30/06/11

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 "Entretendo o canário"


Penas amarelas,
Será verdade
Que chilreias para o chui
Que bate?

Desiste. Vira o teu
Olhar nervoso
Para a porta aberta da casa de banho
Onde eu ensaboo

As costas da minha amada
E ponho o meu queixo no seu ombro
Para que possa fazer o mesmo
Às mamas e às coxas.

Canta. Agita as tuas asas
Como se aplaudisses,
Ou atiro as suas cuecas negras
Para cima da tua gaiola dourada.

  Charles Simic in "Previsão de Tempo para Utopia e Arredores", Assírio & Alvim,
Lisboa, 2002, p 67 ( Tradução de José Alberto Oliveira).
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 "Le Beau Monde"


Um homem subiu para falar de Marcel Proust,
"O grande escritor francês",
Para um caixote que era famoso pelos discursos
Sobre patrões desonestos e trabalhadores pobres.

Eu juro (Tony Russo é minha testemunha).
Era já noite dentro, a multidão ia diminuindo,
Mas logo todos regressaram
Para ver sobre que era aquela lengalenga.

Ele parecia uma das máquinas de lavar louça
De uma das espeluncas da Avenida B.
Ele roía as unhas enquanto falava.
Dizia isto e aquilo, devia ser em francês.

Toda a gente se empertigou, até os bêbados.
Os valentões deixaram de exercitar os músculos.
Era como estar na igreja
Quando a Missa Cantada era dita em latim.

Ninguém entendia, mas todos ficavem alegres.
Quando acabou foi-se embora, de vez,
Com passadas largas numa grande pressa.
Os restantes atardaram-se a dispersar.

  Charles Simic in "Previsão de Tempo Para Utopia e Arredores", Assírio & Alvim,
Lisboa, 2002, p 47 (Tradução de José Alberto Oliveira).
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26/06/11

" quantas vezes te sei aqui e não te vejo "

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 "Poema 10"

quantas vezes me despeço de ti
sem saber

onde vais

quantas vezes me despeço de ti
sem saber a razão
sem saber de tua mão
sem saber

quantas vezes sem saber
me levanto ao bater da porta
do soalho no passo breve  curto  certo

te procuro nas gavetas
em sombras atrás dos muros
em sombras que o vento traz
com ramos a bater nas vidraças

quantas vezes te sei aqui e não te vejo

me despeço de ti
e não o quero
me despeço de ti
e não te peço

fica

para acalentar meu desassossego

  Inez Andrade Paes in "Paredes Abertas ao Céu", Edição da Autora, s/c., 2010, p 34.
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24/06/11

" a mim que não sei senão perder-me/ nos labirintos do teu corpo, em aceso desejo."

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 "Meu amor, dá-me o mapa da tua alma"

Meu amor, dá-me o mapa da tua alma,
a mim que não sei senão perder-me
nos labirintos do teu corpo, em aceso desejo.

Percorro-te, de lés-a-lés, beijo-te
lambo-te, peço-te que me ames com fúria
e depois lentamente, baralho-te,
e avanço como uma amazona sobre ti,
mas é no teu olhar que a minha fúria se desvanece,
como se um gesto teu, apenas,
soubesse aplacar-me esta fome
que trago de ti, sempre, em mim.

Seguras-me o rosto, abraças-me
e eu estremeço. Às vezes não é do prazer,
é desse gesto antigo onde me revejo
nos teus olhos, onde pressinto que cheguei.

Ao centro do labirinto, onde vislumbro o teu verdadeiro rosto.

  Maria João Cantinho in "O Traço do Anjo", Edium Editores, Porto, 2011, p 45.
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" lembra-me tal, sempre que me esqueça."

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 "Há palavras que anseiam ser ditas"

há palavras que anseiam ser ditas
como pássaros que teimam nas brumas
avançando na busca de um deus,

palavras que se ocultam
sob o silêncio de um olhar,
nascidas do mais puro coração,

lembra-me tal, sempre que me esqueça.

