31/08/11

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          " A cidade "


Por mais que insistas em recusar,
esta é, sim, a tua cidade concreta
onde tantos te ofereceram amizade
e o amigo partiu pela porta secreta.

Andaste cabisbaixo pelas calçadas
remoendo as humilhações do trabalho.
Marcaste este chão com teus passos,
dores recolhidas como um restolho.

Aqui nasceram os filhos, a epifania
das infâncias que sumiram passageiras.
Abriste envelopes com muito medo,
receoso daquelas notícias derradeiras.

Tu que amas a simetria permanente
viste a barriga da cidade arregaçada.
Como nas telas de Anselm Kiefer,
tens nela tuas perplexidades retratadas.

  Donizete Galvão in " O homem inacabado ", Portal Editora, São Paulo, 2010, p 59.
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30/08/11



 " Dans les veines "

Dans les veines tombes déjà presque vides,
Le désir encore effréné,
Dans mes os qui se glacent le caillou,
Dans l'âme le regret sourd,
L' irrésistible noirceur: dissous-les.

Du remords aboyant sans fin
Dans l'innombrable ténèbre,
Terrible séquestration,
Rachète-moi, et la pitié de tes paupières,
De sur ton long sommeil, soulève-la.

Que ton signe brusque et rose,
Àme féconde, remonte
Et me revienne surprendre;
Inespérée, ressuscite,
Mesure incroyable, paix;

Fais que je puisse, en l'espace calmé,
Réépeler les paroles naives.

  Giuseppe Ungaretti in " Vie d'un homme, Poésie 1914 - 1970 ", Éditions de Minuit-Gallimard,
Paris, 1973, p 225 ( Traduit de l'italien par Philippe Jaccottet ).
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29/08/11

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 " Combe Nocturne "


La face
de cette nuit
est desséchée
comme un
parchemin

Ce nomade
crochu
soyeux de neige
se laisse aller
comme une feuille
roulée

L'interminable
temps
se sert de moi
comme d'un
bruissement

 Giuseppe Ungaretti in " Vie d'un homme, Poésie 1914 - 1970 ", Éditions de Minuit-Gallimard,
Paris, 1973, p. 78 ( Traduit de l'italien par Jean Lescure ).
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28/08/11

"Les petits mouchoirs" (pequenas intrigas entre amigos).


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Ludo (Jean Dujardin), carregado de snifadelas e ácidos tem um violento acidente de moto, Vincent (Benoît Magimel) apercebe-se que se apaixonou pelas mãos de Max, o padrinho do filho (François Cluzet), Marie,
(Marion Cotillard) apesar de manter uma relação aberta com um jovem músico de Paris, traz no ventre um filho de Ludo, etc., etc. Este é um grupo de amigos que, ano após ano, se mantém coeso apesar de tanta tanta coisa negativa: ciúmes, invejas, omissões... Não concordo, como alguns escreveram, que as pequenas mentiras entre os vários elementos do grupo se devam ao facto de eles, muitas das vezes, não confiarem uns nos outros, quanto a mim elas relevam antes da preocupação de manter a coesão desse mesmo grupo retirando-lhe o que poderia vir a assumir a forma de enormes cascatas de violência. Aliás, a acusação de Louis Philipe, já perto do final da película, de que eles passam a vida mentindo-se uns aos outros, e, sobretudo, a si próprios... essa acusação só pode ser feita, porque vem de alguém que não demonstra o mínimo interesse em sair do seu isolamento.
Um soberbo filme com uma cuidada caracterização das personagens: o obsessivo (François Cluzet), a naturalista Zen ( Valérie Bonneton), a melancólica com grandes esferas de silêncio (Marion Cotillard), o hetero que por desejar tanta saia acaba perdendo a que mais queria ( Gilles Lellouche)...
Um minucioso e atento olhar sobre as relações humanas e os afectos numa realização de Guillaume Canet.
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25/08/11

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 " La Pitié"

1

Je suis un homme blessé.

Et je voudrais m'en aller,
Je voudrais enfin arriver,
Pitié, lá où l'on écoute
L'homme seul avec lui-même.

Je n'ai que superbe et bonté.

Et je me sens en exil entre les hommes.

Mais je suis en peine pour eux.
Serais-je indigne de rentrer en moi?

J'ai peuplé de noms le silence.

Ai-je dépecé tête et coeur
Pour être asservi à des mots?

Je règne sur des fantômes.

O feuilles sèches,
Âme emportée cà et là.

Mais je hais le vent, et sa voix
De fauve sans mémoire.

Dieu, ne te connaissent-ils plus,
Ceux qui t'implorent, que de nom?

Tu m'as chassé de la vie.

Me chasseras-tu de la mort?

L'homme est peut-être indigne même d'espérer.

Même la source du remords est-elle à sec?

Q'importe le péché
S'il n'est plus voie de pureté?

La chair à peine se rapelle
Qu'elle fut un jour si forte.

L'âme est folle, et vermoulue.

Dieu, regarde notre faiblesse.

Nous rêvons d'une certitude.

Tu ne nous railles même plus?

Compatis donc, cruauté.

Je n'en peux plus d'être muré
Dans le désir sans amour. 

Montre-nous quelque trace de justice.

Qu'est-ce que c'est, ta loi?

Foudroie nos pauvres émois,
Délivre-moi de l'angoisse.

Je suis las de hurler sans voix.

2

Chair de mélancolie
Où foisonnait jadis la joie,
OEil demi-clos du réveil harassé,
Âme trop mûre, vois-tu
Celui que je serai sous terre?

Le chemin des morts passe en nous.

Nous sommes le fleuve des ombres,

Elles sont le grain qui éclate dans nos rêves,

Elles sont la distance qui nous reste,

L'ombre qui donne poids aux noms.

Notre sort ne serait-il rien
Que l'espoir d'un ramas d'ombres?

Toi, Dieu, ne serais qu'un songe?

Ce songe, au moins, téméraires,
Nous voulons qu'il te ressemble.
Il est le fruit de la plus claire folie.
Il ne tremble pas au fil des paupières
Comme aux branches nuageuses
Les moineaux du matin.

Il est en nous qui pleure, mystérieuse plaie.

3

La lumière qui nous meurtrit
Est un fil toujours plus ténu.

N'éblouis-tu plus sans tuer?

Donne-moi cette joie suprême.

4

L'homme, monotone monde,
Croit agrandir son empire
Et de ses fiévreuses mains
Ne sortent jamais que des bornes.

Suspendu sur le vide
A un fil d'araignée,
Il ne craint et ne séduit
Jamais que son propre cri.

Il répare la ruine en dressant des tombeaux,
Et por te penser, Éternel,
Il n'a rien que blasphèmes.

 Giuseppe Ungaretti in "Vie d'un homme - Poésie 1914-1970 ", Éditions de Minuit-Gallimard,
Paris, 1973, pp 177 - 180 (Traduit de l'italien par Philippe Jaccottet ).
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23/08/11


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perdi-me em funduras de juntas
perdi bichos nas moitas, rastros no escuro
perdi mormaços, brisas
fui gerando meu pisado vagaroso
nas fracturas das coisas

  Vera Lúcia de Oliveira In "Entre as junturas dos ossos", Ministério da Educação,
Brasília, 2006, p 18.
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Ler é viajar, é viver mais intensamente, viver em dobro. Porque além da vida que está dentro de nós, há a vida que estamos seguindo nas páginas de um livro. Vamos ficando mais conscientes pela leitura, acho que até mais intensos e belos. Ler significa ver, abrir-se ao mundo, ter curiosidade e interesse por tudo. (...) A leitura torna mais vasto o mundo de quem lê. Também desperta a sua imaginação e você ganha condições de aprender e desenvolver seu senso crítico e cultural. Quanto mais livros você ler, mais aumenta o prazer de ler, mais alegrias você terá com a leitura. Com isso, todos ganham, você, a sua família, a sua comunidade e a sociedade em que você vive.

 Vera Lúcia de Oliveira (excerto de uma entrevista) in "Entre as junturas dos ossos", Ministério
da Educação, Brasília, 2006, pp 63 - 64.
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21/08/11

