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Poema 2 do Ciclo "Vozes Apanhadas do Chão na Igreja de San Miniato al Monte"
A minha vida divide-se entre luz e sombra.
Dos vinte aos vinte e nove fui aplaudido
por holofotes em cio, todas as notícias
me queriam conhecer, e em meus braços
decidia-se a beleza ou fealdade das mulheres.
Quinze filmes de sucesso e depois, o desastre:
quatro fracassos consecutivos. O meu rosto,
disseram, passara de moda, ultrapassado
pelas máscares de gás que atravessaram,
com a guerra, meia Europa, quando o público
desatou a imitar o cinismo dos intelectuais
e a achar ridículo o sensível romantismo
dos meus gestos. Assim se fundiu a minha
auréola, o meu prestígio. Remetido para
as trevas, nunca mais fui perseguido por
fotógrafos, e tudo em meu redor se esvaziou
como um balão abandonado pelo fogo.
No meu funeral, vinte anos depois, nenhuma
apaixonada deu a cara, nenhuma malcasada.
Só então compreendi quão morto estava.
Reflecti, vós que passais, na minha história:
morre duas vezes quem viveu da sua imagem.
José Miguel Silva in " Erros Individuais ", Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2010, p 52.
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11/02/11
"Irritado, estuga o passo, cada vez/ mais insensível à seráfica beleza"
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"Uffizi"
Que faz um céptico hedonista e quezilento
no país da arte sacra? Como pode
libertar-se da noção de que estes jogos
de volumes, estes planos vivamente
coloridos, representam tudo aquilo em
que não crê: o fanatismo, a videiterna,
o sacrifício do corpo? Deambula
pelas salas como um cão esfomeado
por um campo de tremoço, sem achar
em tão exótica e senil mitologia
firme carne onde ferrar o pensamento.
Irritado, estuga o passo, cada vez
mais insensível à seráfica beleza
das madonas parideiras, de sorriso
complacente, ao intérmino desfile
de agonias, ascensões e pietás,
procurando avidamente as belas damas
de Bronzino, as doces Vénus ou até
o rosto duro (mas humano, pelo menos)
de burgueses, mercenários e fidalgos:
emissários do real, da violência
do desejo deturpado em senhorio.
À saída é contemplado pelo ébrio
sorriso dum velhaco sem futuro,
p'lo olhar esfomeado duma Maggie
de cem quilos, por dois cacos à procura
duma cola essencial. E promete
a São Vermeer cometer a breve trecho
expiatória romagem ao terreno,
liberal e nivelado mundo novo
da pintura de seiscentos holandesa.
José Miguel Silva in "Erros Individuais", Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2010, p 25.
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"Uffizi"
Que faz um céptico hedonista e quezilento
no país da arte sacra? Como pode
libertar-se da noção de que estes jogos
de volumes, estes planos vivamente
coloridos, representam tudo aquilo em
que não crê: o fanatismo, a videiterna,
o sacrifício do corpo? Deambula
pelas salas como um cão esfomeado
por um campo de tremoço, sem achar
em tão exótica e senil mitologia
firme carne onde ferrar o pensamento.
Irritado, estuga o passo, cada vez
mais insensível à seráfica beleza
das madonas parideiras, de sorriso
complacente, ao intérmino desfile
de agonias, ascensões e pietás,
procurando avidamente as belas damas
de Bronzino, as doces Vénus ou até
o rosto duro (mas humano, pelo menos)
de burgueses, mercenários e fidalgos:
emissários do real, da violência
do desejo deturpado em senhorio.
À saída é contemplado pelo ébrio
sorriso dum velhaco sem futuro,
p'lo olhar esfomeado duma Maggie
de cem quilos, por dois cacos à procura
duma cola essencial. E promete
a São Vermeer cometer a breve trecho
expiatória romagem ao terreno,
liberal e nivelado mundo novo
da pintura de seiscentos holandesa.
José Miguel Silva in "Erros Individuais", Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2010, p 25.
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