30/07/10

Publicação...

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Acabou de sair a "NAVEGAÇÕES - Revista de Cultura e Literaturas de Língua Portuguesa",
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no seu Vol. 3 No 1 (2010). A referida publicação pertence à PUCRS (PONTIFÍCIA UNIVERSI-
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DADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL) e está organizada em quatro capítulos: Editorial,
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Ensaios, Entrevistas/Documentos, Recensões. Dada a grande quantidade de temas e autores,
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assinalarei apenas, por motivos óbvios, o terceiro desses capítulos:
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Entrevistas/ Documentos:
- Prometeu - Piróforo
Milton Torres
- Aqui me costumava eu sentar
Victor Oliveira Mateus
- Entrevista a Urbano Tavares Rodrigues
João Marques Lopes
- O germinar do ser: os cantos e os campos de Maria Carpi
Marcela Wanglon Richter
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27/07/10

" car c'est avec des nuages que la main écrit: "

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Elles jettent des racines
dans les yeux des fugitifs,
les choses abandonnées,
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et la porte restée ouverte se tait,
corde vocale perdue, au seuil
de la chambre, gorge déserte.
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Soupière, île
sans la vorace marée des bouches,
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table de travail sans la science des étoiles.
Météores au fond de la nuit tombale,
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des lettres que personne n'a lues;
mais leur presse-papiers en cristal de roche
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brille au soleil d'une fenêtre -
car c'est avec des nuages que la main écrit:
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Rose
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déjà sur un ciel nouveau,
et la réponse fut réduite en cendres.
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Aile d'abeille dans le cercueil de verre,
l'exode parmi les tombes est un rayon d'or,
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il fondra au feu du miel
avec la nostalgie en lambeaux,
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quand enfin la nuit s'abat sur le bûcher.
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Nelly Sachs in " Exode et métamorphose", Éditions Verdier, s/c., 2002,
p 14 (Tradução do alemão para o francês de Mireille Gansel).
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O livro-errante bate às portas do ser. Abandonado num quarto de hotel, esquecido no banco do comboio, perdido no aeroporto. Desperta e rejubila com o bafo dos passageiros. Abandonado esquecido perdido. Achado e reencontrado. Tornado imóvel, comprimido numa pilha com outros seres semelhantes. Resgatado ao pó da biblioteca. No outono perdido no bosque e na primavera seguinte recuperado do gelo das folhas e do estrume. Todo ele estremece com a passagem das estações sobre a erva. Todo ele vibra com a passagem do tempo sobre a Terra. Sebento e sujo. Mendigo nos caminhos dos homens. Jazente, renova-se ao contacto com outro ser, também ele errante e fragmentado. Ambos se recolhem um no outro, de si desapossados. Inquietos como dois amantes inexperientes. Deste encontro fazem revelação. O livro-errante é o livro-leitor-feliz. Ambos conhecem a lentidão amorosa, o suspiro na queda e a perda. Ambos caem com volúpia.
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Manuel Silva-Terra in " Lira ", Editora Licorne, s/c., s/d., p 11.
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25/07/10

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                            "Lobisomem"
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Não preciso de luas cheias para que os uivos se soltem da garganta e sigam disparados contra as estrelas. Basta-me o quarto minguante das iniquidades, a lua gibosa dos hipócritas, a mediocridade dos cretinos aleitados pela sagrada vaca da pesporrência.
Na verdade, não careço de dia treze para que o azar me bata à porta e entre sem sequer eu ter oportunidade de perguntar quem bate. Queixar-me não posso, mas dói quando o pêlo irrompe dos poros, as unhas saltam afiadas para fora dos dedos, os dentes procuram a carne que satisfaça o apetite.
Quem pensar que não dói, desengane-se. Pago a raiva com uma incomensurável solidão. Mais ainda quando dizem estar comigo todos os crápulas de latido dissimulado. Debaixo do meu uivo, mal podem imaginar sua ínfima condição de cachorros domésticos.
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Henrique Manuel Bento Fialho in "Estranhas Criaturas", Deriva Editores, Porto, 2010, p 24.
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" Em nada existe, em nada além da idéia "

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"A fonte "

(sobre "O Balanço", de Fragonard )
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Mera e moral, a um canto da tela,
a fonte em que o Amor ou outro deus,
em gesto, se de cúmplice censura,
nada acrescenta à cena ou tira dela.