  Maria João Cantinho in "O Traço do Anjo", Edium Editores, Porto, 2011, p 47.
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"(...) compreenderás/ que nada morre, nada desaparece,/ apenas deixa de ser em nós "

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 "Poema dos Elementos"

O tempo tudo transforma, essa é a lei
que nos cabe em sorte.
Mas se te sentares à sombra do velho carvalho
e fechares os olhos,
se ouvires o que o vento
te vem contar, compreenderás
que nada morre, nada desaparece,
apenas deixa de ser em nós
para passar a outras camadas deste mistério.

Gostava de te dar a mão e explicar-te
a ti, que possuis o terror da morte,
como tudo é sagrado e se renova,
tudo volta ao pó e depois ao ar,
tudo se transforma tão serenamente.

A água, a pedra, o tempo,
tudo são reflexos de tudo
o que nos precedeu,
das vozes dos nossos antepassados
que agora nos olham
de outros lados, sei-o,
sob a forma de árvores, pássaros,
tudo é tão incandescente, neste cosmos
como uma dança permanente entre os elementos.

Por isso, quando choras, é o rio
que entra em ti e lava a memória
da tua dor, o rio é já o tempo
que, em ti, leva ao esquecimento.

      Maria João Cantinho in "O Traço do Anjo", Edium Editores, Porto, 2011, p 53.
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23/06/11

" Como não afundasse, ficou vagando,/ Até se desfazer em partes, "

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 "Manhã"

Lentamente, foi se afastando da praia.
Estava amarrado, e depois oscilou livre,
Na maré vazante.
Terá demorado a fugir da vista.

No alto-mar, ao sabor das correntes que o arrastaram,
Deve ter recolhido a chuva e secado ao sol.
A água, penetrando pela borda,
Nos meios-dias deve ter deixado um rastro brilhante de sal sobre o banco
E nas dobras do fundo.

Depois, numa noite de chuva,
Primeiro uma onda o terá alagado até o meio.
Em seguida, balançando mais lento, terá sido aos poucos coberto pela água.

Como não afundasse, ficou vagando,
Até se desfazer em partes,
Uma das quais é esta, que agora
Está aqui, quase enterrada na areia.

  Paulo Franchetti in "Memória Futura", Cotia, São Paulo, 2010, p 18.
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" As lembranças, afinal, já não cavalgam as palavras "

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PONHO UMAS palavras num papel
E elas passeiam, intocadas,
Como peixes com fome num aquário.

Se alguém se debruçasse agora,
Em busca de outra imagem recurvada,
Veria apenas a sombra, como eu vejo,
Na folha de papel.

Nem mesmo sob a superfície paira
(As lembranças, afinal, já não cavalgam as palavras)
Alguma forma de alívio.

Apenas isto:
Estes gestos,
Pequenos pedaços flutuantes,
Farelos que os peixes,
De súbito surgindo do fundo
Da água lodosa,
Vêm devorar.

  Paulo Franchetti in "Memória Futura", Ateliê Editorial, Cotia, 2010, p 33.
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22/06/11

" Assim no dia a dia o amor,/ Cobra, inseto, ave de rapina, "

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O SANGUE insiste
Como um pensamento,
Uma ideia fixa que preenche um dia à toa.
Depois reflui, resolvido.
O sono condensa a vista,
Como a respiração no vidro do carro
Parado sob a chuva.
Os mangues ameaçam invadir a cidade,
Sobem e defluem íntimas marés,
Enxurradas de restos, caranguejos, garrafas.
Ou tudo escorre em paz,
Nos canos do tanque, de plástico liso,
Ou no correto sistema de águas do banheiro.
Assim no dia a dia o amor,
Cobra, inseto, ave de rapina,
Vai desdobrando a vida,
Que corrói.

    Paulo Franchetti in "Memória Futura", Ateliê Editorial, Cotia, 2010, p 45.
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21/06/11

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 "Oração"


Anjo da guarda, corta as tuas asas,
Esses galões de pano,
Se queres, humano,
Ajudar-me.
Minha mãe a gerar-me
Nu,
E o céu a mandar-me
Um cisne falso como tu!

