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" Tempo e Transcendência na poesia de Tiago Nené "
O novo livro de Tiago Nené, logo no primeiro poema, e em jeito de nos transmitir o verdadeiro método de interpretar, firma o que irá ser o princípio estruturante de toda a obra: por um lado, os obstáculos do real na sua dualidade de acidentes na superfície da terra e de coisa a realçar: o relevo ( a vontade do editor ) - mas atente-se, contudo, que este relevo, apesar de algumas vezes aparecer como estático e imutável, é ele que desempenha sempre a função de móbil da acção -; por outro lado, o modo de apreensão desse mesmo real, que não é a razão nem nenhum dos sentidos exteriores, mas sim o coração (... foram os únicos/ que leram o poema que escrevi;) e, finalmente, o tempo, que nos surgirá numa multiplicidade de formas. Esta a tríade que atravessará todo o texto. Aliás, neste primeiro poema constata-se que o plano da coincidência com o real, da apreensão do em-si da coisa, não se faz pela eliminação do sujeito, mas tão-só que este feche os olhos e, suspendendo o tempo, conceba um azul ( o do céu ) emanação de um outro primordial ( a folha azul ), que o criador não pode dar a ver.
Esta errância do eu-poético no tempo, muitas vezes geradora de nostalgia e angústia, conduz-nos à necessidade de entender os vários territórios da temporalidade em que ocorre o périplo poético, e Tiago Nené é minucioso e exaustivo quanto a esse aspecto: o tempo cronológico ( in Jardins Hamarikyu ), o tempo pensado ( in Mulher inexorável ), o tempo meteorológico ( in Azul, segunda estrofe ), o tempo vivenciado ( in De certo Modo ), o tempo actualidade sociocultural ( in Europa ) etc. Mas o poeta não se fica por uma mera enumeração, toda a obra é trespassada pelo digladiar das três determinações essenciais da temporalidade: o passado - " ficamos a respirar o ar um do outro, o ar de um passado/ que nos construiu..." ( in Mapa-Múndi ); o presente - " é que para essas pessoas, estas que agora sobem semi-ausentes/ de si mesmas para um eléctrico " ( in Estação de Outono ); o futuro - " e quando regressares do presente interrompido/ não saberás se és magnólia ou violeta;" ( in Evaporação ). Mas Tiago Nené não se limita ao manipular dos fios de uma já tão conseguida urdidura, vai mais longe: concomitante com este ser no tempo é todo um conjunto de memórias, de observações e de inquietações que vão sendo desfiadas e que desembocam no desencanto do eu-poético, numa sensação de falha impreenchível com constantes alusões à perda e à morte. Se não se vislumbram quaisquer influências de autores como Antero, Florbela ou Nobre, o que é um facto é que se percebe estarmos aqui frente a uma escrita de uma extrema melancolia.
nunca quis ser só distância
sempre houve cavalos
seguindo a minha inutilidade prosperante,
palavras comprometidas com toda a imitação
de sentimento e bicho.
sempre me esvaziei da responsabilidade
de semear o meu tempo,
cresci ajoelhado, em constante
importância assintomática.
depois soube que o tempo castiga
um silêncio em silêncio
e então comecei a guardar as palavras.
( in O Guardador de Palavras )
o tempo é o eco da primeira palavra
esquiando sobre o gelo fino;
eternamente repito a ignorância
permanecente nos seus cabelos longos
e eléctricos;
estou de novo no começo da falha
apesar de o tempo ter os pés em chamas
e correr como sangue não reconhecido
...
