A forte aptidão metafórica da poesia de Victor Oliveira Mateus, pelo inesperado de certas associações lexicais e pelo fulgor de imagens extremamente certeiras e originais, consubstancia-se numa fala subtil que se move em torno do movimento em direcção ao Outro e da noção de Ausência; nela joga-se a inquietação do sujeito num mundo polarizado entre o Absurdo e a Graça, o Efémero e a Luz.
Esta voz feita de palavras ancoradas num ritmo discursivo não nomeia, antes, faz escutar o rumor quase inaudível das pequenas coisas (muitas vezes até no Silêncio e pelo Silêncio no interior dos versos); sobretudo nos primeiros poemas da sequência de "A Noite e a Voz", o "tu" surge frequentemente como contraponto ao real, por vezes como uma espécie de oásis no Absurdo, representado por uma imagética sensorial de cores, luz, sons e odores - em que são recorrentes o "brilho", a "luz", a "estrela", a "cintilação", o "cristal", o ´"murmúrio", a "música", a "voz", o "cheiro". Presença evocada, por vezes partilhada (1.,2), presença metonímica e constante - o "olhar", os "olhos", a "boca" (4.,6.,11.) - associada ao "rigor dos afectos", ao "cataclismo dos desejos" (12.), mas inevitavelmente sob o signo da ausência, quer pelo movimento de chegada/ partida ou desencontro - sinal do efémero e paradoxal dos sentimentos (1.,2.,5.,7., 18.,20.,27.), de "assalto" (3.,4.) quer pela antecipação da mesma, pelo saber que "nada fica para sempre" (4., 11.). Mesmo quando há comunhão, partilha, esta é sempre marcada pela antecipação da disforia pelo "eu", suspenso "entre o eterno e o sabor inadiável da morte" (7.,8.,11.,21).
Ausência é ainda morte e Absurdo: morre-se "de ausência" (19.) e ausência dos "amigos mortos", o luto da perda primordial, arrasta consigo o Absurdo e o despojamento (24.,26).
Este movimento em direcção ao outro, embora simultâneo do sofrer do Absurdo e do Efémero, é também muitas vezes, uma busca do Sentido, de "outra coisa" (2.,6.) e a evocação dele, uma "subtil fresta/ aberta numa montanha de alcatrão e corvos secos" (3) ou um lampejo da Graça (6.). Assim, afectos/ fantasia/ interioridade opõem-se à "vastidão fria do labirinto" (10.) e à "voraz negritude da cidade" (5.), à exterioridade, sempre sinalizada negativamente: "efémero/ gotejando filamentos de absurdo" (2), "céu de bruma e desespero" (6.).
Mas as formas de aceder ao Outro são também solidárias, há no poema a integração da consciência crítica, a combinação de uma dimensão ética e poética na abordagem do quotidiano (15.,23.,24.,28.).
Consiste muitas vezes no silêncio o mais perfeito abrigo para a alma, sobretudo quando o Absurdo atinge com a força de uma realidade opaca e cega, mas a poesia pode não limitar-se ao dizer - e por isso, cenários como a guerra, o "bombardeamento sobre a Sérvia/ que deixou todos aqueles mortos na estrada" e a doença, o insidioso cancro mudo do "adolescente do gorro de lã" e dos "três velhos da sueca" sublinham, expõem cruamente esse binómio ausência/ absurdo, chaves para a leitura da rede de sinais do horizonte poético de Victor Oliveira Mateus, igualmente presentes nestes textos em que o Outro assume tais contornos colectivos e sociais: o absurdo na ausência de sentido da guerra (15) e da doença (16.,17.).
Não obstante, Absurdo e Graça coexistem na deslumbrante leveza dos sinais que a beleza do mundo nos oferece e que esta poesia assinala, como se aquilo que verdadeiramente é nunca possa ficar preso nas teias do primeiro: a inocência da joaninha (25.) e do esquilo, "pequena roda de maravilha na maquinaria desdentada do mundo" (28.), a ilha onde "apesar de tudo" há "uma lucerna/ pequenina, um pássaro nunca visto no halo fresco da madrugada" (23.), "a alegria das coisas simples" (29). Aliás, abandonada a incessante busca do Outro, superados a Ausência e o Absurdo, chega-se ao despojamento, à iluminção do Grande Despertar, já entrevisto nos poemas sobre a morte.
Perpassa por toda esta escrita uma espécie de sabedoria que integra ainda na sua voz os elementos da natureza: "água", "fogo", "sol", "lua", "rio", "planta", "ave", e sabe transmitir a vibração de cada um dos seus mais ínfimos átomos às palavras dos versos: passado o caminho dos "longos ribeiros quase secos", das "velhas estradas de pedra", no final de um percurso no qual o Outro, as paixões, o Absurdo e o Efémero marcaram as vivências do sujeito, faz-se a superação - "Passado está, enfim, todo o caminho: ponte, provação necessária" (31.) e opera-se a passagem para a Iluminação, para o Grande Despertar - a sós e ao som da música.
E assim, na "continuação da Noite,/ interminável " (30.) se chega à síntese, pela superação dialéctica - a Poesia é a Voz e a Voz a Poesia, lugar da serenidade, da aceitação e do apaziguamento possíveis no mundo da ausência.
Ana Paula Dias in Mateus, Victor Oliveira. A Noite e a Voz. Lisboa: Universitária Editora, 2001, pp 5 - 7.
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