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A casa dos avós, com dois pisos superiores e varandas de ferro fundido rasgadas sobre a rua, tinha um grande quintal nas traseiras, um quintal onde cresciam flores sob as copas das árvores e onde Mike encontrava uma liberdade de movimentos e um manancial de descobertas que nada, então, poderia substituir. Quando deixou de trepar às árvores e investigar caves e arrecadações, encontrou outros prazeres na casa de São Francisco: primeiro, nos livros que enchiam as estantes da ampla sala de estar; e mais tarde, já adolescente, depois da morte do avô, em longos diálogos com a avó Rafaela. Os pais diziam-lhe: "Quando saíres do liceu, vai a São Francisco fazer um pouco de companhia à avó." E ele ia, obediente e cumpridor, mas também seguro de que, aos doze ou treze anos, tinha efectiva capacidade para distrair a avó Rafaela do seu desgosto e confortá-la com a sua presença.
Mais tarde, quando já estudava em Londres e tivera a primeira experiência directa da solidão, descobrindo o preço a pagar pela euforia da liberdade, da posse do tempo e da autonomia nas escolhas, Mike começou a entender melhor a extensão do sofrimento da avó: para ela, não tinha havido contrapartida de nenhuma espécie em troca da solidão, ela não precisava de de mais liberdade nem sonhava com aventuras, precisava apenas da presença do homem com quem partilhara mais de quarenta anos de vida. Pela primeira vez, Mike avaliou a dor de quem fica, como a avó ficara, condenada a enfrentar a sobrevivência e a querer fazê-lo com dignidade e respeito por si própria - e compreendeu que essa dor só poderia ser comparável à de quem parte, à de quem reconhece a aproximação da morte e sofre pela irremediável solidão em que deixará a companheira de toda uma vida. Encontrou algum alívio na certeza de que não compete a nenhum ser humano proceder à terrível decisão de escolher quem parte e quem fica, nem tão-pouco à penosa descoberta de qual dos dois sofrerá a dor maior que cada um gostaria de poupar ao outro.
(...) Na previsão do desagrado da mãe perante o seu envolvimento com Katherine, Mike precisa de falar com a avó que, neste caso específico, dispõe da vantagem de não ser inglesa e de conseguir manter um distanciamento muito maior perante o novo conflito a acontecer. Na sua própria casa, só se fala de guerra, as cartas que a mãe recebe de Inglaterra fazem eco de um clima de tensões e incertezas, mas também da convicção generalizada de que urge travar os planos expansionistas de Hitler. Num contexto tão ameaçador, poderá a mãe aceitar o seu envolvimento com uma alemã?(...) E a avó? Poderá a avó entender uma situação sentimental tão diferente daquela que ela própria viveu, numa sociedade em tão rápida e radical mudança e, sobretudo, no provável limiar de uma nova guerra? Valerá a pena falar-lhe de Katherine? Mas se não falar com a avó, com quem será então?
(...) Rafaela tem umas mãos fortes. São longas e esguias, mas fortes. "Umas mãos bonitas", dizia-lhe o marido, " e umas mãos capazes. As tuas mãos são o teu retrato, o retrato de uma mulher que não se intimida com nada, nem se deixa intimidar por ninguém." Foi com essas mãos fortes e a sua alma lutadora que Rafaela reorganizou a sua vida quando João Miguel morreu. Não queria viver sozinha, mas também não queria sobverter a sua casa e a sua vida (...). Olhou à sua volta, à procura de gente como ela, não necessariamente velhas amigas mas mulheres sozinhas como ela própria, compatíveis nos hábitos (...) mulheres que gostassem de ler, que soubessem conversar mas que não se sentissem incomodadas pelo silêncio, que cultivassem o companheirismo mas que não hesitassem em sair sozinhas quando lhes apetecesse - não estaria a pedir demasiado à vida?
(...) Começaram a visitar-se, a sair juntas, a trocar livros e a discuti-los, num entendimento sereno que foram cultivando com prudência, como se todas partilhassem a noção de que já não tinham idade para ser ingénuas, ou que mais valia prevenir do que remediar, ou qualquer outra pérola equivalente da sabedoria tradicional...
(...) "Miguel... Miguel!"
"Avó? Desculpe, estava distraído..."
"Andas muito distraído...", comenta Rafaela, sarcástica.
"Quem é a beldadezinha que tanto te distrai?"
" Oh, avó, acabo de contar-lhe que ando cheio de trabalho, deito-me muito tarde, oh, avó, por favor..."
Célia e Bela riem e apoiam-no, não por acreditarem nos seus protestos, mas exactamente por não acreditarem - e gostarem de ser cúmplices, ainda que de longe, ainda que de leve, numa eventual história de amor.
Mike sorri-lhes, grato pelo apoio. E Rafaela, com falsa severidade, declara-se traída por todos.

 Helena Marques in " O bazar alemão", Publicações Dom Quixote, Alfragide, 2010, pp 77 - 86.
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19/08/11

Acerca de... ( VI )

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Estava fora do país quando o Victor, de quem tenho a honra e o privilégio
de ser amigo, me pediu para fazer a apresentação de "Regresso", tendo-me
enviado por e-mail os poemas e a eles juntado umas simpáticas linhas nas
quais indicava ser de sua vontade que eu estivesse hoje aqui a falar sobre
o referido livro.
Nem queria acreditar! Pensei que se tratasse de um engano.
O que levaria um poeta com a qualidade e o vigor do Victor a pedir-me que
falasse da sua poesia e dos seus poemas?
Geralmente a tarefa de apresentação de obras poéticas é indicada a quem
sabe e estuda poesia e não a quem vive e ama a poesia, aludindo-a como
livre e longe, epítetos capazes de compreender a existência humana:
Longe na distância que separa o poeta dos outros, de uma sociedade que
ajuda a construir, mas da qual se afasta por amor e, muitas vezes, por lágrimas;
Livre, porque há no poeta a certeza de tocar as consciências futuras, cons-
truir sedosos caminhos sem barreiras, permanecendo quieto, devolvendo o
movimento à ignorada beleza das palavras.
Aceitei o desafio! Aqui estou, agradecendo ao Victor este convite, felicitan-
do-o pelos poemas e a todos pedindo desculpa e compreensão para as
fracas e poucas palavras que posso e sei dizer sobre "Regresso".

A poesia, não é recordação, é uma presença feminina importante, o contrá-
rio do poeta, por isso ele próprio - o lado mais visível da saudade!
Com a poesia - e através do poema - aprende-se a Humanidade, o desejo
e a sua lei, a entrega, o abandono, o convívio com o abraço que nos não
quer, mas ao qual desejamos sempre regressar... Aprende-se a ser devol-
vido, constantemente, ao amor da infância, à posse dos lábios detidos na
memória e no medo. A vida passa a ser feita de ilusões, de actuais e an-
tigos sentimentos, de uma troca amorosa constante, de rios doces e ocea-
nos salgados, de permanecermos e de partirmos... sempre.
REGRESSEI a Lisboa, contactei o Victor que me confirmou a vontade
verdadeira que fosse eu a falar do seu livro de poemas. Infelizmente tive
de o ler em folhas de papel, soltas... o livro físico ainda não existia!
REGRESSO - esta é a primeira pessoa do Presente do Indicativo de ver-
bo "regressar"? Ou não será antes um substantivo? Encontraremos, neste
livro, substâncias psicológicas ou momentos de uma dada acção? Deixo
aqui estas interrogações como base de possíveis linhas de leitura!

A competência da poeticidade de "Regresso" declara o reflexo intelectual
na vivência dos dias. Os poemas afirmam-se num corpo, no mundo rece-
bido através dos sentidos.
A poesia de Victor Oliveira Mateus ensina-nos o poema como semente
aquecida no coração da memória, resgatada pela alma, oferecida e alimen-
tada pelo corpo. Comovem-me as palavras, as letras, a ética do poema
e o que me traz aqui também são as imagens de Turim, que tenho gravadas
na memória e que neste conjunto de poemas redescobri: no leito do rio Pó,
na Praça San Carlo, na Diagonal que corta a cidade ou na via Roma... Em
tempos vivi em Turim, onde leccionei, agora regressei-lhe pela voz de um
sujeito poético habitado pela cidade, pelos destinos de sombras imacula-
das, de noites perpétuas e artificiais, de paisagens inabitadas, de lugares
vazios de lembrança, de caminhos frios e ininteligíveis, de espaços de aban-
donos prometidos, de largos, praças esquecidas, palácios-museus, de es-
pectros estranhos, de uma lívida imagem presente, de mosteiros e conven-
tos, abadias de morrer, de silêncios no silêncio, de braços imateriais...
A memória persegue o sujeito do poema, nela, este procura a unicidade
na extravagância das diferenças, da mesma forma que essa Itália unida
e transformada em nação por Vitorio Emanuel e Garibaldi, se mantém
diversa nas suas culturas, línguas, modos de ser... O indivíduo busca a sua
singularidade, deparando-se com a multiplicidade, deparando-se com
esse ser muitos a regressar ao mesmo! Nesta condição, poema, poesia
e poeta transportam, nas mesmas águas, um não sei quê de estar ali
não estando, sendo o oposto também verdadeiro. Assim, creio que existe,
em "Regresso", um persistente fio condutor que é, afinal, a grande preocu-
pação do autor, latente em toda a obra - a questão da busca total do sen-
tido da Vida, e isto com uma visão intensamente envolvente, porque cor-
poral, espiritual e mental.
Regressar não é voltar a um local, nem mesmo a um estado de alma, ou
revisitar sensações (o sujeito da enunciação dá-se conta da completa im-
possibilidade de regresso a um tempo pretérito!), regressar é tornar futuro
o já passado, tentando que este se espelhe no presente! Regressar é o
movimento que tenta contrariar a insofismável verdade da inexistência do
tempo; esta tentativa de demonstrar a inexistência do tempo, que a língua
teima em marcar... : faz-nos voltar de novo onde o pretérito já foi e será
(também) futuro! O regresso é também um movimento filosófico cheio de
novidade, curiosidade, mobilidade psicológica - Vida! De tanto regressar-
mos construímos a nossa própria história, a consciência, a saudade. Assim,
se constantemente soubermos regressar, adiamos a morte! Pois voltarmos
aos braços, e lábios, de um amante pode ser a prova que vamos tentando
fixar na memória o futuro de um corpo desnudo que, com o tempo, se des-
vaneceu, e que agora se nos dá transformado numa realidade não tangível.
Um dia, a escritora Isabel da Nóbrega ensinou-me como avaliar uma obra
poética, dizendo: "se no final da leitura, por um impulso inexplicável, te pu-
seres em pé, então estás em face de um bom livro, de uma esplêndida obra
literária!" É por isso que, de pé, aplaudo o "regresso" de Victor Oliveira
Mateus a mais um livro de poemas.
Muito obrigado!

 Henrique Levy, texto de apresentação do livro "Regresso", Lisboa, 27 de Novembro de 2010.
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18/08/11

Acerca de ... ( V )

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Começo por felicitar a Editorial Labirinto pela iniciativa de publicar
este belo livro de poesia da autoria do poeta Victor Oliveira Mateus
trazendo até nós, deste modo, o irresistível canto de sereia de Angélica
Ionatos, consubstanciado nas palavras inspiradas do poeta.

