28/04/08
Poetas
"Noite escura"
Numa noite escura,
Por tormentos amorosos inflamada
(Oh, ditosa ventura!)
Saí sem ser notada,
Estando já minha casa sossegada.
Disfarçada, segura,
Na escuridão subi a secreta escada,
(Oh, ditosa ventura!)
Oculta e emboscada,
Estando já minha casa sossegada.
Nessa noite ditosa,
Em segredo, quando ninguém me via,
Saí sem olhar, suspeitosa,
E sem outra luz nem guia,
Se não a que em meu coração ardia.
Só ela me guiava,
Mais certeira que a luz do meio-dia,
Aonde me esperava
Aquele que eu bem sabia,
Nesse lugar onde mais ninguém surgia.
Oh noite, que me guiaste!
Oh noite, mais amável que a alvorada!
Oh noite que juntaste,
Amado com amada,
Sendo esta naquele transformada!
No meu peito florido,
Que inteiro só para ele se guardava,
Ali ficou adormecido,
Enquanto eu tudo lhe ofertava,
E um renque de cedros brisa dava.
Das ameias a aragem plena,
Quando eu seus cabelos espargia,
Com a sua mão serena
O meu pescoço feria,
E todos os meus sentidos suspendia.
Fiquei, e de mim me esqueci,
O meu rosto reclinado sobre o Amado,
Tendo tudo cessado por si,
Deixando o que antes fora cuidado,
Entre as açucenas olvidado.
In "Poemas de S. João da Cruz" (edição bilingue)
em tradução (e prefácio) de Victor Oliveira Mateus,
Ed. Coisas de Ler.