18/01/14

 
 
    À vrai dire, je garde toujours à l'esprit une autre possibilité, naturellement aussi très aventureuse, à savoir que le concept temporel serait effectivement une donnée de l'inconscient, mais il s'agirait là d'un temps qui se verrait en quelque sorte disloqué, de sorte que l'inconscient aurait la faculté de dépasser le cours normal du temps, percevant ainsi des choses qui n'existent pas encore. La substance de toute chose est en effet déjè présente dans l'inconscient. On rêve par exemple souvent d'événements qui ne se dérouleront que le lendemain ou même encore plus tard. L'inconscient ne se préocupe pas de notre perception habituelle du temps, ni de la relation causale des choses entre elles. L'étude de séries de rêves permet également de le vérifier: en effet, la série de rêves ne représente pas une suite chronologique d'événements au sens de notre perception habituelle du temps. Il est pour cette raison très difficile d'y repérer un avant et un après. Si nous voulions caractériser l'essence même de la série de rêves, nous ne dirions pas qu'elle représente une série chronologique (...) mais qu'elle se rattache à un centre non identifiable à partir duquel les rêves rayonnent. (...)
    Du fait que les rêves ne parviennent à la conscience que l'un après l'autre, nous leur attribuons une certaine qualité temporelle et les relions entre eux de façon causale. Or il n'est pas démontré que la suite réele d'un premier rêve ne parvienne qu'ultériurement à la conscience. La série qui nous paraît chronologique n'est pas la véritable série. Cette explication ne représente en fait qu'une concession de notre part à notre perception habituelle du temps. Un nouveau thème peut très bien apparaître dans un rêve, avant de disparaître pour céder de nouveau la place à un thème antérieur. La véritable configuration du rêve est radiale: les rêves rayonnent à partir d'un centre, et ne viennent qu'ensuite se soumettre à l'influence de notre parception du temps. Les rêves se subordonnent en réalité à un noyau central de signification. 
 
 
Jung, Carl Gustav. Sur l'interprétation des rêves. Paris: Albin Michel, 1998, 21 - 22.
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13/01/14



 
 
Não é difícil entender por que os psicopatas são atraídos para o crime de colarinho branco e se dão bem nesse nicho. Em primeiro lugar, há um monte de oportunidades rentáveis à mão. Como disse um dos sujeitos que entrevistámos, condenado por vender ações corporativas forjadas: "Eu não estaria na prisão se não houvesse tantos potes de biscoito implorando que eu enfiasse a mão dentro deles" (...)
Em segundo lugar, os psicopatas têm todas as ferramentas de que precisam para fraudar e enganar os outros: eles são convincentes, encantadores, seguros de si, hábeis em situações sociais, frios sob pressão, inteiramente implacáveis e não se intimidam com o risco de serem apanhados. Quando desmascarados, continuam a agir como se nada tivesse acontecido e, com frequência, deixam seus acusadores desnorteados e incertos a respeito de suas próprias posições.
Finalmente, o crime de colarinho branco é lucrativo, os riscos de os fraudadores serem descobertos são mínimos e as penalidades não costumam passar de triviais (...) Em muitos casos, as regras do jogo da ganância e da fraude colocadas em prática em grande escala não são as mesmas aplicadas ao crime comum. Com frequência, os jogadores da ganância e da fraude formam uma rede livremente estruturada para proteger seus interesses mútuos: eles são da mesma classe social, frequentaram as mesmas escolas, pertencem aos mesmos clubes (...).
É claro que a mentira e a manipulação patológicas não são exclusivas de psicopatas. O que torna os psicopatas diferentes dos outros é a incrível facilidade com que mentem, o alcance de sua fraude e a frieza com que colocam seus planos em prática.
No entanto, há algo mais, igualmente intrigante, no discuro dos psicopatas: eles costumam usar declarações contraditórias e logicamente inconsistentes que, em geral, passam despercebidas. Pesquisas recentes sobre a linguagem dos psicopatas fornecem algumas pistas importantes para a solução desse quebra-cabeça e também servem para explicar sua fantástica habilidade de manipular palavras - e pessoas - com tanta facilidade (...).
Essas observações clínicas tocam no ponto crítico do mistério da psicopatia: a linguagem de duas dimensões, sem profundidade emocional.
Uma analogia simples pode ajudar. O psicopata é como uma pessoa que não enxerga cores, que vê o mundo em sombras cinzentas, mas que aprendeu como deve agir no mundo colorido (...) o psicopata não tem um elemento importante da experiência: nesse caso, o aspecto emocional, mas consegue aprender as palavras que os outros usam e, assim, é capaz de descrever ou de imitar experiências que na verdade não consegue entender. Como coloca Cleckley: "Ele pode aprender a usar pralavras comuns... e também aprende a reproduzir de modo apropriado os gestos, as expressões faciais e os movimentos do sentimento... mas não experimenta o sentimento real."
 