Nesta terrena dor,
Desesperado,
Pedi um braço quente e pecador.
Não quero cá ninguém santificado!

Limpa o verniz da cara, tira o lenço
E enxuga-me estas lágrimas de lama.
Deus é imenso,
Mas nem eu lhe pertenço,
Nem é por ele que a minha angústia chama.

  Miguel Torga in "Poesia Completa", Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2000, p 309.
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19/06/11

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" MARIA TERESA HORTA, UMA VOZ INSUBMISSA". A homenagem à escritora ocorreu no "Museu-biblioteca República e Resistência" (em Lisboa), a 6 de Junho de 2011.
Fotos retiradas do "Face" e delas foram removidas todas as identificações.
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" Às vezes quero dizer-te coisas importantes... "

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 Poema 10 do ciclo " Marlene"

Às vezes quero dizer-te coisas importantes, a cotação das acções na bol-
sa prateada e dócil da tua intimidade, a vibração involuntária dos meus
tecidos moles, durante um jantar num hotel de luxo, Marlene. Mas ficam-
-se as cinco estrelas por uma tasca no centro histórico, com carapaus
grelhados e molho à espanhola, e uma cerveja em vez de um daikiri que
me adormece e faz sonhar contigo e com os teus seios tensos que sei
que assim ficarão eternamente.

  António Ferra in "Marias Pardas", &etc., Lisboa, 2011, p 40.
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" Já a tinham fodido muito na vida e bebia até cicuta ao acordar, "

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 Poema 2 do ciclo "Maria Parda"

Já a tinham fodido muito na vida e bebia até cicuta ao acordar, a ver se
marchava para a câmara escura. Mas o raio de um instinto de sobrevi-
vência toldava-lhe os olhos e saltava pelas ruas fora, de pénis à cintura,
a dizer blasfémias para enrabar o futuro, a gritar que já tinha experimen-
tado tudo, tudo - roubo de galinhas nas quintas suburbanas, champanhe
bebido em mansardas, vacinas contra o tétano e o tifo, pastéis de cio em
recepções mundanas; que já tinha estado presa em alta segurança e apal-
pada por uma guarda a quem chamava mamã; que bebera este mundo e
o outro por garrafas diárias para esconder a podridão dos sonhos em
vinhos a martelo.

  António Ferra in "Marias Pardas", &etc., Lisboa, 2011, p 16.
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18/06/11

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Sem defesa - de um olhar-goraz - uivando à nossa mesa
Mes AMIS
Ferva um caldo de marcas e siglas ao lado da minha enxerga
Algumas queimam no vagarzinho e nem as consigo enxergar
Nem sempre o que ferve se purifica - na estreiteza do escaninho

BPP e BPN - sem dispêndio nas insónias - sem suar ao sol d'AMI

Em manobras de um agudo tilintar
Na quietação sem ciência de outro mar

OPTIMUS
Não as oiço... Nem enxergo estas encíclicas
Falta de destreza - numa côdea de pobreza
De quem rejeita o intuito de abreviar
Quando se perde na justa medida
A vida que de breve só se atreve
De alma lenta em tudo para durar

"Abençoados os pobres de espírito"
Pois deles não é o reino da terra

E o mundo - uma centopeia de olhares musculados
Eléctrica e sem fios - na corrente de todos os desafios
Rastejando na prontidão dos passos imaculados
Até no instante da extrema-unção
Competindo dentro e fora das feiras e dos mercados
- Não há sardinhas na grelha como as que compro e vendo
(De maxilares saciados na verdura das alfaces sem sabor
Até dizem que a alface faz enxergar melhor)

O mundo em travessas - girando na devoção ao labor
Uma centopeia sem miopia nem vista cansada
De patas grossas - gravando na eira do tecno-rafeiro
( Cão seja - Fiel por baptismo)
O território da sardinha que não quer perder o peso
Na comunhão sem azia de uma salada sem cheiro

E o futuro está na alfa-sardinha
TGV de todos os continentes
De rápida extensão em verdes-faces

( Pois - não é verdade que quem tem olho tudo enxerga?)