( in Subgluttiare )
Este último excerto traz para a boca de cena aquilo que é o nó górdio que continuará marcando indelevelmente o coração de tempo ( o eco da primeira fala; ), pois a eternidade é a única intemporalidade possível ( in Carta a um jovem poeta ). Como entender um coração de tempo agindo, e sentindo, nesse mesmo tempo, já que sempre acicatado por todo um relevo móbil, que constantemente se afirma num modo peremptório e de relevo? Esta é a pergunta a que o poeta tenta responder; esta é também uma das questões fundamentais que tem marcado a cultura ocidental. Stephen Hawking, contestando a teoria aristotélica do lugar natural, bem como a concepção de tempo absoluto que vigorou até Newton, é bastante claro quando se refere ao Bing Bang: " Se houve acontecimentos antes desse tempo, não podem afectar o que acontece no tempo presente. A sua existência pode ser ignorada, por não ter consequências observáveis." (1) Numa outra passagem desta obra Hawking cita, com pouco rigor, o gracejo referido por Santo Agostinho de que Deus preparava o inferno para quem perguntasse o que fazia ele antes da criação; é evidente que essa alusão pretende afirmar que, numa perspectiva religiosa, só faz sentido falar de tempo após o Big Bang, mas Santo Agostinho, numa invocação a Deus, - e para o que aqui nos interessa - reitera, na sua abordagem, a existência de um plano imutável e eterno: "(...) e o vosso dia não é um mero acontecimento quotidiano, é um perpétuo hoje, já que esse vosso hoje não cede lugar a um amanhã e o amanhã não sucede a um ontem. O vosso hoje é a Eternidade..." (2). Esta dicotomia entre um tempo onde somos chamados a ser, e a agir, de acordo com todos os relevos móbiles, e uma eternidade com a qual o nosso coração de tempo se mede e se confronta, não é exclusiva dos autores cristãos: século e meio antes de Agostinho de Hipona, Plotino tinha discorrido já sobre o mesmo tema, numa perspectiva radicalmente distinta. Plotino, no seu quadragésimo quinto tratado, Da Eternidade e do Tempo, estabelece, logo no início, que este só pode ser medido a partir da eternidade, depois, ao longo de toda a obra, vai inventariando o que essa eternidade não é, por fim - e recusando a ideia de Criação!- , este neoplatónico é peremptório ao defender que a temporalidade não depende já da vontade de um qualquer deus, mas da natureza curiosa da acção, isto é, da alma que, recusando a sua permanência no suprasensível, se encaminha depois para o sensível, inaugurando assim o tempo: "(...) a alma recusa que todo o ser inteligível lhe seja presente de imediato. Ela actua como a razão espermática que sai de um germe imóvel, desenvolvendo-se evoluindo a pouco e pouco, parece, na direcção da pluralidade, e manifesta essa mesma pluralidade cindindo-se (...) ela perde a força que lhe é própria durante este caminhar." (3) Depois deste perambular por temas fundamentais da cultura do ocidente, poder-se-á estabelecer a ponte com a poesia de Tiago Nené, através de alguns dos sesu versos, para assim dar a ver o quanto esta mesma poesia se encontra enraizada no que de mais arguto e inquietador uma dada cultura tem pensado: " lêem-nos nos olhos um intemporal esquisito e uma/ omnipresença pecadora, um dia à luz da vela" ( in Jardins Hamarikyu ), "corrompidas até ao osso efémero;/ e é tudo um material de luxúria(...)/ o emprenhar do infinito nas cores da boca;" ( in O Fim Vai Dentro do Corpo do Começo ). Convém acrescentar, no entanto, que este almejado "para lá" de um sensível turbilhonar é alcançado, não por uma evasão desse mesmo sensível, mas por um acto transmutativo operado por um coração de tempo após a evidência de todos os relevos móbiles; Tiago Nené, como Plotino e Agostinho de Hipona, aceita a existência dos já referidos dois planos, mas, ao contrário deles, escreve que o seu "além" só pode abrir-se no "aqui", e através de uma nova tríade: o Amor, a Poesia e a Autenticidade:
é possível que viver signifique contrafazer-me,
sim, é possível, desmontar o inato toda a vida,
as crenças, as igualdades e impossibilidades inatas,
os sorrisos que parecem astros de culto;
tudo é possível, mas requer um convencimento,
( in Um Círculo Hermético )
um tempo nunca se explica a si mesmo,
um tempo é explicado por outro tempo,
o meu problema é amar-te sem saber
qual o tempo que o explica
( in (...) )
poesia é a arte metafísica de escavar as palavras
e encontrar outras palavras;
e escavar estas palavras e encontrar outras
palavras;
foi assim que escrevi o teu corpo
e, escavando as suas palavras; encontrei
outras palavras
que diziam ser a outra metade da solidão a esperança
e os nossos corpos
o princípio da distância;
( in O Princípio da Distância )
Esta poesia vinca a ideia de que a transcendência se afirma como um trancender no "aqui", lugar onde Poesia, Amor e Autenticidade se deverão interligar para imprimir num coração de tempo não só momentos de plenitude, mas sobretudo a mais lúcida angústia (4) motivada por tão ingente projecto poético-existencial.