 
 
   Hare, Robert D. . Sem Consciência, o mundo perturbador dos psicopatas que vivem entre nós. Porto Alegre: Artmed, 2013, pp 130 - 137.
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12/01/14

(Nota - este blogue, preferencialmente dedicado à literatura, tem também uma considerável lista de autores pertencentes Psicologia Social, Psicologia Clínica e Psicanálise. O psicólogo canadiano Robert Hare é hoje um dos principais especialistas em psicopatias e responsável pela elaboração da Psychopathy Checklist, instrumento universalmente aceite como escala para medir os graus de psicopatia. Segundo Hare, numa entrevista que concedeu, "cerca de um por cento da população mundial preencheria os critérios para o diagnóstico de psicopatia", ou seja, só nos EUA poderão existir cerca de três milhões de psicopatas. Nesta obra são clarificados todos os critérios, diversidade de tipos, bem como os comportamentos específicos do psicopata, é, aliás, interessante a página em que Hare nos diz que este tipo de personalidade pode ser encontrada nos mais diversos lugares: no duro e frio político, no ávido e insensível financeiro e até mesmo no ardiloso e cruel chefe de família. A obra aqui publicitada, apesar de fundamental, só pode ser encontrada na sua tradução para português variante do Brasil.)
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   Os psicopatas têm uma visão narcisista e exageradamente vaidosa de seu próprio valor e importância, um egocentrismo realmente espantoso, acreditam que têm direito a tudo e consideram-se o centro do universo, seres superiores que têm todo o direito de viver de acordo com suas próprias regras. "Não é que eu não cumpro as leis", disse um dos sujeitos da nossa pesquisa. "Eu sigo as minhas próprias leis. Nunca violo minhas próprias leis." Em seguida, descreveu essas regras nos seguintes termos: "escolhendo a número um".
(...) Os psicopatas com frequência se comportam como pessoas arrogantes e vaidosas, sem nenhuma vergonha - são seguros de si, de opinião firme, dominadores e convencidos. Adoram ter poder e controle sobre os demais e parecem incapazes de reconhecer que as outras pessoas têm opiniões próprias válidas. Parecem carismáticos ou "electrizantes" para alguns.
   Raramente os psicopatas ficam constrangidos com problemas jurídicos, financeiros ou pessoais. Em vez disso, consideram esses problemas como derrotas temporárias, resultado da má sorte, de amigos traidores ou de um sistema injusto e incompetente..
   Embora com frequência digam ter objetivos específicos, na verdade, os psicopatas demonstram pouca compreensão das qualificações necessárias - não fazem ideia do que precisam para alcançar objetivos e têm pouca ou nenhma chance de alcancá-los, dado seu histórico de desempenho e a oscilação de seu interesse na formação educacional.
(...) Os psicopatas mostram uma assombrosa falta de preocupação com os efeitos devastadores de suas ações sobre os outros. Com frequência, são completamente diretos sobre o assunto e declaram, com tranquilidade, que não sentem nenhuma culpa, não sentem remorsos pela dor e destruição que causaram e não veem motivo para se preocupar.
(...) A falta de remorso ou de culpa do psicopata está associada com uma incrível habilidade de racionalizar o próprio comportamento e de dar de ombros para a responsabilidade pessoal por ações que causam desgosto e desapontamento a familiares, amigos, colegas e as outras pessoas que seguem as regras sociais. Em geral, os psicopatas têm desculpas prontas para o seu comportamento e, às vezes, até negam completamente  que o fato tenha acontecido.(...) Perda de de memória, amnésia, blecautes, múltipla personalidade e insanidade temporária brotam constantemente em interrogatórios de psicopatas (...) Em uma distorção irônica, os psicopatas com frequência consideram que as vítimas são eles próprios.
 