BPP e BPN
Siglas - varinas de espreitar entre saias os peixes miúdos
De atacar nos bês e nos pês e nos Nez os perfumes
E temperos - na caldeirada de intestinos façanhudos
Sobre as patas de engrossar a canastra dos milhões
Regateando sem cansaço essa queda de crescer
Entre sardinhas cruas e alfaces de olear os foliões

- Quem quer fundos - quem quer almoçar?
Olhe a sardinha fresquinha
Ó freguês! Olhe os fundos frescos de amadurecer
Não são figos nem sardinhas de alto-mar

Antes o banquete ilustrando a arte de naufragar

  Ana Maria Puga in "Quando as Palavras começam a escrever", Editora Labirinto,
Fafe, 2011, pp 75 - 76.
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17/06/11

(Clicar sobre a imagem)

" Morte em Veneza


No azul da inquietação"


Morrer entre os canais
De quanto imaginar
A elegância da ponte
Por alagar de amor
Que só quer - existindo
Na fixação do olhar
Uma réstia de horizonte

A música de um maestro
Na miopia do desejo
Misturando o azul das águas
Nas lentes de criar o beijo

E só depois

(Desfalecer sob as pontes)

Desesperando
Na tinta de escurecer
De negrejar os cabelos
Em desalinho
Na chuva em fio-corrente
Moldando o rosto da-dor
Deambulando
Entre o favor de S. Marcos
E os esconsos sem magia
Onde mijaram os gatos
No canto de um corre-dor
Ao luar da travessia

 Ana Maria Puga in "Quando as Palavras Começam a Escrever", Editora Labirinto,
Fafe, 2011, p 53.
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         "Civilização"


Ela quis pagar com cartão dourado
Ao balcão - um euro só e quarenta
Um café de pequenas iguarias
De olhar cambado
De gola e banda
Mesclando na viscose as pedrarias

 Ana Maria Puga in "Quando as Palavras começam a Escrever", Editora Labirinto,
Fafe, 2011, p 45.
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16/06/11

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 "Solo"


Vem outra lua
e vou

contra a imensa parede
que me derruba
e cega.
Atordoa mas não mata
a vontade
de insistir.
Remendo as asas
e espero
a cura: o próximo luar.

De tombo em tombro,
após mergulho
no vazio,
subo à superfície,
dura borda da noite,
e o vôo se levanta
para que eu
- sempre outra -
siga à procura
do existir

  Sônia Barros in "Mezzo Vôo", Nankin Editorial, São Paulo, 2007, p 49.
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15/06/11

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 "Sina"


Quem mais ouvirá,
nesta fria manhã,
a voz incessante do vento?
Quem mais,
além dos cães que uivam
entrecortando o canto,
e das palmeiras que, ao som do mesmo canto,
dançam?
Talvez o gato
que dorme na varanda,
se a voz do vento
alcançar os longes de seu sono
como me alcançou
neste sábado
em que pretendia dormir
a manhã inteira
( e não ser acordada pela voz
da ventania de um poema).

 Sônia Barros in "Mezzo Vôo", Nankin Editorial, São Paulo, 2007, 34.
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08/06/11

" É melhor assim.../ O peito aberto, sem condições e tratados, "

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 "Podia saber mais de tudo"

Podia saber mais de tudo,
Deixar-me enredar nesses enganos,
Confiar na incerteza de outros dias.
Podia renegar-me, talvez nunca como agora,
Podia saber quem eras tu e os demais,
Fintar o futuro e o passado,
Que o acaso fosse concreto e determinado.

Podia não estar aqui,
Ser material de outra estrutura,
Escolher a chuva que me ensopa,
Queimar-me ao vento, ao sul,
Onde o sal soubesse tanto a despedida como eu,
Para que me esqueça delas, enfim.

É melhor assim...
O peito aberto, sem condições e tratados,
Morder o presente, mutilado,
Querer o mais difícil dos prazeres,
Esquecer o amargo das canções,
Enfim.

