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12/07/13

 
 
  O Pacaça pôs mais café ao lume, a primeira vez que fui ao munhungu do Bairro Operário era o velho Jacques que tomava conta daquilo, foi na véspera de fazer doze anos, o meu pai escolheu uma preta e disse-lhe, dou-te o dobro do que vales para me transformares este rapaz num homem. Eu já sabia ao que ia e nos últimos dias não tinha pensado noutra coisa mas quando me vi no quarto com a preta fiquei tão assustado que não sabia onde me meter. Passado um quarto de hora o meu pai bateu à porta, isso vai ou não vai. Tive medo que a preta contasse ao meu pai que eu nicles pataticles, mas a preta respondeu como se estivesse afogueada, é mais homem do que muitos de barba feita, tem a quem sair, disse o meu pai satisfeito do outro lado da porta (...). Ficámos no quarto, eu deitado na cama a olhar para uma gaiola de papagaios que estava pendurada no alpendre e a preta a pintar as unhas e a contar-me histórias do quimbo onde vivia antes de o velho Jacques a ter descoberto e trazido para a cidade.
(...) Acordei com o meu pai a bater à porta. Nem vendo a minha cara ensonada desconfiou, um homem também se cansa, disse. No caminho para casa deu-me os conselhos que um pai tem de dar a um filho, os mesmos conselhos que mais tarde dei ao meu filho...
(...) Depois de me ter dado estes conselhos o meu pai nunca mais tocou no assunto e se se cruzava comigo no munhungu fingia que não me via. Era um homem bom, um homem respeitador, disse o Pacaça comovendo-se, um homem que me ensinou a respeitar toda a gente, brancos ou pretos tanto fazia. Era um homem dos que já não se fazem.
 
 
  Cardoso, Dulce Maria. O Retorno. Lisboa: Edições tinta-da-china, 2012, pp 202 - 204.
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11/07/13


 
  Sundu ia maié, sundu ia maié, puta que a pariu. Vou dar pontapés em todas as portas até chegar ao pátio do recreio, a puta da professora mandou-me para a rua com uma falta a vermelho mas eu vingo-me, quero lá saber que as contínuas refilem, ó menino isto aqui não é a selva, não é como lá de onde vens, aqui há regras, sundu ia maié, estamos a avisar-te menino, abro o peito e dou um pontapé noutra porta, conhecem-me de algum lado, olho as velhas bem de frente para lhes mostrar que não tenho medo (...) passo pela cantina e dou um murro no carro dos tabuleiros, só me falta bater com a mão no peito para verem que acompanhava mais com os macacos do que com leões, as velhas até saltam com o estrondo que o carro dos tabuleiros fez, se querem dizer mal dos retornados vou dar-lhes razões.
  A puta da professora, um dos retornados que responda, como se não tivéssemos nome, como se já não bastasse ter-nos arrumado numa fila só para retornados. A puta a justificar-se, os retornados estão mais atrasados, sim, sim, devemos estar, devemos ter ficado estúpidos como os pretos, e os de cá devem ter aprendido muito depois da merda da revolução, se for como em tudo o resto devem ter tido umas lindas aulas.(...) um frio do caralho cá fora, fecho o blusão, acendo um cigarro, meto-me no meu canto, se as contínuas não querem maca nem se atrevam a passar por aqui.
  Se não há pão dêem-nos brioches, o Sr. Acácio maldoso com os olhos nas mamas da D. Juvita. Dizem que o Sr. Acácio e a D. Juvita têm um caso e que se encontram na casa das máquinas ao lado da piscina (...). Também dizem que a D. Ester encomendou um trabalho à preta Zuzu para que o Sr. Acácio deixe de olhar para as mulheres. A preta Zuzu tem fama de fazer uangas e de lançar xicululos tão fortes que há gente que faz figas quando passa por ela. (...) a preta Zuzu não é grande feiticeira, o Sr. Acácio continua a andar atrás das mulheres...
   A puta de matemática pôs os retornados na fila mais afastada das janelas (...). Um dos retornados que responda, a puta nunca diz os nossos nomes, um dos retornados que responda, era o que faltava, nunca abro a boca, o retornado da carteira do fundo que responda, insistiu a gaja, estava mesmo a querer farra. Custa assim tanto decorar o meu nome, se me chamasse Kijibanganga ainda tinha desculpa mas Rui, porra, é um nome fácil (...). Mas não, o retornado aí do fundo que responda, é que nem que me tivesse arrancado as unhas e os dentes falava...
 
 
Cardoso, Dulce Maria. O Retorno. Lisboa: Edições tinta-da-china, 2012, pp 139 - 141.
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