Em nada existe, em nada além de idéia
tão decadente de que o olho espera
um recesso de água e de penumbra
se, quando nume, um corpo de mulher flutua;

se o desejo (ou o clichê dele) nos inunda
à visão de um balanço e uma mulher
cujo vestido voa, e o gesto pondera;

se uma mulher tão ruiva e de coxas tão brancas,
muda e veloz, chuta o sapato longe,
faz que recusa, e já nos abre as pernas.

Cláudio Neves (Inédito)
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24/07/10

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I
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Pouco a pouco aprendi
o perigo das renúncias demasiado rápidas.
Pouco a pouco fui antecipando a mácula que se contém
no outro lado de uma jura
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I (A)
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Na vitrina de um antiquário
distingui imitações sob a força da emoção.
Entrei, pedi a máscara
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II
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O ler no branco glacial e liso é feito de recomeços,
progressos e muita paciência.
Digamos que é uma cura lenta, mas não precária.
Dolorosa, sim.
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Tento espaçar as crises
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II (A)
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Sem o confessar, durante esses períodos de disciplina
os sentires surgem-me apenas como sintomas
que se vão comunicando à alma
até que de um novo ponto de partida
surjam em grau de tentação
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II (B)
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Só por essa razão as sombras perdem o seu embaciado
porque atrás de uma ideia vem outra
e a alma desembaraça-se do corpo como de um vício
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II (C)
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Renovam-se as inocências sem o peso dos remorsos
que se prolongaram no tempo excessivos
face a extraordinárias insignificâncias

Teresa Vieira in "Escritos Sobre a Pele", Dinalivro, Lisboa, 2005, pp 77 - 78.
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23/07/10

" Oh, mar, dá-me a tua cólera tremenda, / eu passei a vida a perdoar, "

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"Diante do Mar"

Oh, mar, enorme mar, coração feroz
de ritmo desigual, coração mau,
eu sou mais tenra que esse pobre pau
que, prisioneiro, apodrece nas tuas vagas.
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Oh, mar, dá-me a tua cólera tremenda,
eu passei a vida a perdoar,
porque entendia, mar, eu me fui dando:
"Piedade, piedade para o que mais ofenda".
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Vulgaridade, vulgaridade que me acossa.
Ah, compraram-me a cidade e o homem.
Faz-me ter a tua cólera sem nome:
já me cansa esta missão de rosa.
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Vês o vulgar? Esse vulgar faz-me pena,
falta-me o ar e onde falta fico.
Quem me dera não compreender, mas não posso:
é a vulgaridade que me envenena.
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Empobreci porque entender aflige,
empobreci porque entender sufoca,
abençoada seja a força da rocha!
Eu tenho o coração como a espuma.
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Mar, eu sonhava ser como tu és,
além nas tardes em que a minha vida
sob as horas cálidas se abria...
Ah, eu sonhava ser como tu és.
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Olha para mim, aqui, pequena, miserável,
com toda a dor que me vence, com o sonho todo;
mar, dá-me, dá-me o inefável empenho
de tornar-me soberba, inacessível.
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Dá-me o teu sal, o teu iodo, a tua ferocidade,
ar do mar!... Oh, tempestade! Oh, enfado!
Pobre de mim, sou um recife
E morro, mar, sucumbo na minha pobreza.
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E a minha alma é como o mar, é isso,
ah, a cidade apodrece-a e engana-a;
pequena vida que dor provoca,
quem me dera libertar-me do seu peso!
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Que voe o meu empenho, que voe a minha esperança...
A minha vida deve ter sido horrível,
deve ter sido uma artéria incontível
e é apenas cicatriz que sempre dói.
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Alfonsina Storni in "O mar na poesia da América Latina", Assírio & Alvim,
Lisboa, 1999, pp 131 - 133 (selecção e ensaio de Isabel Aguiar Barcelos, tradução
de José Agostinho Baptista)
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21/07/10

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"Encontro"


Este lugar é outro.
Balançam bambus ao vento
as tranças desiguais.
Ninguém responde às minhas palmas.
Onde o cão habitual
farejando o imprevisto?
Atenho-me às plantas, ao fundo do quintal
com suas raízes.
Têm sede, não chamam.
Com o cansaço da tarde, vou olhando:
cancelas arruinadas,
um carrinho tombado, vertendo terra mais escura;
um jarro de esmalte branco, antigo,
entre outras coisas
muito abandonadas.