Nesta obra damo-nos conta da feliz união da voz da cantora grega com
a palavra mágica do poeta Victor Oliveira Mateus, que parte em deman-
da da ilha encantada de Citera onde, supostamente, a dourada Afrodite
o aguardará com os seus mistérios. A voz é aqui a criatura e a escrita,
o mineral de que se faz o sonho e o pensamento. O poder e o estatuto
da voz é também propriedade do poeta, que sujeita o seu texto ao po-
der dessa mesma voz, o local de partida é incerto, mas o de chegada é
a outra margem do mar, é Citera; a intenção é clara: " um roteiro reve-
lando novos mares, outros países para que neles possa partir e não mais
voltar". É, portanto, uma viagem sem regresso.

O tema da viagem, do périplo e da ilha, glosado por poetas da grandeza
de Yeats e Cavafy, adquire na obra de Victor Oliveira Mateus contornos
que remetem para os níveis mais profundos do significado: a margem da
distância, do sono, do crepúsculo e da morte. Tal como nos antigos
immrama celtas, o poeta demanda uma ilha misteriosa e secreta, e rea-
liza, no seu périplo, um intenso percurso interior. O poeta sabe que esse
local procurado se encontra " para lá do vazio e da felicidade imitada",
mas quando arriba a Citera escreve: "finalmente alcançada com o teu
braço sobre os meus ombros" e, explodindo depois num delírio de sen-
timento: é em ti que me renovo, Citera.

Tal como acontece na viagem de Cavafy para Ítaca, Victor Oliveira Ma-
teus busca e encontra na sua ilha vivências e saberes. Sente o corpo e o
espírito permanentemente tomados por uma excitação rara, que contagia
quem lê a sua poesia. Chegar a Citera é um destino último. Sem Citera
nunca teria partido em busca dos segredos da vida e da morte. Compreen-
der o verdadeiro sentido de Citera é meta final da obra. A viagem é lon-
ga, aventurosa, cheia de perigos e enganos. Mas se monstros encontra-
mos é porque em nossa alma os transportamos. Serão essas "as ilhas
humanas" a que o poeta faz alusão?

Chegados a este ponto já estamos a caminho, e em peregrinação para
um não-lugar. Com o poeta vamos "esquecer o que a realidade foi e assim
construir o que ninguém alcançou". Mais adiante confessa-nos: " do que
mais gosto é do que nelas não há".

O poeta transmutou-se em veículo de Amor e de Poesia, ainda que sem-
pre sob o temor " de que possas não vir", porque ele sabe, ele já conhece
"o amor vivido e o amor buscado de que ele é cópia "; Platão também acre-
ditava que o verdadeiro Amor é afinal o amor à Sabedoria, sendo o desejo
cego um mero impulso, na infinda avidez de ser o outro.
A poesia de Victor Oliveira Mateus é portanto, ela mesma, uma irresistível
voz, prenhe de significados, até à eternização final de tudo o que fica: a obra
poética, na particular paisagem pessoal do poeta, em todas as suas modula-
ções e excentricidades ocasionais.

  Maria Lucília Meleiro, texto de apresentação do livro
" A Irresistível Voz de Ionatos", Lisboa, 31 de Março de 2009.
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17/08/11

José Agostinho Baptista dito por...


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" Poema 29" do livro "Jeremias o Louco" de José Agostinho Baptista.
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Acerca de ... ( IV )

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Há um lugar principal na poesia de A Irresistível Voz de Ionatos, de
Victor Oliveira Mateus: o do amor, ou seja, o da "(...) terra finalmente
alcançada com o teu/ braço sobre os meus ombros." O do amor sobre-
tudo como sujeito da procura interior, viagem em cada poema renova-
da num "(...) percurso onde sempre me busco/ e busco do ser sua ní-
tida fonte."
Ao centrarem-se na ilha de Cítera, as imagens poéticas incorporam
com delicadeza a representação do alegórico, do mítico e o que neste
existe de onírico e de dimensão filosófica mas empreendem, também,
luminosas aproximações ao concreto: à inquietude, às perdas, ao de-
sejo.
A celebração do amor e seus paradoxos, Victor Oliveira Mateus fá-la
de verso para verso intensificando a dramaticidade do eu entre "essa
infinda avidez de ser o outro" e o despojamento perante " a morte pres-
sentida", em Lefteris cativo "(...) ante a imensidão do mar e o esmore-
cer do sol ", suspenso da "irresistível" voz de Angelique Ionatos. A ten-
são lírica é, no entanto, sempre vigiada, nada de excessos. Exemplo
disso, o poema 22, um dos mais belos do livro: " Nunca te pedi que
ficasses. Nem que uma qualquer/ dádiva fingisses na irremediável
mobilidade dos afectos. "
Conjugando "a beleza clássica e moderna", conforme diz Olga Savary
na contracapa, A Irresistível Voz de Ionatos reforça uma estética do
sensível, um "estilo fluido", sublinhado por Cláudio Neves no posfácio.
Trata-se de uma escrita na qual as palavras são a mágica tranquilidade
( sábia viagem) com que o poeta tem vindo a trabalhar a consciência
do texto.
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  Maria Augusta Silva in " NS - notícias, sábado 176"
suplemento do "Diário de Notícias" de 23 a 29 de Maio de 2009.
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Acerca de ... ( III )

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Como um espia ou um detetive de afetos, abandonando-se num
tufo de metáforas, eis a periculosidade do poeta, especialmente
do poeta português Victor Oliveira Mateus. Nas asas da poesia,
Victor solta os pássaros e canta - e voa. De tudo se ocupa sua
poiesis: da pátria, sua terra e chão, o de hoje e o primitivo, do azul
do Tejo e outros azuis, mas fundamental são as pulsações da vida
e da morte, da memória, da infância (já não dizia Baudelaire que
poesia é a infância reencontrada?). Poesia deve ter carne, suor,
sangue, agonia e perplexidade, reflexão e prazer. Em seu novo
livro, Victor nos dá tudo isso, na medida certa. Aqui nada é ex-
cesso. Tudo é sóbrio, porém transborda emoção. Na batalhas
das raízes, buscando-se e buscando-nos nos abismos, esta mis-
teriosa poesia, rubro dragão a rutilar na escuridão, é toda luz, in-
trépido fulgor. Como tantos outros esplêndidos poetas portugue-
ses, Victor Oliveira Mateus atua em nós, seus leitores, com a
beleza clássica e moderna de sua lúcida poesia.
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   Olga Savary In contracapa de "A Irresistível Voz de Ionatos", Edª Labirinto, Fafe, 2009.
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15/08/11

Um pequeno contributo para...

