta,
por poucas que sejam de guardar,
do teu amar as visões.
(Konstandinos Kavafis, Trad. Jorge de Sena)
A partir do local
talvez possa evocar-te...
A praça. A esquina da praça, uma cabine.
Agora tenho tempo... passados tantos anos...
Sei que era noite, e bem noite.
Que andara toda a noite, perdido.
E que ali viera parar, não sei como... -
em busca, certamente,
de um corpo, de outro corpo.
De passagem, furtivamente ali te vi,
encostado.
Reparara em ti imediatamente.
Como não reparar?
Em frente - não, ao lado- não esquecer que havia
uma esquadra.
E dei a volta à praça.
E separei-me de ti, deixei-te ali,
encostado, longo tempo.
Sei - ou adivinhei- que havia em ti o gosto,
o gosto e o propósito,
firme e devoluto,
de te entregares, de possuires.
Eras belo como sempre imaginei a beleza.
Eras jovem e penso
que baixo, de cabelos castanhos, as faces meio
rosadas, os olhos entre o azul e o verde.
Um precipício branco e luxuriante de brancura
expresso no vermelho sanguíneo do teu sangue.
Eras uma promessa e eras, também, oferta.
Eras - serias- a posse, nessa noite, de um pouco
de infinito.
Não esquecer que a praça era guardada.
Não esquecer que me afastei, por fim,
depois de longo e longo tempo rondar,
indeciso...
Ainda hoje- tantos anos passados...-
conservo na lembrança e no arrependimento
de não te ter falado,
de não ter provado, uma a uma, os saborosos
frutos da vida.
Raul de Carvalho, In "um e o mesmo livro"