Há marcas na terra seca e solta,
marcas de brinquedo:
tampinhas de garrafa e um aro em meia-lua
de metal prateado.
Vejo o que há de irregular e errático
na menor alegria.

Sento-me num banco debaixo da ameixoeira.
É um banco pequeno, incômodo,
um banco de criança.
O que fazer?
Já bati palmas, feri o silêncio
deste recanto calmo.

Balançam bambus ao vento
as tranças desiguais.
Este lugar é outro.

Dora Ferreira de Silva in "Poesia Reunida", Topbooks Editora,
Rio de Janeiro, 1999, pp 67 - 68.
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20/07/10

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"Metafísica"


Vai tempo onda marinha afogando teus mortos
rola na orla estreita búzios e medusas
põe no ouvido ávido dos vivos
a breve canção do invisível mar
canção de um longe que ressoa
vai tempo fantástica maré
anêmona vibrante
colhe em teu cerco o sorriso do homem
e o pólen dos séculos

Voa pássaro marinho
semente viva entre rochedos
foge para as ilhas
à beira das águas taciturnas

Tempo
mar e marinheiro
barco e viagem
arrasta teus cansados velames e o vento que os impele
vai velho marujo
rumo aos horizontes incompletos

Dora Ferreira da Silva in "Poesia Reunida", Topbooks Editora,
Rio de Janeiro, 1999, p 40.
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19/07/10

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Because that you are going
And never coming back
And I, however absolute,
My overlook your Track -

Because that Death is final,
However first it be,
This instant be suspended
Above Mortality -

Significance that each has lived
The other to detect
Discovery not God himself
Could now annihilate

Eternity, Presumption
The instant I perceive
That you, who were Existence
Yourself forgot to live -

The "Life that is" will then have been
A thing I never knew -
As Paradise fictitious
Until the Realm of you -

The "Life that is to be," to me,
A Residence too plain
Unless in my Redeemer's Face
I recognize your own -
Of Immortality who doubts

He may exchange with me
Curtailed by your obscuring Face
Of everything but He -

Of Heaven and Hell I also yield
The Right to reprehend
To whose would commute this Face
For his less priceless Friend.

If "God is Love" as he admits
We think that he must be
Because he is a "jealous God"
He tells us certainly

If "All is possible with" him
As he besides concedes
He will refund us finally
Our confiscated Gods -

Emily Dickinson in "Poemas e Cartas", Edições Cotovia, Lisboa,
2000, pp 112 - 114 (Organização: Nuno Vieira de Almeida).
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17/07/10


Wild Nights - Wild Nights!
Were I with thee
Wild Nights should be
Our luxury!
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Futile - the Winds -
To a Heart in port -
Done with the Compass -
Done with the Chart!
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Rowing in Eden -
Ah, the Sea!
Might I but moor - Tonight -
In Thee!
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Emily Dickinson in "Poemas e Cartas", Edições Cotovia, Lisboa,
2000, p 32 ( Organização: Nuno Vieira de Almeida).
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16/07/10

"(...) car la crédulité jamais/ ne cesse d' être à la mode."