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" IMAGENS DA SEXUALIDADE NA OBRA DE FERZAN OZPETEK"
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( A problemática da orientação sexual na filmografia do século XX)
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Um primeiro olhar sobre a obra de Ozpetek remete-nos de imediato para uma das pedras-de-toque da nossa cultura: a relação dos fenómenos com a linguagem e o consequente processo de universalização que desemboca na clarificação dos conceitos. Esboçada já na Antiguidade - lembremo-nos das críticas dos Cínicos ao Platonismo -, a questão dos Universais dá o seu primeiro grande passo na Idade Média - é Roscelino, século XI, quem peremptoriamente afirma: as ideias abstractas não passam de flatus vocis (sopro de voz): instaurando-se assim definitivamente o Nominalismo que Guilherme de Occam, no século XIV, viria a desenvolver e a aprofundar. Sem nos determos na relação que Occam estabelece entre o conhecimento intuitivo e a experiência, digamos tão-só que é baseando-se nesta última que este filósofo afirma a individualidade do real enquanto tal, criticando assim com acerbidade todas as teorias que concedem ao universal um qualquer grau de realidade (cf. In Sent I, d. 2, q. 7 S). Para o que nos interessa neste artigo acrescentemos que Occam não nega a realidade do conceito, mas vê-o apenas como algo mental, tendo, por conseguinte, uma consistência exclusivamente subjectiva, determinada e... singular, com uma função puramente significante; o conceito é um signo das coisas, algo que está em lugar delas e é deste modo que o usamos nos juízos e nos raciocínios. À luz destas posições ( e sem desenvolvermos como muitas destas teses nominalistas irão depois reaparecer em Russell e Wittgenstein) percebemos como, apesar do termo sexualidade do nosso título, se possa dizer que na obra de Ozpetek - e, aliás, na linha do que muitos sexólogos vêm actualmente defendendo - não existe um padrão unívoco da heterossexualidade, mas sim heterossexualidades, nem tão-pouco um arquétipo da homossexualidade, mas antes homossexualidades. Uma posição deste tipo não nega as derivações interpretativas centradas no primado do genótipo e/ou do hipotálamo, antes as integra, mas recusa-se a ver o comportamento sexual dos humanos determinado exclusivamente por uma orientação originária, mecanicista e inamovível.
A tendência para abrir o leque, ao nível da observação e da análise, dos vários comportamentos humanos de tipo sexual - desembocando muitas vezes no âmbito da bissexualidade - aparece, de forma nítida, mas ainda num pequeno número de filmes da cinematografia europeia da segunda metade do século XX, são disso exemplos três dos maiores realizadores desse período: Pasolini com o seu Teorema (1968), Fellini com a sua adaptação do Satyricon de Petrónio (1969), Visconti adaptando também a novela de Mann, Morte em Veneza (1971), e, no seu penúltimo filme, Violência e Paixão (1974), entregando a Burt Lancaster o papel do velho professor que, retirado e rodeado de livros e obras de arte, se vê subitamente envolvido com um grupo de novos vizinhos, vindo a desenvolver um relacionamento ambíguo com um deles. É evidente que a função primordial de qualquer destes filmes não é aquela que aqui estamos a referir - por exemplo, em Teorema e em Violência e Paixão o objectivo é antes a desmontagem de alguns valores intrínsecos à burguesia bem comportada, bem como a algumas instituições nomeadamente a família. Aliás, e como mero parêntesis, digamos que é nesta preocupação de dissecar o quotidiano dos bem comportados que entroncam também alguns filmes já do século XXI, como por exemplo o Tudo pode dar certo de Woody Allen (2009), onde o pai de Melodie corre para Nova Iorque na busca da mulher e da filha e acaba envolvido com alguém que não é filha nem sequer mulher, ou ainda o radical Transamerica onde a actriz Felicity Huffman é soberba na interpretação daquela transexual a quem a sua compreensiva psiquiatra não concede a autorização final para a mudança de sexo, enquanto este ele  não disser toda a verdade ao filho (Kevin Zegers) que havia feito a uma colega de faculdade e que a vida acabara de colocar no seu caminho. Parecendo ser apenas um filme sobre a mudança de género, Transamérica (2006) é também uma grande aula de psicanálise, sobretudo se nos pusermos a dissecar a relação das agora duas irmãs com a mãe. Mas, e recuando às duas últimas décadas do século XX, a História do Cinema conheceu um verdadeiro boom com autênticos estudos de caso que irão entrecruzar: orientação sexual/ valores dominantes e contingência, e esse boom invadirá quer o drama quer a comédia; relativamente a esta última não nos podemos esquecer da lésbica de Belle Époque (filme de Fernando Trueba, 1992), exemplarmente interpretada por Ariadna Gil, que, a certa altura, se sente atraída pela personagem de Jorge Sanz, sobretudo quando o descobre fantasiado de criada. É fazendo rir que Trueba demonstra que a imaginação e a fantasia desorientam o que até então era tido como A orientação sexual, assim como altera um percurso que se julgava de pendor fiixista e fá-lo através de outras variáveis ligadas à aprendizagem e ao social. Até a violência, sobretudo a física, pode desencadear essas mudanças comportamentais, essa desorientação da orientação, como na cena de pugilato no Oito mulheres, de Ozon, quando Catherine Deneuve e Fanny Ardant se amarfanham pelo chão de uma enorme sala. A prostituição masculina, que Andy Warhol já tinha exibido na sua célebre trilogia ( Flesh, Trash e Heat), mas de que se fala hoje muito mais do que há algumas décadas, traz para a luz do dia outro tipo de variáveis ligadas agora ao socio-económico, ao estatutário e ao desejo do novo e do fantasiado; todavia, se um acompanhante heterossexual se pode colocar ao serviço de mulheres, como Josiane Balasko muito bem retratou no seu filme Cliente com uma esplendorosa interpretação de Nathalie Baye (não nos esqueçamos do papel de lésbica que Balasko tão bem levara a cabo no filme Gazon Maudit , chegando ao ponto de seduzir a heterossexualíssima personagem desempenhada por Victoria Abril, que, na película, acabará dividida entre o marido e a inesperada amante), o que é um facto é que esse mesmo indivíduo poderá também colocar a sua orientação sexual à disposição de homens (cf. devassos no paraíso de João Silvério Trevisan, sobretudo as páginas 410-414, onde se referem entrevistas de alguns desses acompanhantes casados e que contam com o apoio das próprias mulheres, ávidas de um qualquer suplemento remuneratório que lhes suavize o quotidiano, aliás, esta derivação de tipo económico é também enfatizada no filme realizado por Balasko; todavia este território está ainda pouco estudado, principalmente na parte que leva a que esses indivíduos, muitas vezes, se apaixonem pelas suas (ou pelos seus) clientes e, fenómeno igualmente já constatado neste meio, que leva ao estabelecimento de um elo preferencial de tipo afectivo-sexual entre dois elementos dessa mesma profissão). Seja de que maneira for parece-nos que algum do cinema feito nas últimas décadas, bem como muito do ensaísmo e da investigação científica parece apontar para a ideia de que a orientação sexual não é coisa de enjaular em espartilho de laboratório ou de compêndio, nem de funcionar, ao modo de uma qualquer implicação lógica, como tabela de branco e preto.
Herdeira de toda esta tradição, a obra cinematográfica de Ferzan Ozpetek chama-nos a atenção para o papel que o quotidiano e o adquirido têm sobre o desejo que sentimos pelo outro, pela outra ou por ambos. Oiçamos a filósofa Martha C. Nussbaum: " Desire, in short, is in good part "in the head". Here, of course, is where culture and cultural variation play a major role. Society shapes a great deal, if not all, of what is found erotically desirable and social forms are themselves eroticized. We see this quickly in the tremendous variety of what is found erotically appealling in differente societies and, of course, by different individuals in different societies: different attributes of bodily shape, of demeanor and gesture, of clothing, of sexual behavior itself. Social constructions of an attractive sexual object vary enormously, and with these, the social meaning of sexual arousal and interation themselves. " ( In Sex, preference, and family - essays on law and natures, p 26). Mas a sociedade e a cultura não modelam somente o desejo e o objecto deste, elas actuam do mesmo modo relativamente a outros sentimentos e emoções decorrentes da concretização, ou não, desse mesmo desejo, nomeadamente a vergonha e a culpa, como bem defende Jesús Ferrero: " La verguenza y la culpa son las pasiones más determinadas por la cultura en la que vive el sujeto que las padece y por sus normas sociales y morales.
Básicamente se podria decir que sentimos verguenza y culpa cuando nos descubren haciendo algo prohibido, o cuando descubrem que lo hemos hecho. La violencia que proyecta la mirada de los otros ante nuestro delito penetra en nosotros como la púa de una cerbatana, y nos odiamos a nosotros mismos y quisiéramos desaparecer bajo tierra: enterrarnos. Pero solo sentimos culpa como un efecto de la mirada acusadora de los otros? Desde luego que no. Todos llevamos una conciencia llena de normas morales. La mirada interior puede proyectar-se sobre nuestros actos con más severidade y más rigor que la mirada de los otros." ( In Las experiencias del deseo, Eros y misos, p 133). É impossível lermos este texto de Ferrero sem nos lembrarmos de um capítulo de "L'étre et le néant" de Sartre - "Le regard", e, por outro, sem concluirmos que se o olhar do outro nos rotula, no torna en-soi como diria o filósofo francês, de um modo directo, também é verdade que a minha auto-imagem é mediatizada por esse mesmo olhar que me é alheio. Assim, a sociedade e a cultura em que me encontro inserido tendem a orientar-me o desejo, o objecto que esse desejo visa e ao périplo de paixões e emoções inerentes a todo o processo, encontrando-me assim eu no seio de uma aporia fundamental: a minha orientação sexual, que, por sua vez, subjaz às minhas atitudes e aos meus comportamentos também de tipo sexual, é ela própria - apesar da inscrição genética - orientada por condicionantes que lhe são externas.
Como corolário das posições defendidas poder-se-á dizer que elas desembocam necessariamente na forma como os parceiros sexuais se procuram uns aos outros e entre si estabelecem todo um universo convivencial. Hoje, na nossa sociedade, os modelos vigentes, e os únicos legalmente aceites, são a monogamia heterossexual e a monogamia homossexual, contudo, uma observação minuciosa do reino animal, concretamente no caso dos mamíferos, poder-nos-á elucidar se essas formas convivência derivam de potencialidades inscritas no património genético, ou se, pelo contrário, ela nos mostra outras evidências onde, uma vez mais, uma orientação exterior (ética, moral, religiosa, jurídica...) ao que somos nos tende a orientar noutros sentidos. Acerca disso atentemos às investigações de David P. Barah e Judith Eve Lipton: "Quando se trata de mamíferos, sabe-se há muito tempo que a monogamia é uma raridade. De 4 mil espécies de mamíferos, não mais do que algumas dezenas formam ligações de par confiáveis, embora em muitos casos seja difícil caracterizá-los com certeza porque a vida social e sexual dos mamíferos tende a ser mais furtiva do que a das aves." ( In O mito da monogamia, Fidelidade e Infidelidade entre pessoas e animais, p 26).
Eis-nos, então, chegados a um ponto crucial desta proposta de leitura da obra cinematográfica de Ferzan Ozpetek: os factores genéticos e biológicos não são condicionantes exclusivos, nem prioritários, da orientação sexual (e seria interessante até discutir a pouca cientificidade deste último conceito, adoptado pela comunidade científica para substituir a balbúrdia teórica que o antecedeu: preferência sexual, opção sexual e outras enormidades deste estilo!) nem do modo como os comportamentos sexuais ocorrem; as diferenças - a vários níveis - dentro da heterossexualidade e da homossexualidade são abissais; os modelos de convivência e/ou de acasalamento monogâmicos podem funcionar para alguns seres humanos, mas as "ligações verdadeiramente confiáveis" são raras: os sentimentos, as emoções, os fracassos e os sucessos de uma vida afectivo-sexual podem ser gravados em nós, mais pelo olhar do outro do que por aquilo que, nos nossos momentos de solidão e de autoquestionamento, apreendemos no mais fundo de nós. E, como cúpula desta visão, a subtil mecânica do jogo: umas vezes alienante e turbilhonar, como no caso dos gays loucos de Mine Vagante; outras, lúcido e desgastante como na avó da mesma película.
Sabemos, todavia, que algumas tendências dentro da psicologia e da psiquiatria têm vindo a substituit o conceito de orientação pelo de identidade sexual, parecendo-nos até com a finalidade de salvaguardar o território da imutabilidade e do genético. Tais posições, varrem assim de cena a bissexualidade, eliminam  de imediato do ser e do idêntico toda a veleidade de um qualquer ir-sendo e, por fim, ver-se-ão na necessidade de defender que essa identidade do ser humano foi o que, nalguns casos, nunca apareceu, tendo assim o eu vivido aquilo que não era em-si, enquanto que a sua verdadeira identidade sexual (?) acabou por nunca despertar, isto é, segundo esta linha teórica é perfeitamente possível, o indivíduo, ao nível sexual, ir sendo aquilo que não é, enquanto que o que ele é verdadeiramente continuará não sendo até ao fim. Esta posição que reduz orientação e comportamento sexuais ao quadriculado de um qualquer balancete genético não é a adoptada por Ferzan Ozpetek, daí a atracção de Michele Mariani por Antónia em Le Fate Ignoranti e, em Mine Vaganti, Tomaso (Ricardo Scamarcio), apesar da relação fortemente apaixonada que vive com Marco, não consegue esconder o fascínio que sente frente a Alba (Nicole Grimaudo). Dito de outro modo: nos filmes de Ozpetek muitos são os casos contemplados pela objectiva do realizador, mas no seu todo predominam as influências do quotiano, da aprendizagem entre grupos, dos esquemas de género sexual aberto e do jogo; jogo esse que, nesta obra, jamais tem uma função oportunista ou de destruição do outro, antes se identifica com o cativar de Exupéry e com o platónico desejo de complementaridade: busco no outro aquilo que me falta, para que ele colha em mim o que lhe aprouver e achar por bem.