  Daniel Costa-Lourenço in "Heróis (chamamento)", Chiado Editora, s/c., 2010, p 74.
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( Nota - este poema tem como epígrafe quatro versos de David Mourão-Ferreira, aliás, grande parte dos poemas desta obra têm epígrafes, mas todas colocadas no final da página. Preceito metodológico interessante! Dos não sei quantos livros que li nos últimos anos, este é o segundo em que constatei semelhante "instrução de leitura".)
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"(...) maldade fugidia/ Que tropeça,/ Em mim. "

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 "Gozo caprichoso"

És,
Caprichoso gozo, atormentado,
Prazer obsceno encoberto,
Palavra que não existe,
Segredo cansado, decifrado,
Inferno,
Sangue ardendo profundamente,
Eco do riso que arranha o relento,
No paraíso,
Veneno de bem-querer,
Sombra que esconde, finge, vicia,
Crua verdade, maldade fugidia
Que tropeça,
Em mim.

 Daniel Costa-Lourenço in "Heróis (chamamento)", Chiado Editora, s/c., p 18.
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07/06/11

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 "Provérbio"


O que vier com alma nova, fique.
Deite a sua raiz,
Cresça, floresça, frutifique,
E morra se outra seiva o contradiz.

Miguel Torga in "Poesia Completa", Publicações D. Quixote, Lisboa, 2000, p 212.
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06/06/11

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Ave maluca que pousou sozinha
Na praia triste, e debicava a espuma
Que uma onda deixou,
O bando olhou-a lá do céu que tinha,
Viu-a perder as horas uma a uma,
E voou.

Era um trigal inteiro que acenava
À prática avidez do seu destino!
Ficasse quem comia solidão.
Ficasse singular quem desejava,
Peregrino,
Na flor das vagas encontrar o pão.

 Miguel Torga in "Poesia Completa", Publicações Dom Quixote", Lisboa, 2000, p 175.
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04/06/11

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" O Lázaro"


O Lázaro sou eu, não foi o Outro,
o das migalhas e das chagas podres.
O Lázaro sou eu, aqui sentado
à mesa do Vice-Rei
a mastigar com nojo estes faisões!...
Sou eu, vestido de holanda,
a pregar a nudez que sempre usei
nas grandes ocasiões!...

Sou eu, nado e criado para amar,
e que não sei amar!
Sou eu, que disse não e me perdi!
Que vi Deus e nunca acreditei!
Que vi a estrada impedida
e passei!...

Sou eu, que não sou feliz no Céu nem no Inferno,
porque no Céu há paz, e no Inferno há guerra,
e a minha Paz é outra, e a minha Guerra é outra...
Sou eu, tão Grande e Pequeno
que nem sirvo para grão
da parábola da mostarda!
Sou eu, que há vinte e sete anos
vivo sem Anjo da Guarda!

Sou eu, que ou tudo ou nada, ou Vida ou Morte,
e acerto sempre na Morte!
Que espeto sempre o punhal
onde não quero ferir!...
Que sou assim, às cegas e às golfadas,
como as dores abençoadas
de parir!

Sou eu, que me disse adeus
e fiquei à minha espera!...
E que naquela manhã de ano bissexto
- que podia ter sol e teve chuva -
recebi nestes meus braços
o esqueleto verdadeiro
da saudade amargurada
de quem não tem ausentes nem distâncias!

Sou eu, o louco sem asas
que se lança dos abismos a cantar
a Canção do Inocente...
E que do fundo desse sonho novo
atira a praga
que o traga
àquela redentora incompreensão
do seu povo!...

Sou eu, o Alfa e o Ómega
e os sentidos singulares
que o Anjo-Satanás me prometeu!...
Sou este Nobre-Vilão descalço e de gravata,
sou este jornal sem data
que traz a infausta notícia
que ninguém leu!...

Sou eu - e mostro-me todo!
Quem puder, arranque os olhos
e venha cheio de Fé
ver o Lázaro real
que não vem nos Evangelhos
mas é!...