Kiki Dimoula publica o seu "Le Peu du monde" - em Atenas, claro! - em 1971. O livro "Je te salue Jamais" aparece em 1988 (em 1981 tinha feito sair uma outra obra), mas o que importa aqui é que em 1988 fazia três anos que o seu marido - e companheiro - morrera. Atentemos até ao título da própria recolha poética. Kiki vivera assim 32 anos com o poeta Àthos Dimoulas, de quem teve dois filhos. Mais tarde, numa biografia, escreverá mesmo que os seus "verdadeiros estudos superiores" foram os anos que passara ao lado de Àthos. Em "je te salue Jamais" é constante a referência à serenidade, acentua-se também o "diálogo com as fotografias" e é recorrente uma ironia, por vezes amarga, por vezes cínica. Em 1994 Kiki Dimoula ainda publicará um outro título significativo: "A adolescência do esquecimento"... Estamos, pois, frente a uma poesia marcada pelo movimento ininterrupto daquilo que É para o Não-Ser e vice-versa, muitas vezes mediatizado pela memória e pelo diálogo com as fotos, estas também dinânimas e a precisar de serem cuidadas. Kiki Dimoula virá a ingressar na Academia Grega das Letras em 2002.
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" Défense Aérienne"
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Le calme absolu en moi
met toujours ses pantoufles à tout hasard.
Des désirs logent à l'étage en dessous.
Bien sûr ils déclarent être sourds.
Les illusions déclarent être aveugles
mais elles te flairent te voient
derrière leurs lunettes noires
elles te mettent
à nu pour les avoir crues.
Tu ne les as crues. Elles t'émeuvent aveuglément
jouant leur musique assises
à l'un de tes fructueux passages ombragés
elles t'émeuvent aveuglément grattant
leurs vieux succès car la crédulité jamais
ne cesse d'être à la mode.
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Eh bien qu'ils gardent à tout hasard
leurs boules dans les oreilles
mes gestes prompts à s'émouvoir.
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En tous cas préférez les morts.
Préférez les morts
s'il vous faut prendre une erreur en pitié.
Eux du moins ne sont pas de passage.
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Kiki Dimoula in "Le Peu du Monde suivi de Je te salue Jamais", Éditions Gallimard,
Paris, 2010, p 143 (traduzido do grego para o francês por Michel Volkovitch).
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15/07/10

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- Oh, oh, não sei - disse Nick. - Eu, de política, não percebo nada.
Havia alguma crispação no rosto de Bertrand. - Bem sei, você é o raio do esteta.
(...)- Oh, eles estão todos apaixonados por ela. Ela tem olhos azuis e hipnotiza-os- - Os seus olhos escuros procuraram estremecidamente o marido e, logo a seguir, o filho.
- É só uma espécie de amor cortês, não é verdade - disse Nick.
- Pois... - disse Wani, com um aceno de cabeça e um breve sorriso
(...)- Claro que ela é uma grande figura da nossa era. Mas também é uma mulher muito atenciosa(...) Vou fazer um importante donativo para os fundos do Partido, e... quem sabe o que virá depois (...) Os meus princípios são estes, meu amigo, quando alguém nos ajuda, nós temos a obrigação de retribuir essa ajuda, de compensar essa pessoa (...)
- Ah, com certeza - disse Nick (...)- Sentia que, inadvertidamente, se tornara o foco de uma intensa animosidade por parte de Bertrand.
- Nesta casa, não ouvirá uma única queixa acerca dessa grande senhora!
- Bom, e na minha também não, posso garantir-lhe!
Nick lançou um olhar rápido aos rostos submissos dos outros.
.....
Nick não resistiu. Snifou a sua linha e afastou-se. Depois, Wani voltou a enrolar a nota e, no preciso momento em que baixava a cabeça para atacar o pó, ouviram um vago ruído de passos, muito perto, já na volta das escadas (...) Wani snifou a sua linha, só por uma narina, meteu a nota ao bolso, a nota e o pacote, e virou o livro, tudo num segundo ou dois.(...) Nick nunca o vira tão ansioso; e, de algum modo, enquanto o olhava nos olhos, Nick sabia que Wani acabaria por puni-lo pelo simples facto de ele ter presenciado aquele momento de pânico. O problema era menos a droga do que a sugestão de uma intimidade culpada.
(...) Para Wani, o primeiro impacto da coca traduzia-se sempre por uma urgência erótica e para Nick também. O primeiro beijo viera com a primeira linha de coca que tinham snifado juntos, a boca de Wani azeda de vinho, a língua disparando sôfrega, os olhos timidamente fechados (...) Tudo parecia possível - o mundo era não só praticável, conquistável, mas também susceptível de ser amado: o mundo mostrava as suas fraquezas e uma pessoa sabia que ele acabaria por se submeter à sua vontade, uma pessoa via o seu próprio encanto reflectido nos olhos do mundo (...) Nick, com o fato de risca fina - finíssima, de facto - que Wani lhe comprara, parecia mesmo um daqueles jovens, exemplares típicos da época, que se entregavam intensamente, agressivamente, a uma profissão liberal ou a uma carreira nos negócios, o banqueiro, o traficante, ou mesmo o agente imobiliário (...) Enquanto afagava o pénis de Wani através da braguilha aberta e lhe beijava o pescoço, fazendo com que a pele dele se crispasse de arrepios, Nick ria-se, mas, ao mesmo tempo, sentia-se embaraçado, quase chocado, por estar a ouvi-los naquilo (...) ficou a pensar se Catherine estaria a gostar, se Jaspers não estaria a portar-se que nem uma besta (...)quando ela precisava que a tratassem com extremo cuidado e carinho.
(...) Vistos da varanda, naquele entardecer de fins de Julho, os jardins ganhavam uma profundidade extrema, como se houvesse sempre outro verde para lá do último verde(...)
Nick fez um esforço para não parecer surpreendido, enquanto tentava descobrir por que razão estaria Polly a gozar com ele- Disse: - Não me surpreenderia, actualmente, há uma espécie de gravidade social invertida, não é. As pessoas caem, afundam-se, para cima.
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Alan Hollinghurst in "A Linha da Beleza", Edições Asa, Porto, 2005, pp 252 - 297.
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A poesia de Chico Buarque...