Partamos, então, desse conceito de jogo. No início de Le Fate Ignoranti (2001) Ferzan Ozpetek mostra-nos uma mulher vendo uma exposição. Ela está frente a um busto de Antínoo. Um homem aproxima-se e tenta seduzi-la, critica aquele que a deixou ali sozinha, já que menosprezou a sua beleza. Pela indimentária, pelo discurso e pelo ritual de sedução o espectador percebe que está frente a um par da burguesia média-alta. A perseverança do homem não cessa. Ela continua sorrindo. E é só quando ele a abraça pela cintura que nós percebemos que aquela etapa do jogo terminou - estamos frente a marido e mulher; e mais: estamos frente a dois seres cúmplices e que conseguem partilhar coisas importantes. Antónia, a mulher, é médica, e dias depois, quando sentenciava um dos seus doentes de uma situação de seropositividade, recebe o fatídico telefonema comunicando o atropelamento, e morte, desse tal homem com quem vivera em harmonia perfeita. A partir daqui a acção adquire um outro ritmo: Antónia (Margherita Buy), mexendo nas coisas do marido, encontra um quadro que tem uma dedicatória por trás: " A Massimo, pelos sete anos passados juntos. Pela parte de ti que me falta e que eu jamais terei. Por todos os momentos em que me disseste "não posso" e por todos os outros em que me disseste "voltarei". Poderei chamar à minha paciência amor? Mariani." Toda a consistência do universo de Antónia se estatela nessa casa onde ela vivera, a dois, aquilo que não entendia já. Procurando Mariani, a outra, Antónia vai ter a um apartamento onde coabitam os mais diversificados tipos de pessoas: uma gentil e doce cinquentona que vive com um negro, uma transexual, uma empregada de um super que nunca acerta nos namorados, um casal de homessexuais masculinos... Mas Antónia insiste. Quer conhecer a Sra. Mariani. Volta e volta àquele apartamento e... acaba encontrando um rapaz: Michele Mariani (Stefano Accorsi). A relação que se vai estabelecendo entre Antónia e Michele não cabe nos canhenhos dos inventariadores de orientações  sexuais que se baseiam apenas no genético para determinação destas, contudo - algo obsessivamente - ela tenta saber se o marido ainda tivera mais alguém: "nem homem, nem mulher - diz-lhe Michele-  Ele só nos teve a nós dois." E assim ficam presos um ao outro pela perda, pela memória, pela poesia de Hikmet e talvez por algo mais, como se percebe no final do filme, pois, se havia entre eles a crença de que sempre que se partia um copo era alguém que também partia, após a tentativa de fuga de Antónia, Michele atira um copo ao chão, mas... este não se parte.
Em 2003, com La finestra di fronte, Ferzan Ozpetek parece-nos querer homenagear Hitchcock pela semelhança adoptada com um título de 1954 deste último realizador: também aqui a janela indiscreta é o elemento primeiro e coadjuvante de todos os mistérios que se irão tecendo. Ozpetek constrói uma narrativa entrecruzada: a) uma acção passada em Roma, nos inícios dos anos 40, quando nazis e colaboracionistas decidem caçar os judeus da cidade; b) uma outra, que se desenrola com um casal da pequena burguesia vivendo pacatamente com os seus empregos, os seus filhos, as suas domésticas desavenças e aspirações. Todavia, e mais uma vez, o meio vem jogar aqui a sua cartada quando a mulher começa a espiar o vizinho da janela em frente, é então que se percebe que a linearidade das vidas ritualizadas tem muito mais no seu fundo do que à primeira vista se julgava ver, até porque o observado já vinha sendo também observador. Os dois níveis da narração acabam confluindo a partir de certa altura: o jovem que, em 1943, tivera de matar o patrão delator, que o mantinha vigiado, para ir a correr salvar todos os outros judeus, é hoje um velho demenciado que vai parar a casa de Giovanna (Giovanna Mezzogiorno) e Filippo (Filippo Nigro) que, por sua vez, tentam entregá-lo à polícia, embora sem sucesso. Lorenzo (Raoul Boya), o vizinho da janela em frente, é também sugado para dentro da estória deste velho cujos passado e presente passam a invadir todas as personagens, descobrindo-se, finalmente, a sua identidade: Davide Veroli (Massimo Girotti), aquele que em 1943 salvara tantos dos que o apontaram e, por essa necessidade de demonstrar a sua dignidade a quem o marginalizara, já não fora a tempo de salvar Simone, o seu amigo e companheiro. Este é um dos filmes de Ozpetek onde as preocupações sociais e políticas são mais vincadas, mas não descurando nunca a abordagem das questões psicológicas, afectivas e relacionais, por vezes até com alguma ironia, como quando uma das colegas de Giovanna a espicaça para uma aventura extraconjugal, dizendo-lhe que o casamento dela, com quinze anos, era quase incesto. É aqui que o golpe de mestre de Ozpetek atinge um dos seus pontos mais altos, cruzando a estória homossexual de Davide e Simone com a estória heterossexual de Giovanna e Lorenzo através de uma cena emblemática: Lorenzo, d' a janela em frente, narra a Giovanna uma crise demencial de Davide a que acabara de assistir: "Amar-te-ei sempre... Temos de nos amar em segredo..." Dissera Davide a Simone e diz também agora Lorenzo, pelo telefone, de janela para janela, a uma giovanna que ele não deixa de fitar e que também o olha entre o êxtase e o pânico, pois sabe que pode ser surpreendida pelo marido a qualquer instante. Esta sobreposição dos planos remete-nos para o início deste artigo: o que é universal (a frustração ante a perda, as concretizações subreptícias, a mágoa de jamais se poder ser em absoluto, etc.) é transversal a todos os seres humanos, assim, é sendo englobante que tem a importância que tem, e que - eventualmente - até poderá ser muita, no entanto, o que dói verdadeiramente é o processo de singularização, é ao nível do concreto, é o modo como cada um vive essas experiências, e aí cada qual é o seu mundo, não dependendo da cor, do credo religioso, do género, da etnia, da orientação sexual ou ideológica. Há inúmeras cenas nos filmes de Ozpetek (ligações inter-raciais, operárias chinesas, domésticas budistas, burguesas caucasianas com amantes ocultos, etc.) que fundamentam esta ideia do primado do particular, território verdadeiramente real e objectivo, espaço a respeitar porque único, irrepetível e não sujeito a permuta.
Com Mine Vaganti (2010) a intriga torna-se muito mais complexa e o tipo de personagens mais diversificado, no entanto, manter-se-á a fluidez narrativa bem como a clareza dos propósitos, o que nos leva a continuar à distância do rocambolesco precipitado de Almodovar, e talvez mais próximos da técnica, da verosimilhança e do bom gosto de realizadores como Téchiné e Chéreau. O palco deste filme é a burguesia industrial e financeira de Lecce com os seus valores, as suas normas morais e, sobretudo, com o seu temor ao olhar do outro. A película circula sempre entre o rigor da análise e a, aparentemente anódina, desmontagem do grotesco. Tudo começa quando Tomaso (Riccardo Scamarcio) diz a António, o irmão, que durante o grande jantar dessa noite irá revelar à família a sua homossexualidade, ali, sem anestesia, percebe-se de imediato que o que está em causa não é bem o problema das orientações sexuais, mas a despótica figura paterna. E isso é confirmado durante a refeição, pois quando Tomaso pretende tomar a palavra, aquele mesmo António decide antecipar-se, e faz ele a confissão da sua sexualidade, afinal tão idêntica à do irmão. Tomaso recua e a violência verbal que se segue desemboca na expulsão de António, pelo pai, do seio familiar. Este jantar, com visitas - Alba e a família -. disseca toda uma panóplia de personalidades, trabalho esse que será continuado durante um outro jantar, já após a vinda de Marco e de alguns amigos de Tomaso. Naquela casa cruzar-se-ão as mais diversificadas formas de cada um vivenciar a sua orientação sexual, por conseguinte, poder-se-á perguntar: o que há de comum entre a heterossexualidade de uma mãe apagada e submissa e a da sua cunhada ávida de experiências e desajustada em relação àquela ordem repressiva? Nada! O que há de comum entre a homossexualidade viril de Tomaso e Marco e as superficiais tontas vindas de Roma? Nada! Ozpetek usa esta família como em Sociologia, ou em Psicologia Social, se usam as amostras, para a verificação de uma qualquer hipótese, e a observação, aqui nitidamente provocada, tem por função dissecar algo dinâmico e multidireccional: os efeitos do processo de normalização. Ozpetek, durante uma entrevista que concedeu, tem mesmo o cuidado de substituir, corrigindo, o conceito de normalidade pelo de normalização.
Quais as plataformas de estabilidade possíveis durante um processo de normalização que é ele acidentado e aberto ao imprevisto? Apenas dois exemplos: uma das loucas de Roma não caça o tio de Tomaso porque a mulher deste está sempre atenta; Tomaso não investe mais em Alba porque a sua relação com Marco funciona plenamente, contudo aqui mantém-se sempre uma certa ambiguidade, ilustrada pela cena da praia quando Marco e Alba cabriolam na rebentação das ondas, e Tomaso, do alto da duna, olha ambos como ar de um homem que tem ante si tudo e nada mais pode desejar, aliás, o ele decidir juntar-se às brincadeiras dos dois tem uma simbologia bastante clara.
É evidente que Salvatore, o tio de Tomaso, se mantém com a mulher; é evidente que Alba não destrona Marco, mas o que aparece claro no cinema de Ferzan Ozpetek é que são várias as formas de cada um vivenciar a sua orientação sexual e não parece que os mecanismos de índole genética sejam os únicos responsáveis pela orientação da orientação, ou da identidade sexual se se preferir este caminho. Claude Aron, na sua função de académico mas também de fisiologista da reprodução, fala assim das experiências de Hammer com gémeos homossexuais: "(...) mais Hammer reconnut lui-même que d'autres facteurs sont nécessairement impliqués dans le déterminisme de l'homosexualité puisque certains sujets expriment cette orientation sexuelle en l'absence du gene qui d'autres en serait responsable. Ce gene restera d'ailleurs hypothétique jusqu'à ce qu'il soit cloné et donc identifié; et surtout retrouvé dans d'autres enquêtes familiales. Je conçois mal les mécanismes d'action d'un gene de l'homosexualité. S' éxprime-t-il dans l' INAH3? Qu'elle vision simplificatrice à l'égard de la complexitè des mécanismes de la bisexualité chez l'animal! Je raisonne en physiologiste et non pas en psychanalyste. Pourtant je me refuse à un reductionisme biologique qui ferait une part moins belle chez l'Homme que chez l'animal aux facteurs de l'environnement dans les conduites sexueles." ( In La bisexualité et l'ordre de la natures, pp 271-272. Ao longo de toda esta obra Aron chama a atenção para inúmeros factores bio-fisiológicos que estão na base da orientação sexual, ironizando mesmo - nas páginas 281/2 sobre o gene da heterossexualidade - e na página 282 é irredutível: "Le concept de bisexualité de la gonade a été le fruit de longues et patientes recherches embryologiques. Celui de bisexualité comportamentale a des racines mythologiques." Numa perspectiva sociológica é importante também a leitura de "Dupla Atracção" de Martin S. Weinberg, Colin J. Williams e Douglas W. Pryor, sobretudo, na edição portuguesa, das páginas 183-186. Se se pretender - nesta tentativa de se recusar a exclusividade do genético na determinação mecânica da orientação sexual - encetar uma abordagem a partir da História, são importantes as obras de autores como John Boswell e William Naphy. Pesquisar também, na net, o artigo "Heteroinquisidores" de Debora Diniz - antropóloga, investigadora e professora na Universidade de Brasília -, é um texto muito interessante sobre a interdição do corpo do pai ao filho - fenómeno que não acontece na relação mãe/filha - e que orientará o modo como a maioria dos homens passará a ver/sentir o corpo dos outros homens, aqui seria importante comparar depois o modo como o afável Lorenzo de La finestra di fronte abraça/acolhe o velho Davide e como, por oposição, em Mine Vaganti, o tirânico pai se refere ao corpo masculino, sobretudo no monólogo da confeitaria).
Á tese de Tomás de Aquino, depois retomada por certos movimentos estéticos nomeadamente o neorrealismo, de que a arte tinha por função a imitação da natureza - no segundo caso da natureza humanizada na sua vertente social, económica e política - acrescentou-se hoje a noção de que a realidade imita ela o cinema, sendo assim, e um pouco na linha da Claude Aron, cabe-nos a estupefacção de que um comportamento tão complexo como é o sexual, de que uma função tão determinante como é a orientação sexual possam, para alguns, ser submetidos a um processo explicativo afinal tão simples e primário, como aquele que tem sido defendido por certos investigadores mais ligados ao campo da biologia e da genética. Talvez não fosse despiciente um olhar para os trabalhos de outras ciências, para as reflexões de tipo filosófi co e - porque não? - para o que acontece mesmo ao nosso lado, nas ruas e... no cinema.
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  Victor Oliveira Mateus in " Revista TriploV - De Arte, Religiões e Ciências ", Nova Série, 2011, Número 19 - 20.
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Uma das refeições da família Cantone do filme "Mine Vaganti".
"Io non so parlare" é uma das mais belas cenas desta película: Tommaso
explica a sua necessidade da literatura... Repare-se na questão da direcção
de actores, sobretudo o ar agressivo do pai contrapondo-se à serenidade
(e cumplicidade) da avó.
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O célebre monólogo de Tommaso de "Mine Vaganti".
Tommaso (Riccardo Scamarcio) conta a Alba (Nicole Grimaudo)
tudo o que acontece em si quando observa Marco.
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14/08/11

