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16/08/12


                           " À Inglaterra"

                          (  Fragmento )


Ó cínica Inglaterra, ó bêbeda impudente,
Que tens levado, tu, ao negro e à escravidão?
Chitas e hipocrisia, evangelho e aguardente,
Repartindo por todo o escuro continente
A mortalha de Cristo em tangas d'algodão.

Vendes o amor ao metro e a caridade às jardas,
E trocas o teu Deus a borracha e marfim,
Reduzindo-lhe o lenho a c'ronhas d'espingardas,
Convertendo-lhe o corpo em pólvora e bombardas,
Transformando-lhe o sangue em aguarrás e em gim!

Teus apóstolos vão, prostituta devassa,
Com o fim de levar os negros para o Céu,
Desde o Zaire ao Zambeze e desde o Cabo ao Niassa,
Baptizando a Impiedade em Jordões de cachaça,
Mostrando-lhe o teu Deus na tua hóstia - o guinéu!

A honra para ti é inútil bugiganga.
O teu pudor é como um Matabel sem tanga,
Monstruoso ladrão, bárbaro traficante;
Compras a alma ao negro a genebra e missanga,
Vendendo-lhe a tua bíblia a queixais de elefante.

A tua bíblia! o teu Cristo!... A tua bíblia é uma agenda
Em que a virtude heróica a cifras se reduz.
E o teu Cristo londrino é um Deus de compra e venda,
Deus que ressuscitou para abrir uma tenda
De cortiça, carvão, álcool e panos crus!

Pela estrada da História, ó milhafre daninho,
Vai um povo seguindo o seu norte polar,
E tu és ladrão que lhe sais ao caminho,
Com manha do lobo e a coragem do vinho,
A roubar-lhe os anéis para o deixar passar!

Quando espreitas o fraco apontas a clavina,
Quando avistas o forte envergas a libré...
A tua mão ora pede esmola ora assassina...
Teu orgulho, covarde, é, meu Bayard d'esquina,
Como um tigre de rastro e um capacho de pé!
...    ...   ...   ...
Quando já se desenha em arco d'aliança
A porta triunfal do século que vem,
por onde dez nações marchando atrás da França,
Palmas na mão, cantando um cântico d'esp'rança
Hão-de entrar numa nova, ideal Jerusalém;
...    ...   ...    ...
Hão-de um dia as nações, como hienas dementes,
Teu império rasgar em feroz convulsão...
E no novo halali, dando saltos ardentes,
Com a baba da raiva esfervendo entre os dentes,
A bramir, levará cada qual seu quinhão!

E tu ficarás só na tua ilha normanda
Com teus barões feudais e teus mendigos nus:
Devorará teu peito um cancro aceso, a Irlanda:
E a tua carne hás-de vê-la, ó meretriz nefanda,
Lodo amassado em sangue, outro amassado em pus!

E assim como brutais monstros de pesadelo
No soturno porão duma nau sem ninguém,
Entre nuvens de fogo e temporais de gelo,
De bombordo a estibordo a rolar num novelo,
Desabando e rugindo, aos montões, num vaivém,

Se estrangulam febris, roucos, dilacerantes,
As pupilas a arder em brasas infernais,
Panteras contra leões, ursos contra elefantes,
Cobras, em redemoinho a silvar dardejantes,
Búfalos escornando os tigres e os chacais;

Assim vós, assim vós, dura raça assassina,
Sobre essa nau de pedra onde o mais vai bater,
Vos estrangulais numa carnificina,
De que só ficará, sob a densa neblina
Num pântano de sangue uma Gomorra a arder!

Milhões, milhões, milhões de bocas esfaimadas
Hão-de dilacerar-te o corpo com furor,
E a pedra a dinamite e a carne a punhaladas
Hão-de tombar no mesmo escombro ensanguentadas,
Em baques de hecatombe e blasfémias de dor!...

Hão-de os lordes rolar em postas no Tamisa!
Há-de o corpo de um rei dar um banquete a um cão!
Teu solo há-de tremer como uma pitonisa,
E a canalha sem lei, sem Deus e sem camisa
Abrirá teu bandulho infecto, oh Deus Milhão!

Bancos, docas, prisões, arsenais, monumentos,
Tudo rebentará em cacos pelo ar!...
E ao soturno fragor de teus finais lamentos
Responderão - ladrando! as cóleras dos ventos!
Responderão - cuspindo! os vagalhões do mar!

   Junqueiro, Guerra. Horas de Luta. Porto: Lello & Irmão Editores, 1954, pp 75 - 78.