 
  Hare, Robert D. . Sem Consciência, o mundo perturbador dos psicopatas que vivem entre nós. Porto Alegre: Artmed, 2013, pp 53 - 58.
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10/01/14

 
 
   - As velas - diz distraído, quando lhe saltam à vista os restos fumegantes das velas do candelabro, colocado na borda da lareira. - Olha, as velas arderam até ao fim.
   - Duas perguntas - diz repentinamente Konrád, numa voz apagada -, disseste que eram duas perguntas. Qual é a outra?...
   - A outra?... - responde o general. Inclinam-se um para o outro, como dois velhos cúmplices que têm medo das sombras da noite e de que as paredes os ouçam. - A outra pergunta?.... - repete sussurrando. - Mas se não respondeste à primeira... Olha - diz numa voz muito baixa -, o pai da Krisztina acusou-me de ter sobrevivido. Queria dizer que tinha sobrevivido a tudo. Porque uma pessoa não responde só com a sua morte. Essa é uma boa resposta. Mas responde também, se sobrevive a alguma coisa. Nós dois, sobrevivemos a uma mulher - diz num tom confidencial. - Tu, ao te ires embora, eu, ao ficar aqui. Sobrevivemos com cobardia ou com cegueira, com ressentimento ou com prudência, o facto é que sobrevivemos.(...) Quem sobrevive ao outro é sempre traidor. Sentíamos que tínhamos de viver, e não é possível atenuar isso, porque ela é que morreu. Morreu, porque te foste embora, morreu porque eu fiquei e não me aproximei dela, morreu porque nós dois, homens, a quem ela pertencia, fomos mais vis, orgulhosos, barulhentos e silenciosos que o que uma mulher podia suportar, porque fugimos dela e a traímos, porque lhe sobrevivemos. Essa é a verdade. Tens de saber isso, enquanto estiveres em Londres, quando tudo acabar, na última hora, sozinho. Eu também saberei, nesta casa: e já o sei. Sobreviver a alguém, a quem amámos tanto (...), a quem estávamos ligados de tal maneira que quase morremos por isso, é um dos crimes mais misteriosos e inqualificáveis da vida. Os códigos penais não conhecem esse crime. Mas nós os dois sabemos (...) nós estamos vivos, e nós os três estávamos ligados duma maneira ou de outra, na vida e na morte (...) E o que importa tudo aquilo que as pessoas pensam sobre isso? Nada - diz com simplicidade. - No fim, o mundo não importa nada. Só importa o que fica nos nossos corações.(...) Gostava que me dissesses (...) qual é a tua opinião sobre isso? Pensas também que o significado da vida não seja outro senão a paixão, que um dia invade o nosso coração, a nossa alma e o nosso corpo, e depois arde para sempre, até à morte?(...) É assim tão profunda, tão maldosa, tão grandiosa e desumana a paixão?(...) Essa é a pergunta.(...) Responde, se sabes responder - diz alto e insistente.
   - Porque perguntas? - replica o outro tranquilamente. - Sabes que é assim.
(...)
   - Agora estás mais tranquilo? - pergunta a ama.
   - Sim - diz o general.
    Caminham juntos (...) O general avança lentamente, apoiando-se na bengala. Percorrem o corredor, cheio de quadros pendurados na parede. A mancha que indica o lugar do retrato da Krisztina, faz parar o general.
   - O quadro - diz - já podes voltar a pô-lo no lugar.
   - Sim - responde a ama.
   - Não tem importância - diz o general.
   - Eu sei.
   - Boa noite, Nini.
   - Boa noite.
 