" Poderemos, meus senhores, estar a cometer um estranho erro... "

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Súbito, ia em maio o ano seiscentos, começaram de soprar outros ventos. Frei Estêvão, acompanhado do cónego Rodrigues da Costa, chegava a Veneza. Era ver-lhe nos olhos a alegria ao mostrar aos companheiros a lista dos sinais:
- ... com a firma de todos os declarantes e autenticada pelo notário Tomé da Cruz.
Liam-na, reliam-na, já ela citavam de memória partes. Correm à Senhoria, para procederem ao reconheciemento do preso. O juiz Marco Quirini é porta que se não pode transpor e o eco das preocupações e receios do doge.
- Quê! - irritava-se Frei Estêvão. - Para me entreterdes, madaste a Portugal buscar os sinais do corpo de el-rei. sem mo terdes deixado ver...
- É que vós, os Portugueses, para vos libertardes dos Castelhanos, não hesitaríeis em dizer de um negro que seria o rei Dom Sebastião - respondia o juiz rindo.
-Não riais, senhor, que isto é negócio muito sério...
- Desculpai. Não vos queria ofender.
- Agora que trouxe o rol dos sinais, confirmados por instrumentos autênticos de um notário apostólico, e vos peço me permitais ver Sua Alteza, negais-mo?
- A Senhoria...
- Asseguro-vos que honestamente vos demonstrarei a verdade ou a falsidade. Não quereis também vós conhecer uma ou outra?
- Temos tido sobre isso muitas disputas no senado e...
- Tomai - disse Frei Estêvão estendendo um papel ao juiz.
- Que é?
- Tendes aqui a cópia da lista dos sinais de el-rei. Faço tanto empenho como vós em verificar se a pessoa aqui detida é el-rei ou não (...).
- A Senhoria é de parecer que não é conveniente saber se o preso é o rei ou não, sem primeiro ser solicitado por príncipes e reis.
Frei Estêvão retirava-se desolado:
- O doge receia indispor-se com Filipe terceiro, não é?
Marco Quirini encolhia os ombros:
- Quereis príncipes e reis? - voltava-se para trás o frade, já de saída. - Pois tereis príncipes e reis. (...) Isabel de Inglaterra não nos há-de negar valimento e Henrique quarto, que tem sido informado do que se passa por seu embaixador, mostra-se interessado no caso. Concitarei os bons ofícios de príncipe Maurício de Nassau...
(...) Marco Quirini, como o papel na mão, absorto. Depois, caminhou até à porta e, atrás do reposteiro, puxou o laço da campainha. Um mordomo apareceu.
- Os senhores juízes que se reunam comigo.
Vieram os juízes. Deu-lhes conta do rol dos sinais deixado por Frei Estêvão.
- Poderemos, meus senhores, estar a cometer um estranho erro, por minha fé. Julgo prudente verificarmos nós os quatro se estes sinais conferem com o prisioneiro.
- E se conferirem?
- Que Deus nos perdoe! Teremos de expor imediatamente o assunto ao sereníssimo doge.
Caminharam então até à cela onde se encontrava o prisioneiro e, cerrada a porta, ordenaram ao carcereiro que o despisse...

