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10/06/12

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não é possível ter amado e ser agora uma casa fechada, onde
houve um armário que foi crescendo com vestidos costurados
na paciência do desejo. não é possível ter amado e ser agora
uma casa apagada, onde houve uma música que tocou tanto
que se colou ao papel da parede. não é possível ter amado e
ser agora uma casa desligada, onde houve um bule que fabricou
tantos afectos que o perfume do jasmim ficou preso no coração
das palavras, como uma trepadeira que protege a mansarda do
 inverno. não é possível ter amado e não ser mais que um gato
que se esquiva da alfazema e dos jornais amarrotados. é pos-
sível? não é possível.

  Gonçalves, Daniel. A tua luz costurou-me uma bainha no coração. Fafe:
Editora Labirinto, 2012, p 42.
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08/06/12

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alguma coisa ficou por dizer. afastei as mãos da mesa e
desencontrei-me com as palavras que tinham caído ao chão.
são como instrumentos de sopro avariados. chaves que não
abrem mais a porta do coração. alguma coisa ficou por dizer.
estou infinitamente triste como quem regressa de um bosque
encantado. infinitamente triste como quem teve um deslumbra-
mento de chocolate e agora tudo lhe sabe a terra molhada.

   Gonçalves, Daniel. A tua luz costurou-me uma bainha no coração. Fafe:
Editora Labirinto, 2012, p 20.
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suportei o inverno mais longo de sempre lendo as
entrelinhas do teu vestido. acertei as horas às estrelas
e nas estrelas deixei os sonhos dos embondeiros.
quando dei a volta ao universo regressei ao princípio
da palavra e voltei a cantar tudo de novo, porque era
finalmente uma criação bela, estava transparente como
uma pérola por recolher. parei. deixei-me deserguer
numa colina primordial e inventei uma casa. usei o teu
vestido para fecundar o jardim e sempre que o sol caía
nas hortênsias o amor me encontrava. escrevi os primeiros
poemas. iluminaram-se-me as sombras, mas não tinha
sombras, penas perfumadas somente. como um anjo
que guarda a eternidade, voltei a adormecer despido.
sonhei, estou certo disso, de boca aberta, por onde
se esgotou a tristeza e o pórtico naufragado do
esquecimento.

    Gonçalves, Daniel. A tua luz costurou-me uma bainha no coração. Fafe:
Editora Labirinto, 2012, p 12.
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29/09/09

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"a minha casa"

uma ilha
os livros todos que a poesia
tivesse julgado como abrigo

um solstício suspenso
para a luz ser lida
com tempo

e uma história para
mobiliar as paredes brancas

boa ou má
uma história com um passadiço
para o amor

Daniel Gonçalves In "a casaDescrita", edição de autor numerada e assinada, 2009, p 11.
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"a casa escrita"


a casa escrita
abre a sua grande janela
musical

deixa volutear as suas cortinas
brancas

como a orla de uma dança
cristalina

e chama as cotovias
a água primordial
do dia

o gato azul

para se sentar
no colo do poeta

Daniel Gonçalves In "a casaDescrita", edição de autor numerada e assinada, 2009, p 1.
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18/02/09

Foto tirada por Laurie Campbell, uma fotógrafa profissional da natureza.

não tragas aqui a tua tristeza
não a movas não a demores
não lhe dês outra ilha
que essa vertigem
há-de morrer-te nas mãos

não tragas aqui a tua tristeza
a menos que queiras
um rasgo na tua boca
uma porta acidentada
para a colheita do silêncio

a menos que me ames neste poema
e fiques comigo até entardecermos
no recuo delicado do verão

Daniel Gonçalves In " dez anos de solidão", Editora Labirinto,
Fafe, 2007, p 64.
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