para hoje, mal cheguei a Lisboa.

14/07/10

" E desvendar-lhe a vida, o mundo, o gozo, "


" Cinismos "
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Eu hei-de lhe falar lugubremente
Do meu amor enorme e massacrado,
Falar-lhe com a luz e a fé dum crente.
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Hei-de expor-lhe o meu peito descarnado,
Chamar-lhe minha cruz e meu calvário,
E ser menos que um Judas empalhado.
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Hei-de abrir-lhe o meu íntimo sacrário
E desvendar-lhe a vida, o mundo, o gozo,
Como um velho filósofo lendário.
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Hei-de mostrar, tão triste e tenebroso,
Os pegos abismais da minha vida,
E hei-de olhá-la dum modo tão nervoso,
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Que ela há-de, enfim, sentir-se constrangida,
Cheia de dor, tremente, alucinada,
E há-de chorar, chorar enternecida!
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E eu hei-de, então, soltar uma risada.
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Cesário Verde in " O Livro de Cesário Verde", Editorial Minerva, Lisboa,
13ª Edição, pp 166 - 167.
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13/07/10

" pero regresso al bosque/ donde perdí mi rastro. "


"Tejados de Rashomon"

Una mentira
puede reconocerse en esta lluvia
constante y rectilínea
como la huella exacta
del temblor en tu mano.

No entiendo nada,
ya no se mira igual desde el recuerdo
de tu cuerpo tendido
sobre el viento que vuelve
a trazar mi paisaje.

Como madera,
todos mis pasos crujen en las sombras
de esta vida forzada
sobre el silencio opaco
de mis dudas secretas.

Mírame ahora,
en la derrota de mis viejos párpados
es el amor difícil,
pero regresso al bosque
donde perdí mi rastro.

José Ángel García Caballero in " Llaves Olvidadas", Editorial Renacimiento,
Sevilla, 2010, pp 53 - 54.
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12/07/10

"Auto-retrato"


Um poeta nunca sabe
onde sua voz termina,
se é dele de fato a voz
que no seu nome se assina.
Nem sabe se a vida alheia
é seu pasto de rapina,
ou se o outro é quem lhe invade,
com a voragem assassina.
Nenhum poeta conhece
esse motor que maquina
a eclosão da coisa escrita
contra a crosta da rotina.
Entender inteiro o poeta
é bem malsinada sina:
quando o supomos em cena,
já vai sumindo na esquina,
entrando na contramão
do que a palavra lhe ensina.
Por sob a zona da sombra,
navega em meio à neblina,
mesmo que seja pequena
a poesia que o ilumina.

Antonio Carlos Secchin in "Revista Poesia Sempre", Nº 26 - Ano 14/ 2007, p. 147,
Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
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10/07/10

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"Tempo desdobrado"


Há um respirar alheio ao tempo.
Na geometria dos triângulos,
tudo se abre, nada se fecha.

O contrário não exclui o seu contrário,
e por isso quem respira alheio ao tempo
não deixa de estar no tempo desdobrado.

As tílias espalham em redor o seu perfume
de consonâncias perfeitas,
como no Lindenbaum de Schubert.

Cheira a Verão na Avenida Central
e debaixo das tílias falamos
sobre o curso das estrelas,

cuja história é também a nossa,
desdobrada no tempo
no desdobramento do nosso tempo.