  Fernando Campos in " A Ponte dos Suspiros ", Difel, Algés, 2000, pp 116 - 119.
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" São como revelações/ são textos prometidos/ com a marca da renovação "


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  " O gato e a casa"

Nas casas onde morou gente
há sempre um gato abandonado
de cabeça forte e um corpo lento
espalhado pela desolação do lugar

Mantém a temperatura na cozinha
arranha as paredes e os seus pensamentos
são habitantes subalternos dos quartos
e das horas de sol à volta do jardim

Mas as casas debaixo das árvores
anseiam ainda por outros homens
nos joelhos feridos e nos quartos interiores
homens que as ocupem e lhes levantem a mão
como garfos cheios de uma fome terrível

E que depois perguntem onde estender os braços
até o espaço ganhar a forma de uma família
de uma redoma confusa, com um crucifixo
e uma finalidade latente de procriação

E os gatos assustam-se com as casas transtornadas
e bufam até que chegam os primeiros carros
que ocupam todos os lugares marcados
e fica apenas o espaço fulminante da culpa

Depois morrem longe dessas casas
e das inquietações, de garras recolhidas
Mas quando nascem outra vez
são belos como relâmpagos
e demoram dias a afagar uma ideia

Abrem os olhos sobre crianças
e homens dóceis como alimento
e aparecem quando querem
em muitos lugares ao mesmo tempo

São como revelações
são textos prometidos
com a marca da renovação
e nos olhos a serpente que embala
o corpo do arrependido
e depois dormem
como se fossem criados
numa casa enroscada ao Inverno

  Tiago Patrício in "Cartas de Praga", Clube Português de Artes e Ideias, s/c., 2010, pp 9 - 11.
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12/08/11

" E o rio estropiado de profundidade obscura/ deitado no esquife ainda a tentar escorrer "

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 "Rio Moravé"

Depois da montanha o rio desce das turbinas
começa a entender o ar que respira
e a fugir do sufoco, a libertar um vapor
e a transformar-se na paisagem escura

O rio moribundo cede à inclinação
de vários anos ao relento
reclama árvores nas margens
e fósseis de peixes oxigenados

Os pássaros nos ramos mais afastados
imitam canções de outros pássaros
sobre rios e mensagens esplêndidas
a desaguar numa melopeia occipital

E o rio estropiado de profundidade obscura
deitado no esquife ainda a tentar escorrer
a fingir uma pulsação quando assalta o açude
e a fazer uma espuma azul na rebentação

A destilação do rio é um vapor cáustico
que reaparece como um cadáver espesso de três dias
e imita uma descida como se tivesse nos planos a juventude
de refazer-se nas nuvens e regressar às montanhas

Tiago Patrício in "Cartas de Praga", Clube Português de Artes e Ideias, s/c., 2010, p 57.
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11/08/11

" A salvação é uma ruína temerária, uma praia sem pegadas (...) "


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  "Há uma lâmina reduzindo o mundo"

Neste lugar, para me salvar, basta olhar o céu.
O sono solitário da água queima-me as mãos, adormeço rodeado de árvores e pássaros.
Agora engano melhor o silêncio dos dias, as suas casas frágeis, alcanço o náufrago
iluminado, as velas da piedade amarram-me à escuridão da infância,
às sedas nocturnas do medo, à mortalha mais límpida dos relâmpagos
da névoa cortada pelos rápidos remos dos remadores.

A salvação é uma ruína temerária, uma praia sem pegadas, um furtivo
sorriso à escassez das pétalas esmagadas do quintal.
Há uma pureza no sol encantado que desenhavas com os seus raios muito firmes
e quentes, há uma lâmina reduzindo o mundo, manchando os cães com sangue,
expulsando as estrelas, a dardejante beleza das mulheres,
a formosa pele que à transparência da luz se expunha.

Agora, neste lugar, se eu pudesse, para me salvar, bastava olhar o céu.

  Jorge Velhote in "Saudade - Revista de Poesia " Nº 1,
 Dezembro, 2001, Direção de António José Queirós.
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10/08/11

" Dessa espécie de som, dessa perdida água, "

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 "Calculada melancolia "

De um e do outro tudo sabíamos. O mar,
o rio, se cruzando pelas nossas largas calças,
os brinquedos de lata golpeando a curiosidade,
o primeiro sabor do sangue.
Alguns antecedentes, limalhas de sol, silenciosas ferrugens
que, entre mesas e chávenas de café,
se permutam.

Dessa espécie de som, dessa perdida água,
viviamos os dias, lendo livros, olhando montras,
as belíssimas mulheres que nos cotejavam o olhar, manobrando
ancas, os metálicos lábios como relógios,
detalhes.

Sem um única palavra, calculada melancolia,
comovidos, os corações cambiávamos,
triunfantes.

  Jorge Velhote in "HÍFEN - Cadernos Semestrais de Poesia", Nº 2,
Abril/Setembro, 1988, Direcção: Inês Lourenço.
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" Que poderei comprar para o vazio/ deste anoitecer? um pouco do meu sol? "

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 "Piazza S. Marco"

A sabedoria é para os barcos
sob as pontes da noite,
a alma, o oiro.
Aqui dormiria, à distância singular
de um beijo, um lençol de água,
um travesseiro de cuidada pedra.
Outras coisas da infância, mas devagar, outros corpos a penumbra
percorrendo,
a poeira da luz espiando os sapatos, a navalha chamuscada.

Também eu herdei a perigosa ilusão
da bicicleta, um silêncio
danado por mulheres, pelo ardor cristalino do álccol,
no limbo mais rasgado do mundo;
o segredo tão natural da pintura
na profecia azul dos mosaicos,
no carvão amargo da noite;
certos vestígios pelo tráfico outrora florescente:
sedas, frutos, tabaco, pequenos tesouros,
caixinhas de laque, sandálias
gastando, dia após dia, a mágoa.

Que posso fazer pelas pedras desta praça senão
cobri-las de aves, trapos, moedas
e pela poalha do crepúsculo seduzir os vitrais,
os óleos santos, o sândalo, o bolor intenso das paredes?
Cambiar a chuva pelos claustros do vento, o vidro
de oficiante fogo, como
em Murano a família Barelli?

Que poderei comprar para o vazio
deste anoitecer? um pouco do meu sol?
daquele mar, um punhado de areia?

  Jorge Velhote in "Colóquio Letras" Nº 90, Março 1986.
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08/08/11


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      " A Minha Musa "


A minha Musa está longe: dir-se-ia
(é o pensamento dos mais) que nunca existiu.
Se houver porém uma, veste-se com os trapos de um espantalho
posto a custo num xadrez de vinhas.

Abana como pode: resistiu a monções
ficando de pé, só um pouco encurvada.
Se o vento cessa sabe agitar-se ainda
como que a dizer-me caminha sem receio,
logo que te possa ver dar-te-ei vida.

A minha Musa deixou há algum tempo um guarda-roupa
de teatro; e quem com ele se vestia
era da alta sociedade. Um dia foi preenchida
por mim e muito se ufanou. Agora resta-lhe ainda uma manga
e com ela dirige o seu quarteto
de flautas de cana, é a única música que suporto.

  Eugenio Montale in " Poesia ", Assírio & Alvim, Lisboa, 2004,
p 279 ( Tradução de José Manuel de Vasconcelos )
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" La belle dame sans merci "


Claro que as gaivotas cantonais esperaram em vão
as migalhas de pão que eu deitava
para a tua varanda para que ouvisses
os seus gritos mesmo fechada no teu sono.

Hoje faltámos ambos ao encontro
e o nosso breakfast gela entre pilhas
para mim de livros inúteis e para ti de não sei
que relíquias: calendários, estojos, frasquinhos e cremes.

Assombroso o teu rosto obstina-se ainda, recortado
nas telas de cal da manhã;
mas uma vida sem asas não o alcança e o seu fogo
sufocado é fulgência de isqueiro.
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  Eugenio Montale in " Poesia ", Assírio & Alvim, Lisboa, 2004,
p 257 ( Tradução de José Manuel de Vasconcelos ).
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     "A Enguia"


A enguia, a sereia
dos mares  frios que deixa o Báltico
para chegar aos nossos mares,
aos nossos estuários, aos rios
que sobe em profundidade, sob a corrente adversa,
de ramo em ramo e depois
de cabelo em cabelo, adelgaçando-se,
cada vez mais dentro, cada vez mais no coração
da rocha, insinuando-se
nos sulcos do lodo até que um dia
a luz solta dos castanheiros
acende o seu vibrar deslizante em poças de água estagnada,
nas fossas que descem
das faldas dos Apeninos à Romagna;
a enguia, tocha, chicote,
flecha de Amor em terra
que só as nossas ravinas ou os secos
arroios pirenaicos reconduzem
a paraísos de fecundação;
a alma verde que procura
vida nesse lugar onde apenas
morde a canícula e a desolação,
a centenha que diz
tudo começa quando tudo parece
fossilizar-se, tronco sepultado;
a íris breve, gémea
daquela que engastam os teus cílios
e fazes brilhar intacta entre os filhos
dos homens, imersos no teu lodo, serás tu capaz
de não a achar tua irmã?
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 Eugenio Montale in " Poesia ", Assírio & Alvim, Lisboa, 2004,
pp 215 - 271 ( Tradução de José Manuel de Vasconcelos).
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04/08/11

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LITORAIS


bastam alguns talos de piteira
pendurados de um rebordo
no delírio do mar;
ou duas camélias pálidas
nos jardins desertos,
e um alourado eucalipto que mergulha
entre batimentos de asa e loucos voos
na luz;
e eis que num instante
invisíveis fios em mim se enrolam como serpentes,
borboleta numa teia de aranha
frémitos de oliveiras, olhares de girassóis.

Doce cativeiro, agora, litorais
de quem se entrega um pouco
como que a reviver um antigo jogo
nunca olvidado.
Recordo o acre filtro que estendeste
ao confuso adolescente, oh margens:
nas claras manhãs fundiam-se
dorsos de colinas e céu; na areia
das praias era um amplo bater, um igual
fremir de vidas,
uma febre do mundo; e todas as coisas
pareciam consumir-se nelas próprias.

Oh então revolvidos
como o osso do choco pelas vagas
desaparecer a pouco e pouco;
tornar-se
uma árvore rugosa ou uma pedra
polida pelo mar; fundir-se nas cores
dos ocasos; desaparecer carne
para ressurgir nascente ébria de sol,
pelo sol devorada...
Eram estes,
litorais, os votos do menino de outrora
que junto a uma ferrugenta balaustrada
lentamente morria sorrindo.