  Miguel Torga in "Poesia Completa", Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2000, pp 69 - 70.
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02/06/11


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  (Fragmentos do Ciclo " Escritos da Admiração" )
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Poesia e filosofia não principiam pela indagação; nem
pela dúvida. Mas pela exclamação das palavras que in-
sistem em transbordar com o admirável, a ponto de não
se distinguirem dele. Os escritos não são instrumentos
de comunicação do que lhes é exterior. Eles mesmos,
já espantosos, realizam seu limite, chegando ao que, des-
de sempre, são: palavras, criações de novos destinos.
.
(...)
.
A exclamação do poeta (do pensador, do filósofo) é
feita de dentro do enigma. Ele não é aquele que decifra
a esfinge, sob pena de morte caso fracasse. Ele não é
aquele que consulta o oráculo para descobrir o futuro
vindouro. Ele é a própria esfinge, produtora de enigmas.
Ele é o próprio oráculo, criador de palavras ambíguas.
No princípio, era o enigma, que se bastava por si pró-
prio, e o oracular era uma ambiência a ser frequenta-
da, uma morada a ser habitada. Nenhuma resposta o
precedia, nem era requisitada nenhuma explicação. A
necessidade de sua decifração se constitui como tare-
fa tardia do pensamento. Antes de ser revelação de
um sentido oculto, a palavra poética, pensante, dedi-
ca-se a nos envolver com o oculto que há em todo
sentido; ao invés da dúvida, a exclamação; ao invés
da pergunta e da resposta, o enigma.

  Alberto Pucheu in "Escritos da Indiscernibilidade", azougue editorial, Rio de Janeiro,
2003, pp 8 - 11.
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(Fragmentos do Ciclo "Escritos da Íntima Estranheza")

Deixo aparecer a voz que quer fazer sua diferença falar
por mim. Favoreço-a. À minha revelia, ela me impõe
suas próprias surpresas, minhas próprias perplexida-
des.
.
(...)
.
A experiência da escrita me deixa exposto pelo real
que me transpõe; desconhecendo a separação entre
linguagem, pessoa, vazio e todas as coisas, ela se dá
justamente na respectiva encruzilhada: morada de
todo espanto.
.
(...)
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Os arranjos das palavras trazem em seu bojo uma
dose de indeterminação prévia, uma abertura para
o imprevisível, para o casual; tanto inesgotáveis,
quanto incansáveis, acionam a fixidez que gostaria
de descansar satisfeita de si.

  Alberto Pucheu in "Escritos da Indiscernibilidade", azougue editorial, Rio de Janeiro,
2003, pp 20 - 25.
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01/06/11


(...)
Esta é a juventude perene,
a que nenhuma neve cede às prerrogativas do tempo
e que eu, em menino, quis entrever para sempre,
a crença firme deveria poder reduzir-se
a outro teor, exaurindo-se do que avulta em injustiça no embaraço
de pregar aos peixes, como se a abutres fosse,
em vez de a homens,
com rostos semelhantes ao nosso semelhante,
nas intransponíveis perguntas para que não há resposta

Daí que todas as perguntas tenham sentido e não façam sentido
nenhum, unem-se os raros e os ternos, a luz solidifica,
todos os confrontos explodem em outras recriminações,
as cidades passam, passam as acareações,
passa a desolação para quem outra desolação se apreste
na cidade,
mas ninguém, morto que esteja, lê Herberto Helder,
como há muito sabemos,
enquanto a fulminação da infância é uma desventura
e é uma desvantagem escrever versos que ninguém há-de ler,
ou só mesmo pensar em escrevê-los

Adianta pouco esta roda de comprazimento,
caímos uma primeira vez e uma segunda vez iremos cair,
e logo uma terceira vez caímos,
mas morreremos, como sempre, na praia,
como sempre morreremos ao percorrer a passadeira devagar,
entre uma loja chinesa e outra loja chinesa,
entre um e outro descaminho,
um descaminho de atropelamento,
e fuga
e nada mais,
nada mais no horizonte da menina nua da avenida dos Aliados

Tudo é avulso, tudo é repulsivo,
calha-nos ensandecer cedo demais,
(...)

  Amadeu Baptista in " O Ano da Morte de José Saramago", &etc., Lisboa, 2010, pp 23 - 24.
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