Nota - Este longo poema de Guerra Junqueiro está datado de Fevereiro de 1890 e tem por base o célebre Ultimatum da Inglaterra a Portugal durante o reinado de D. Carlos I. É um dos mais referidos poemas de Junqueiro.
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03/05/11

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                  "O Regímen"


A sociedade portuguesa está organizada para o mal. Não é já o mal esporádico e fortuito, em casos  isolados que ràpidamente se combatem. Não; é o mal colectivo, o mal em norma de vida, o mal em sistema de governo. Os poderes funcionam deliberadamente com um fim: produzir o mal. Porquê e para quê? Porque o mal são eles e querem conservar-se. Um regímen corrupto só na corrupção subsiste. Mantém-se na corrupção, como alguns bacilos na porcaria. O seu ódio ao bem é fundamental e orgânico.
A filosofia da vida dum tal regímen é a filosofia do porco: devorar.
Mesa, cama e comua, eis a sua trindade verdadeira. Vive na carne e para a carne. Sensualismo tenebroso, regressão do homem à bestialidade do quadrúpede.
Ora, um regímen assim há-de, por natureza, absorver o mal e repelir o bem. Desde que o mal é a sua própria essência, o bem constitui a sua negação e a sua morte, o bem é o adversário. Portanto elimina-se.
Mas como semelhante compreensão da vida e do destino do homem é, por monstruosa, inconfessável, envolve-se o crime na mentira, esconde-se a chaga em linhos brancos.
Assim, o regímen declara-se cristão, organizando e mantendo um clero de apóstolos que difunda nas almas a verdadeira doutrina de Jesus: amor, humildade, pobreza, desprendimento, subordinação da vida da carne à vida angélica do espírito.
E, além de bom, declara-se justo. Nas suas escolas aprendem a justiça os que hão-de exercê-la e distribui-la no pretório. E nenhuma lei será lei antes de aprovada em cortes pela vontade nacional.
E, além de bom e justo, declara-se forte. Conta vinte mil homens, armados em guerra, para manter a paz, escudar a lei e sustentar o direito.
Mas tudo um engano, uma fraude, uma hipocrisia descarada.
O regímen, pelos homens que o exercem, denota um fim: viver estùpidamente, cinicamente, a vida bruta da matéria. Os poderes que o ajudam são coniventes e são cúmplices.
Assim, o clero é um desaforado instrumento do regímen. Espionagem de almas, batotas de eleições.
Assim a justiça é a vontade do regímen. Ele acusa, ele condena, ele absolve. Quando quer e como quer.
Assim, os deputados são, ordinàriamente, os lacaios do regímen. Dão-lhes decretos a aprovar, como se dão botas a engraxar.
Assim, o exército é a garantia imutável do regímen. Defende-o contra o povo, guarda-o contra a justiça e contra a lei!
Que significa então este regímen? O imperativo da besta, a ditadura do mal. Converte a religião em sacrilégio, o direito em crime, a verdade em burla, a força em tirania.
Os seus amigos são os inimigos da alma. Odeia o Espírito, porque o Espírito é bom, é belo, é justo, é verdadeiro. Repele a arte, repele a virtude, repele a ciência: com hipocrisia, é claro. Deixa livremente rezar o santo, meditar o sábio ou cantar o poeta. Mas o santo há-de perder a alma, o sábio há-de perder a voz e o poeta há-de perder a vergonha, diante das mentiras, das iniquidades e das infâmias do regímen (...)
Regímen hediondo! Assassino de Deus, coveiro das almas.
Hipérbole? não. É vulgar, banal, burlesco, olhado em Lisboa, anedòticamente, com olhos de ironia. Mas, olhado no tempo e no espaço, perante Deus, avoluma, caliginoso, em monstro formidável. Surge demoníaco. Dissolve, destrói, desfaz, desorganiza. A ruína bruta é ainda o menos. Uma parede no chão, levanta-se; um mercado perdido, encontra-se; um banco sem ouro, atulha-se de ouro fàcilmente. Mas a ruína moral! A morte de milhões de almas, milhões de ideias, de consciências! A abóboda estrelada do pensamento vestindo-se de noite fúnebre, noite de caos! Horroroso! pavoroso!
Regímen sinistro! És a árvore da morte, a árvore do mal. A tua sombra esterilizou o nosso campo; os teus frutos gelaram o nosso coração. Quebrar-te um ramo ou espezinhar-te um fruto, para quê? Deitarás mais ramos, deitarás mais frutos. O que é necessário, árvore tenebrosa, é arrancar-te pela raíz e fazer contigo uma fogueira. Depois aremos o campo, semeemos o trigo...

  Guerra Junqueiro in " Horas de Luta ", Lello & Irmão Editores, Porto, 1954, pp 95 - 98.