Até que ponto, marinas, estas frias luzes
falam a quem destroçado vos fugia.
Lâminas de água caminhando
por entre os ramos que se movem; rochas escuras
entre a espuma; flechas de gaivões
vagabundos...
Sim, podia
acreditar um dia em vós ó terras,
belezas funerárias, áureas cornijas
na agonia de cada ser.
Hoje volto
até junto de vós mais forte, ou estarei enganado, se bem que o coração
pareça abrir-se em recordações ledas e atrozes.
Triste alma passada
e tu vontade nova que me chamas,
tempo é talvez de vos unir
num sereno porto de sabedoria.
E um dia virá ainda o convite
de vozes de ouro, de lisonjas audazes,
alma minha nunca mais dividida. Pensa:
mudar para hino a elegia; refazer-se;
não faltar mais.
Poder
tal como estes ramos
ontem descarnados e nus e hoje cheios
de frémitos e linfa,
sentir
amanhã também por entre os perfumes e os ventos
um refluir de sonhos, um louco urgir
de vozes rumo a um fim; e no sol
que vos inunda, litorais,
tornar a florir!

 Eugenio Montale in "Poesia", Assírio & Alvim, Lisboa, 2004,
pp 135 - 139 ( Tradução de José Manuel de Vasconcelos ).
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03/08/11

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"Two Loves"
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I dreamed I stood upon a little hill,
And at my feet there lay a ground, that seemed
Like a waste garden, flowering at its will
With buds and blossoms. There were pools that dreamed
Black and unruffied; there were white lilies
A few, and crocuses, and violets
Purple or pale, snake-like fritillaries
Scarce seen for the rank grass, and through green nets
Blue eyes of shy peryenche winked in the sun,
And there were curious flowers, before unknown,
Flowers that were stained with moonlight, or with shades
Of Nature's willful moods; and here a one
That had drunk in the transitory tone
Of one brief moment in a sunset; blades
Of grass that in an hundred springs had been
Slowly but exquisitely nurtured by the stars,
And watered with the scented dew long cupped
In lillies, that for rays of sun had seen
Only God's glory, for never a sunrise mars
The luminous air of Heaven. Beyond, abrupt,
A grey stone wall, o'ergrown with velvet moss
Uprose; and gazing I stood  long, all mazed
To see a place so strange , so sweet, so fair.
And as I stood and marvelled, lo! across
The garden came a youth; one hand he raised
To shield him from the sun, his win-tossed hair
Was twined with flowers, and his hand he bore
A purple bunch of bursting grapes, his eyes
Were clear as crystal, naked  all was he,
White as the snow on pathless mountains frore,
Red were his lips as red wine-spilith that dyes
A marble floor, his brown chalcedony.
And he came near me, with his lips  uncurled
And kind, and caught my hand and kissed my mouth,
And gave me grapes to eat, and said, "Sweet friend,
Come I will show thee shadows fo the world
And images of life. See from the South
Comes the pale pageant that hath never an end.
And Io! within the garden of my dream
I saw two walking on a shining plain
Of golden light. The one did joyous seem
And fair and blooming, and a sweet refrain
Came from his lips; he sang of pretty maids
And joyous love of comely girl and boy,
His eyes were bright, and 'mid the dancing blades
Of golden grass his feet did trip for joy;
And in his hand he held an ivory lute
with strings of gold that were as maidens'hair,
And sang with voice of tuneful as a flute,
And round his neck three chains of roses were,
But he that was his comrade walked aside;
He was full sad and sweet, and his large eyes
Were strange with wondrous brightness, staring wide
With gazing; and he sighed with many sighs
That moved me, and his cheeks were wan and white
Like pallid lillies, and his lips were red
Like poppies, and his hands he cienched tight,
And yet again unclenched, and his head
Was wreathed with moon-flowers pale as lips of death.
A purple robe he wore, o'erwrought in gold
With the device of a great snake, whose breath
Was fiery flame; which when I did behold
I feel a-weeping, and I cried , 'Sweet youth,
Tell me why, sad and sighing, thou dost rove
these pleasent realms? I pray thee speak me sooth
What is thy name?' He said, 'My name is Love'.
Then straight the first did turn himself to me
And cried, ' He lieth, for his name is Shame,
But I am Love, and I was wont to be
Alone in this fair garden, till he came
Unasked by night; I am true Love, I fill
The hearts of boy and girl with mutual flame.'
Then sighing, said the other, 'Have thy will,
I am the love that dare not speak its name.'

  Lord Alfred Douglas in "Two loves & other poems", Bennett & Kitchel, London, 1990.
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02/08/11

o primeiro olhar...


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Oscar Wilde (Stephen Fry) e Lord Alfred Douglas (Jude Law): o primeiro encontro.
In "Wilde" de Brian Gilbert (1997). Do elenco constam também: Vanessa Redgrave
e Orlando Bloom.
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01/08/11


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Enquanto trabalhava, os seus olhos exibiam um ar curiosamente penetrante. Estava a pensar na carta para o seu amigo Antonapoulos. Já passava da meia-noite quando terminou finalmente o trabalho. Pousou a salva e a sua testa estava transpirada de tanta concentração. Limpou a bancada e começou a escrever. Adorava formar as palavras no papel e fazia-o com tanto cuidado como se a folha fosse uma salva de prata.

"Meu único Amigo:
Li na nossa revista que a Associação se vai reunir este ano, numa convenção a realizar em Macon. Haverá oradores e um banquete composto por quatro pratos. Já o estou a imaginar. Lembraste de que sempre quisemos ir a uma dessas convenções, mas nunca o fizemos? Quem me dera que o tivéssemos feito. Quem me dera que fossemos à convenção deste ano, acredita que até já o imaginei na minha cabeça. Mas é claro que nunca poderia ir sem ti (...) Escrevo que imagino todas essas coisas. Escrevo e não escrevo. As minhas mãos estão paradas há tanto tempo que tenho alguma dificuldade em me lembrar como é que se faz. E, quando penso na convenção, imagino todos os convidados parecidos contigo, meu Amigo.
No outro dia, estive em frente à nossa casa. Agora moram lá outras pessoas, Lembras-te do carvalho enorme que havia mesmo em frente? Cortaram-lhe os ramos mais altos, para não se emaranharem nos fios dos telefones, e a árvore acabou por morrer. O resto dos ramos apodreceu e o tronco está todo oco. E o gato aqui da loja (aquele que tu costumavas pegar ao colo) comeu qualquer coisa venenosa e morreu. Foi muito triste."

A caneta parou no ar, por cima da folha de papel. Singer deixou-se ficar quieto durante algum tempo, muito tenso, sem escrever uma única palavra. Depois, pôs-se de pé e acendeu um cigarro. A loja estava fria e havia um odor desagradável no ar, uma mistura de petróleo, de líquido para polir pratas e de tabaco. Singer vestiu o sobretudo, enrolou o cachecol à volta do pescoço e recomeçou a escrever com uma determinação vagarosa.

"Lembras-te das quatro pessoas de que te falei quando estive aí? Fiz um desenho para ti: o negro, a miúda, o homem do bigode e o dono do New York Café. Gostava de te contar umas coisas sobre eles, mas ainda não sei como as pôr sob a forma de palavras.
Estão todos muito absorvidos. Aliás, estão tão absorvidos que é difícil conseguires visualizá-los. Quando digo "absorvidos", quero dizer que a mente deles não lhes dá descanso. Aparecem no meu quarto e falam tanto, mas tanto, que não percebo como é que uma pessoa consegue abrir e fechar tantas vezes a boca, sem ficar completamente esgotada.
(...) É assim que eles falam quando vêm ao meu quarto. As palavras que têm no coração não lhes dão descanso, por isso estão sempre tão absorvidos (...) Inclusivamente, chegaram a ser mal-educados uns com os outros. Sabes bem que eu sempre disse que é uma grande falta de educação ignorar os sentimentos dos outros. Mas foi mesmo isso que aconteceu. Não compreendo, por isso te escrevo, porque sinto que tu vais compreender. Estou com uma sensação estranha. Mas já escrevi imenso sobre esse assunto e calculo que já estejas saturado. Eu também estou.
Já se passaram cinco meses e vinte e um dias. Estou sozinho, sem ti, há todo esse tempo. Só penso no dia em que estaremos novamente juntos. Não sei o que será de mim se não te puder ver em breve."

Singer pousou a cabeça na bancada e descansou um bocado. O cheiro e o toque da madeira lisa no seu rosto recordou-o dos tempos de escola. Fechou os olhos e sentiu-se agoniado. Só via o rosto da Antonapoulos e as saudades que sentia do amigo eram tão fortes que lhe cortavam a respiração. Pouco depois, Singer endireitou-se e pegou na caneta.

"O presente que encomendei para ti não chegou a tempo de ir na caixa que te enviei no Natal. (...) Tenho saudades dos teus cozinhados. No New York Café, as coisas estão muito mal. Aqui há uns tempos, encontrei uma mosca cozida dentro da sopa. Estava misturada com os vegetais. Mas isso não é importante. Sinto tanto a tua falta, estou tão sozinho... Em breve irei visitar-te. Só tenho férias daqui  a seis meses, mas acho que consigo tirar uns dias até lá. Tem mesmo de ser. Não consigo estar sem ti, entendes?

Do teu,
John Singer"

Eram duas da manhã quando Singer regressou a casa. O edifício enorme e cheio de gente estava mergulhado na escuridão, mas ele subiu cuidadosamente os três lanços de escadas, sem nunca tropeçar. Retirou dos bolsos os cartões que costumava guardar, o relógio e a caneta de tinta permanente. Em seguida, pendurou a roupa nas costas da cadeira, com cuidado. O pijama de flanela cinzento era quente e macio. Puxou o cobertor até ao pescoço e adormeceu de imediato.

  Carson McCullers in " O coração é um caçador solitário ", Editorial Presença,
Lisboa, 2010, pp 213 - 216.
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