09/01/14

 
 
Uma pessoa sabe sempre a verdade, essa outra verdade que é oculta pelas representações, pelas máscaras e pelas circunstâncias da vida. Os dois rapazes foram educados juntos, prestaram juramento juntos, viveram juntos durante anos, enquanto estiveram em Viena, porque o oficial da guarda encontrou maneira de o filho e Konrád passarem os primeiros anos de serviço perto da corte (...).
   Konrád era "uma pessoa diferente" e não era possível a ninguém aproximar-se com perguntas do seu segredo. Estava sempre calmo. Nunca discutia. Vivia, cumpria os seus deveres, comunicava com os companheiros, movia-se na sociedade e no mundo, como se o serviço militar nunca terminasse (...) e o filho do oficial da guarda notava com preocupação que Konrád vivia como um monge.
(...) O filho do oficial da guarda implorava em voz baixa que Konrád partilhasse com ele os seus bens, dos quais não sabia bem o que fazer. Konrád explicava-lhe que não podia aceitar nem um tostão. E ambos sabiam que isso era verdade: o filho do oficial da guarda não podia dar dinheriro a Konrád e tinha de suportar andar no mundo, levar uma vida digna da sua posição e do seu nome, enquanto Konrád, em casa, no apartamento de Hietzing, jantava ovos mexidos cinco noites por semana e contava pessoalmente as peças de roupa interior chegadas da lavandaria. Mas isso não era importante. O facto mais assustador era que, além do dinheiro, aquela amizade devia ser salvaguardada para a vida. Konrád envelhecia depressa. Aos vinte e cinco anos de idade já usava óculos para ler. E à noite, quando o amigo chegava de Viena e do mundo, a cheirar a tabaco (...) conversavam em voz baixa durante muito tempo, como se Konrád fosse um mágico que passasse o tempo sentado em casa a matar a cabeça sobre o sgnificado do ser humano e dos fenómenos, enquanto o seu fâmulo andava pelo mundo e recolhia notícias secretas da vida humana. Konrád, de preferência, lia livros ingleses sobre a história da convivência dos homens e sobre o desenvolvimento social. O filho do oficial da guarda apenas lia com prazer livros sobre cavalos e viagens. E porque gostavam um do outro, ambos perdoavam ao outro o pecado original: Konrád perdoava ao amigo a riqueza, o filho do oficial da guarda perdoava a Konrád a pobreza.
   Aquela "diferença" de que o pai tinha falado, quando Konrád e a condessa haviam tocado a Fantasie polonaise, conferia a Konrád um certo poder sobre a alma do amigo.
 
 
  Márai, Sándor. As velas ardem até ao fim. Lisboa: Pub. Dom Quixote, 2004, pp 41 - 46.
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