Convém acrecentar que esse Outro passível de uma vivência amorosa, de uma partilha autêntica e de poetificação não se restringe à figura de um ente específico (humano ou não), ele possui, em vez disso, um carácter universal e abrangente, isto é, o que o eu-poético persegue acima de tudo - embora nunca o diga de forma directa!- é essa comunhão amorosa, autêntica e poética com tudo aquilo que é: "(...) mas aqui estás tu, dormindo/ na minha revista científica, sobre a qual os/ pulmões dos meus dedos te escutam" (in A Criança de Neandertal ), "(...) e só quando/ a sua bondade se exercitou na sede de outrem,/ na lama, e depois no mais inalcançável," ( in Instinto ), " dos que sofrem impossivelmente/ sobre os detritos das palavras, sobre/ o humor aleatório do tempo;" ( in Europa ).
A um intento complexo do sentido, correspondem, nesta poesia, preocupações estilístico-formais igualmente abrangentes: não se demarcam fronteiras nítidas entre o metafórico, mesmo que as metáforas tenham o sabor do mercúrio ( in Criaturário, sobretudo os dois primeiros versos deste poema), as comparações de grande riqueza imagética e um quotidiano de referencial imediatista; utilizam-se aspectos de todo um aparelho pertencente às ciências exactas, quer através de títulos ( O Princípio da Distância, Definição por Comparação ), quer na estrutura do próprio texto, como é o caso do irrepreensível poema "Um excerto de experiência", que me fez lembrar a Teoria da Relatividade; já na linha do seu livro anterior, o poeta dialoga com outros autores quer através de epígrafes quer de poemas ( in O Bom Poeta, Carta a um Jovem Poeta - a fazer lembrar Rilke -, Canção Para Matsuo Bashô) e neste livro o diálogo alarga-se à música ( in Subluttiare ) e ao cinema ( in A Idade da Inocência ), finalmente urge também não esquecer um discorrer de cariz metapoético que poreja em muitos dos poemas.
Por tudo o que já referi, penso estarmos ante um livro de poesia que alia, de forma admirável, um excelente domínio da escrita e de estruturação das diversas unidades poemáticas na sua conjugação com a obra enquanto todo, com preocupações de grande riqueza de sentido; talvez porque - quem sabe?- para Tiago Nené aquilo que existe e/ou é não se resuma à mera possibilidade de se autofrequentar ( in A Dimensão do Ser, 11º - 13º versos).
(1) Stephen W. Hawking, Breve História do Tempo, Gradiva, Lisboa, 1988, p 27 ( Relativamente a este tópico ver igualmente: Les lois du chaos de Prigogine, Flammarion, e O Nascimento do Tempo de Ilya Prigogine, Edições 70; Lisboa, 1988, pp 51 - 60).
(2) Saint Augustin, Les Confessions (Livre onzième, chapitre XIII ), Garnier-Flammarion, Paris, 1964, p 263 (tradução de minha autoria).
(3) Plotin, Troisième Ennéade (III, De L'Éternité et du Temps), Les Belle Lettres, 2002, p 241 (tradução de minha autoria)
(4) Cf. paragº 15 ( El ser de los entes que hacen frente en el mundo circundante) e paragº 40 ( El fundamental encontrar-se de la angustia, señalando "estado de abierto" del "ser ahí) in El Ser u el Tiempo, Martin Heidegger, Ediciones F.C.E., Madrid, 1980 ( Traductión de José Gaos.)
Victor Oliveira Mateus in Nené, Tiago. Relevo Móbil Num Coração de Tempo. Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim Editora, 2011, pp 7 - 14.
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