O que mais me impressionou nessa poesia é a tensão constante entre o discurso e a forma do verso. Se é que de verso se trata. Temos de fazer algum esforço, colocar a linha entre parêntesis, para ouvir mais próxima a cadência dos outros versos, que se escondem dentro e ao redor dos definidos pela tipografia. Ao mesmo tempo, os cortes trazem um princípio de medida. Muito além, entretanto, do limite das doze sílabas: bárbaros, como se dizia. Em alguns poemas, a persistência do número de sílabas (em extensões médias de catorze, por exemplo) cria como um discurso duplo. Há uma frase que se ergue pela força do sopro lírico - a direção entusiasta da frase, para aproveitar remotamente uma formulação de Mallarmé - e que se vaza num molde abstrato, que a rompe, sem a impedir de se afirmar no seu ritmo próprio. Lembrando versículos entranhados num corpo estranho, o fraseado impõe aos poucos os princípios da sua regularidade, de que resultam interessantes harmónicos de sentidos. Por qualquer ângulo que se olhe, o que este livro faz é expor uma percepção aguda de cambiantes e contrastes. Uma desproporção anima o embate dos opostos: interior e exterior, carência e posse, olhar para o outro e olhar do outro, sensação de partida e anseio pelo regresso. O discurso constitui os temas. A forma do verso os cristaliza, por meio do corte violento e aparentemente arbitrário, dos blocos regulares de linhas que se sucedem além dos requisitos ou emblemas da sintaxe, nos quais de repente brilha uma frase repetida, modulada agora pela nova posição em que se encontra. O motivo do retorno dá o título e tom dos poemas. O poeta retorna pela memória, pela celebração do momento efémero. Retorna a si mesmo, à história de si que repete à beira do momento do abismo. Mas as suas palavras recusam o retorno fundamental. Apenas como desenho abstrato e como injunção de leitura se define esse verso. A voz coletiva do pulsar antigo aparece como escolho, ponto de referência, tentação. Por isso talvez não sinta que há de fato um tu nesses versos. Ainda quando surja, é uma duplicação da voz, um espelho, um caminho ou uma fuga de si mesmo. Uma busca, afinal. Mas essa, apesar da intenção, nunca redunda em retorno, nem se resolve em reencontro, mas apenas em viagem cujo fim só poderá ser também o fim do viajante. O que senti quando li este livro é que, para um desígnio tal e uma tal concepção do tempo e dos limites da própria percepção, a vida é mesmo um milagre, o verso também e, maior que todos, seria o regresso, se pudesse acontecer.
Paulo Franchetti in Mateus, Victor Oliveira. Regresso. Fafe: Editora Labirinto, 2010, pp 43 - 44.
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