 
    Márai, Sándor. As velas ardem até ao fim. Lisboa: Pub. Dom Quixote, 2004, pp 150 - 153.
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09/01/14

 
 
Uma pessoa sabe sempre a verdade, essa outra verdade que é oculta pelas representações, pelas máscaras e pelas circunstâncias da vida. Os dois rapazes foram educados juntos, prestaram juramento juntos, viveram juntos durante anos, enquanto estiveram em Viena, porque o oficial da guarda encontrou maneira de o filho e Konrád passarem os primeiros anos de serviço perto da corte (...).
   Konrád era "uma pessoa diferente" e não era possível a ninguém aproximar-se com perguntas do seu segredo. Estava sempre calmo. Nunca discutia. Vivia, cumpria os seus deveres, comunicava com os companheiros, movia-se na sociedade e no mundo, como se o serviço militar nunca terminasse (...) e o filho do oficial da guarda notava com preocupação que Konrád vivia como um monge.
(...) O filho do oficial da guarda implorava em voz baixa que Konrád partilhasse com ele os seus bens, dos quais não sabia bem o que fazer. Konrád explicava-lhe que não podia aceitar nem um tostão. E ambos sabiam que isso era verdade: o filho do oficial da guarda não podia dar dinheriro a Konrád e tinha de suportar andar no mundo, levar uma vida digna da sua posição e do seu nome, enquanto Konrád, em casa, no apartamento de Hietzing, jantava ovos mexidos cinco noites por semana e contava pessoalmente as peças de roupa interior chegadas da lavandaria. Mas isso não era importante. O facto mais assustador era que, além do dinheiro, aquela amizade devia ser salvaguardada para a vida. Konrád envelhecia depressa. Aos vinte e cinco anos de idade já usava óculos para ler. E à noite, quando o amigo chegava de Viena e do mundo, a cheirar a tabaco (...) conversavam em voz baixa durante muito tempo, como se Konrád fosse um mágico que passasse o tempo sentado em casa a matar a cabeça sobre o sgnificado do ser humano e dos fenómenos, enquanto o seu fâmulo andava pelo mundo e recolhia notícias secretas da vida humana. Konrád, de preferência, lia livros ingleses sobre a história da convivência dos homens e sobre o desenvolvimento social. O filho do oficial da guarda apenas lia com prazer livros sobre cavalos e viagens. E porque gostavam um do outro, ambos perdoavam ao outro o pecado original: Konrád perdoava ao amigo a riqueza, o filho do oficial da guarda perdoava a Konrád a pobreza.
   Aquela "diferença" de que o pai tinha falado, quando Konrád e a condessa haviam tocado a Fantasie polonaise, conferia a Konrád um certo poder sobre a alma do amigo.
 
 
  Márai, Sándor. As velas ardem até ao fim. Lisboa: Pub. Dom Quixote, 2004, pp 41 - 46.
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07/01/14

 
 
