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14/08/11

" São como revelações/ são textos prometidos/ com a marca da renovação "


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  " O gato e a casa"

Nas casas onde morou gente
há sempre um gato abandonado
de cabeça forte e um corpo lento
espalhado pela desolação do lugar

Mantém a temperatura na cozinha
arranha as paredes e os seus pensamentos
são habitantes subalternos dos quartos
e das horas de sol à volta do jardim

Mas as casas debaixo das árvores
anseiam ainda por outros homens
nos joelhos feridos e nos quartos interiores
homens que as ocupem e lhes levantem a mão
como garfos cheios de uma fome terrível

E que depois perguntem onde estender os braços
até o espaço ganhar a forma de uma família
de uma redoma confusa, com um crucifixo
e uma finalidade latente de procriação

E os gatos assustam-se com as casas transtornadas
e bufam até que chegam os primeiros carros
que ocupam todos os lugares marcados
e fica apenas o espaço fulminante da culpa

Depois morrem longe dessas casas
e das inquietações, de garras recolhidas
Mas quando nascem outra vez
são belos como relâmpagos
e demoram dias a afagar uma ideia

Abrem os olhos sobre crianças
e homens dóceis como alimento
e aparecem quando querem
em muitos lugares ao mesmo tempo

São como revelações
são textos prometidos
com a marca da renovação
e nos olhos a serpente que embala
o corpo do arrependido
e depois dormem
como se fossem criados
numa casa enroscada ao Inverno

  Tiago Patrício in "Cartas de Praga", Clube Português de Artes e Ideias, s/c., 2010, pp 9 - 11.
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12/08/11

" E o rio estropiado de profundidade obscura/ deitado no esquife ainda a tentar escorrer "

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 "Rio Moravé"

Depois da montanha o rio desce das turbinas
começa a entender o ar que respira
e a fugir do sufoco, a libertar um vapor
e a transformar-se na paisagem escura

O rio moribundo cede à inclinação
de vários anos ao relento
reclama árvores nas margens
e fósseis de peixes oxigenados

Os pássaros nos ramos mais afastados
imitam canções de outros pássaros
sobre rios e mensagens esplêndidas
a desaguar numa melopeia occipital

E o rio estropiado de profundidade obscura
deitado no esquife ainda a tentar escorrer
a fingir uma pulsação quando assalta o açude
e a fazer uma espuma azul na rebentação

A destilação do rio é um vapor cáustico
que reaparece como um cadáver espesso de três dias
e imita uma descida como se tivesse nos planos a juventude
de refazer-se nas nuvens e regressar às montanhas

Tiago Patrício in "Cartas de Praga", Clube Português de Artes e Ideias, s/c., 2010, p 57.
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12/03/10

"e dos teus braços brancos as mãos ásperas/ que são todas as noites um voo sentido"

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"Mulher Ave"

A cada um dos meus dedos
contei o princípio do teu nome
soletrei a tua língua de areia
e os anéis da tua pele

A caminho dos teus pés
ponderei as razões das caravanas
e do vento que sobe ao teu vestido
Nas tuas pernas de veias túmidas de hena
há filigranas de paisagens
e tripulantes escuros de plumas azuis

A tua pele curtida é argamassa de gerações
de mulheres migratórias
de ruínas e linho intumescido no seio

Os teus cabelos abrem o tempo
e lembram rotas da seda e dromedários
tendas, cortinas e o frio do deserto
entre os corpos súbitos
E no teu leito repousam 15 mil homens
sucessivos e a concepção das raças

Há barcos que repousaram no teu oásis ondulante
com mastros e velas soberbas à tua passagem
peixes que te reconhecem do outro lado do mar
como na enseada do teu ventre

Recuperas das viagens e das cidades prometidas
do teu corpo inscrito no cansaço, nas pedras de sal
dos teus olhos, onde a sombra das colinas ao perto
revela ainda erupções e apelos de humidade

Os teus filhos númidas, púnicos e berberes
têm do teu rosto a recordação da disputa
e dos teus braços brancos as mãos ásperas
que são todas as noites um voo sentido
antes do acontecimento ao teu corpo

Tiago Patrício in " O Livro das Aves", Quasi Edições,
Vila Nova de Famalicão, 2009, pp 15 - 16.
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