Nota: este texto de Junqueiro está datado de 15 de Novembro de 1899 e, como é hábito, conservo sempre a grafia das obras, daí, portanto, os advérbios de modo estarem acentuados.
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25/09/09




Que noite escura! Que noite escura!
Bramem as ondas cavernosas...
A grande armada vai largar...
Oh, a armada do rei!... oh, as naus pavorosas
Na escuridão, turbilhonando, a baloiçar!...
São esquifes mortuários,
São féretros com velas de sudários,
Tumbas negras nas ondas a boiar!...
Ai que gemidos, que alaridos
De multidões na praia, olhando o mar!...
Lá vem o rei... lá vem a côrte... e luzes, luzes
De brandões, de tocheiros a sangrar...
Vai a embarcar?... vai a enterrar?... Não trazem cruzes,
Nem há sinos por mortos a dobrar...
Oh, a lúgubre, estranha comitiva
A bandada de espectros singular!...
É gente morta?... é gente viva?...
Procissões de defuntos a marchar!...
Cortesãos, cavaleiros e soldados,
Tudo esqueletos descarnados,
Olhos de treva e crânios de luar!...
Ladeiam côches fúnebres doirados...
São os côches d'El-Rei... vai a enterrar?...
Lá se apeiam as damas das liteiras...
Gestos de manequins, rir de caveiras...
Fitas e plumas sôltas pelo ar...
Olha a rainha, vem em braços, morta e doida.
Morta e doida a clamar que a vão matar!...
E o rei!... olhem o rei!... que rei de entrudo!...
Um porco em pé, com manto de veludo
E c'roa na cabeça, a andar, a andar!
Mas reparem... tem cornos! é cornudo!
Dois chavelhos de boi no seu logar!
Um rei, que é porco e tem chavelhos!
Um rei que é porco e tem chavelhos!
Que fantasia! enlouqueci!... ando a sonhar!...
Mas bem no vejo! eu bem no vejo,
C'roa de rei, tromba de porco e chifres no ar!...
.....................
Cái de rastros, chorando, o povo inteiro,
Beija-lhe a côrte as patas e o traseiro...
E êle a grunhir! e êle a roncar!...
......................
Lá vão as naus... lá vai o rei com seus tesoiros...
E lá ficam na praia, como agoiros,
As multidões soturnas a ulular! ...
......................
Olha uma águia rubra, uma águia bifronte,
Incendiando o horizonte,
A voar, a voar, a voar!...
Ai dos rebanhos!... ai dos rebanhos!...
Águia de extermínios, onde irás poisar?!
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Guerra Junqueiro In "Pátria", Livraria Chardron, de Lélo & Irmão,
Porto, 1912 (Quarta Edição), pp 129 - 131.
NOTA: este poste mantém a grafia de 1912.
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26/05/08


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" O Melro"
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O melro, eu conheci-o:
Era negro, vibrante, luzidio,
Madrugador, jovial;
Logo de manhã cedo
Começava a soltar, dentre o arvoredo,
Verdadeiras risadas de cristal.
E assim que o padre-cura abria a porta
Que dá para o passal,
Repicando umas finas ironias,
O melro; dentre a horta,
Dizia-lhe:"Bons dias!"
E o velho padre-cura
Não gostava daquelas cortesias.
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O cura era um velhote
Malicioso, alegre, prazanteiro:
Não tinha pombas brancas no telhado
Nem rosas no canteiro:
Andava às lebres pelo monte, a pé,
Livre de reumatismos,
Graças a Deus, e graças a Noé.
O melro desprezava os exorcismos
Que o padre lhe dizia:
Cantava, assobiava alegremente;
Até que ultimamente
O velho disse um dia:
"Nada, já não tem jeito!, este ladrão
Dá cabo dos trigais
Qual seria a razão
Por que Deus fez os melros e os pardais?!"
E o melro entretanto
Honesto como um santo,
Mal vinha no oriente
A madrugada clara,
Já ele andava jovial, inquieto,
Comendo alegremente, honradamente,
Todos os parasitas da seara
(...)
Chegou a coisa a termo
Que o bom padre-cura andava enfermo;
Não falava nem ria
Minado por tão íntimo desgosto;
E o vermelho oleoso do seu rosto
Tornava-se amarelo dia a dia.
(...)
Enxergou por acaso (que alegria!,
Que ditoso momento!)
Um ninho com seis melros, escondido
Entre uma carvalheira.
E ao vê-los exclamou enfurecido:
"A mãe comeu o fruto proibido;
esse fruto era a minha sementeira;
Era o pão, e era o milho;
Transmitiu-se o pecado.
E, se a mãe não pagou, que pague o filho,
É doutrina da Igreja. Estou vingado!"
... ...
... ...
"O Melro" (excertos), In "A Velhice do Padre Eterno"
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