Frederico Lourenço in "Santo Asinha e outros poemas", Editorial Caminho,
Alfragide, 2010, pp 38 - 39.
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09/07/10

" L' amour,/ (...) genre désarmé. "

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" Le Pluriel"

L'amour,
substantif,
très substantiel,
nom singulier,
genre ni féminin ni masculin,
genre désarmé.
Au pluriel
les amours désarmé(e)s.

La peur,
substantif,
singulier au début
puis pluriel:
les peurs.
Les peurs
devant tout désormais.

La mémoire,
nom propre des tristesses,
singulier,
singulier rien d'autre
et invariable.
Mémoire, mémoire, mémoire.

La nuit,
substantif,
genre féminin,
singulier.
Pluriel
les nuits.
Les nuits désormais.

Kiki Dimoula in " Le Peu du monde suivi de Je te salue Jamais", Éditions Gallimard,
Paris, 2010, pp 24 - 25 (Tradução do grego para o francês de Michel Volkovitch).
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08/07/10

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Restituir-me por inteiro é dar-me até ao fim.
No jardim barroco, tanques e repuxos gelaram
durante a noite, mas os limoeiros estão intactos
contra os muros caiados de branco.
O gelo no chão não tocou as flores da laranjeira:
este Dezembro, as fontes geladas e as flores
partilham a manhã em conciliada coexistência;
ao meio-dia o termómetro continua abaixo de zero,
mas as árvores meridionais frutificam.
Assim dar-me por inteiro não me isenta de mim,
do mesmo modo que na manhã de Dezembro
a fonte gelada não impede a laranjeira de florir.

Frederico Lourenço in "Santo Asinha e outros poemas", Editorial Caminho,
Alfragide, 2010, p 13.
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07/07/10

" Religando tudo/ Quase tudo "

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"Poeta"

Crivado de mortes
Pessoais e outras
Prossegue
Fantástica-
Mente
Religando tudo
Quase tudo

Alberto de Lacerda in " Átrio ", Imprensa Nacional - Casa da Moeda,
Lisboa, 1997, p 126
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06/07/10

" Eu não ia/ ainda/ partir "

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Não te disse
Vou partir
Eu não ia
ainda
partir
Ia reunir
meus destroços
desencalhar
Meus barcos abandonados
Ia esgueirar-me
erecto
para que as ruínas
Nos não ferissem mais
nunca mais
Sobretudo a ti
ou a mim
Não sei

Aceitar o escuro
sim
Também ele é nosso
Também o escuro
É natureza
natural
Mas de uma vez para sempre
Impedir que os abutres
Nos confundam com a carne
Que os campos de batalha
Rasgaram

Alberto de Lacerda in " Átrio ", Imprensa Nacional - Casa da Moeda,
Lisboa, 1997, p 16.
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Matilde Rosa Araújo (1921 - 6/7/2010)


05/07/10

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      " Partida "
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Quando parti ninguém apareceu à beira da pista.
Quando parti as viagens eram coisa simples e banal,
e não este desejo de procurar um sentido para
a mágoa, uma clareira para a ausência, uma fonte
- minúscula que fosse - para saciar aquilo que
se mantém ininterrupta sede. Quando parti estavam


todos atarefados a viajar, mas de outro modo -
voracidade de prestamistas, esbugalhados olhos
onde o tempo é tão transaccionável quanto um futuro
hipotecado ou uma mera jante enferrujada. Quando
parti tiveram logo o cuidado de me avisar que a poesia
nunca salvara ninguém, que a procura das raízes


(bem como o entendimento de um passado não
acontecido) era coisa tão ridícula quanto obsoleta,
para o sorriso alvar de muitos. Quando parti
a buganvília da moradia em frente estava esplendorosa
e havia um gato a furar a rede. Quando parti
uma mulher no prédio ao lado sacudia um minúsculo


tapete. Acenou-me. Sorriu. Quando parti imaginei
o escárnio deles, os telefonemas de uns para
os outros, as conversas. Quando parti ninguém
apareceu para se despedir. Havia apenas: eu,
um obectivo incerto, o teu rosto a reflectir-se
ao longe e o sol a dar de chapa nas vidraças.

Victor Oliveira Mateus in "Regresso", Editora Labirinto, Fafe, 2010, p 12.
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