   A maré estava a mudar, começava a tornar-se estrondosa e violenta. Daphne sentiu que ele estava a afastar-se dela; ele sentiu que a decepcionara.
   Ela pegou-lhe na mão e reconduziu-o à cabana. Quando passavam entre os arbustos um rapaz de cor aproximou-se com um bilhete na mão. Era da loja local, a mais de quilómetro e meio de distância, onde havia um telefone.
   O bilhete dizia: "Daphne, ele tem de estar de novo a bordo amanhã ao meio-dia. Betty."
   Ela disse ao rapaz, que conhecia de viagens anteriores, ali, com o marido:
   - Vem comigo à cabana, para te dar algum dinheiro.
   Assim foi. Ele lançava-lhe olhares estranhos, e era natural: julgaria que aquele dinheiro era um suborno?
   Depois ela disse a James:
   - Hora-limite para ti: meio-dia, amanhã.
   - Não vou.
   - Temos outra tarde e outra noite.
   - Temos as nossas vidas inteiras.
   Dentro da cabana sentiram-se de novo juntos na maneira de sentir; o vazio que se apoderara deles junto do mar desaparecera.
   - Voltarei para ti, depois da guerra.
   Ela abraçou-o com força, com a cabeça no seu ombro. E sentiu a pele áspera debaixo da face.
   - Não acreditas em mim - disse ele, meigamente, ternamente, como se falasse com um criança -, mas é verdade.
(...)
   - Recordar-te-ei assim. Pareces uma rapariguinha, com o cabelo todo revolto. E o teu rosto precisa de ser lavado.
   Quando regressaram ao carro, por entre os arbustos, farrapos de espuma branca esvoaçavam num vento frio e salpicavam os arbustos.
   Ela conduziu em silêncio. Ele observou-a durante todo o caminho - ela recebeu aquele longo olhar como se fosse um prolongado abraço.
(...)
   Meio da tarde. O grande navio erguia-se no seu ninho de rendas de espuma branca. Daí ver-se a actividade do embarque: rastejavam formigas por todo o lado, no navio.
   Daphne não se mexia (...) A negra ergueu-lhe o braço flácido e colocou-lhe a chávena na mão.
   - Precisa de tomar um chá, madama.
   Daphne manteve-se imóvel, de olhos postos nas docas (...) deu um grito e tapou a boca com o punho cerrado. Depois disse:
   - Sou uma mulher muito perversa, sabes? Não amo Joe. Nunca amei. Casei com ele sob falsos pretextos. Devia ser castigada por isso.
(...)
   - Oh, meu Deus - lamentou-se Betty, lançando um último olhar à amiga, que estava ali caída, abatida. Algures para lá do horizonte aquele soldado ia a caminho do Norte no negrume do oceano Índico.
 
 
 
   Lessing, Doris. " Um filho do amor " in As avós e outras histórias. Barcarena: Editorial Presença, 2008, pp 225 - 229.
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06/01/14

 
   Mas Ian não evidenciava quaisquer sinais de querer renunciar a Roz, pelo contrário. Era atencioso, exigente e possessivo, e quando, um dia, a viu deitada nas suas almofadas, logo após terem feito amor, a alisar a pele frouxa e a envelhecer dos antebraços, soltou um grito, apertou-a contra si e suplicou:
   - Não, por favor, não, não penses sequer nisso. Não te deixarei envelhecer.
   - Bem respondeu ela -, vai acontecer, apesar disso.
   - Não! - E chorou, do mesmo modo que chorara quando era ainda o assustado rapaz abandonado nos braços dela. - Não, Roz, por favor, eu amo-te.
   - Não devo, portanto, envelhecer? É isso, Ian? Tal não me é permitido? Louco, o rapaz está louco - disse Roz, dirigindo-se a ouventes  invisíveis, como fazemos quando a sanidade mental parece não ter ouvidos.
   Sozinha, sentiu inquietação e, na verdade, pavor. Era loucura, o que ele lhe exigia. Parecia, realmente, recusar-se a pensar que ela podia envelhecer. Loucura! Mas talvez a insânia seja uma das grandes rodas invisíveis que mantêm o nosso mundo a girar.
 
 
    Lessing, Doris. " As Avós " in As Avós e outras histórias. Barcarena: Editorial Presença, 2008, p 40.
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05/01/14

 
 
   Os rapazes nadavam para a praia. Quando chegaram às ondas baixas pararam e entreolharam-se. Começaram a lutar um com o outro.(...) não havia nada de infantil naquela luta. Estavam de pé, com a água pela cintura, as ondas a avançarem, a fustigarem-nos com espuma e a recuarem, e depois Ian desaparecera e Tom empurrava-o para baixo. Veio uma onda, depois outra, e Lil levantou-se, angustiada, e exclamou:
   - Oh, meu Deus, ele vai matar o Ian. O Tom vai matar...
(...) - Cala-te, Lil - disse Roz. - Não nos devemos intrometer.
(...) Tom soltou um grande grito e largou Ian, que veio à tona. Quase não conseguia manter-se de pé, caiu, voltou a levantar-se e ficou a observar Tom que avançava por entre as ondas da praia. Quando Tom pisou a areia escorria-lhe sangue da barriga da perna. Ian mordera-o, bem fundo debaixo das ondas. Era uma dentada com mau aspecto. De pé dentro de água, Ian cambaleava, sufocado e ofegante.
   Roz lutou consigo mesma e depois correu para as ondas e ajudou-o a sair do mar (...).
   As mulheres fitavam aqueles dois jovens heróis, seus filhos, seus amantes, aqueles belos jovens cujos corpos reluziam de água e óleo protector solar, quais lutadores de um tempo mais antigo.
   - Que vamos nós fazer, Roz? - sussurrou Lil.
   - Eu sei o que vou fazer - respondeu a amiga, levantando-se- - Almoço! - Gritou, exactamente como fazia há anos, e os rapazes levantaram-se obedientemente e seguiram-nas para casa de Roz.
   Acrescentou, dirigindo-se ao filho:
   - Acho melhor desinfectares isso.
(...) Lil disse a Roz que se sentia tão feliz que até tinha medo. "Como é possível alguma coisa ser tão maravilhosa?", perguntava baixinho, com medo de que alguém a ouvisse - mas quem? Não havia ninguém nas proximidades. O que ela queria dizer, e Roz sabia-o, era que uma felicidade tão intensa devia ter o seu preço, o seu castigo. Roz falava alto e em tom de brincadeira, dizia ser aquele um amor que não ousava dizer o seu nome, e cantarolava:
   - Amo-te, sim, amo-te, é pecado mentir...
   - Oh, Roz... às vezes tenho tanto medo.
   - Que disparate! Não te preocupes. Não tarda, eles cansam-se das mulheres velhas e vão atrás de raparigas da sua idade.
 
 
 
    Lessing, Doris. " As Avós " in As avós e outras histórias. Barcarena: Editorial Presença, 2008, pp 33 - 36.
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Nota - Foto do filme "Two mothers" baseado no conto "The grandmothers" de Doris Lessing.
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03/01/14

 
 
 
   Tinhas partido e era eu que ficava em casa, à tua espera. Como Penélope, era eu que te esperava, que mantinha a esperança. Contra o mais elementar senso comum.
   Mas um dia, ao contrário dela, deixei de esperar. Percebi que não voltarias, que ninguém volta, que o regresso não é possível: nunca ninguém se banha duas vezes na mesma água de um rio.
   Percebi que a minha fidelidade era louca, que a vida me passava ao lado. O universo estava em movimento e também eu comecei a mover-me.
(...) Percebi que, se voltasses, eu ficaria sentado à tua frente em silêncio e não poderia comunicar contigo: haveria entre nós a barreira do tempo.
   Porque não é possível alguém voltar ao leito conjugal e fazer amor, contar o que sucedeu durante os anos de ausência, enquanto uma deusa faz com que a noite se prolongue e o dia tarde a nascer para termos tempo de contar o tempo intermédio e tudo voltar a ser como era, desde o momento em que foi interrompido.
   Nada disso era possível, a não ser numa história mal contada.
   Tínhamos saído da vida um do outro, cada um tinha agora a sua.
   Então assumi que não irias voltar.
   Um dia acordei com essa certeza: nunca irias voltar.
   E Lisboa desapareceu contigo.
 
 
   Gersão, Teolinda. A Cidade de Ulisses. Porto: Sextante Editora, 2011, pp 152 - 153.
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   A tua visão podia ser também assim: pragmática. Ou, segundo dizias, realista e útil.
   No entanto não conseguias ser de facto realista. O amor, enquanto durava, transformava tudo.
   E nada tínhamos a ver com turistas. Éramos diferentes. Viajantes.
   Os turistas vão à procura de lugares para fugirem de si próprios, da rotina, do stress, da infelicidade, do tédio, da velhice, da morte. Vêem os lugares onde chegam apenas de relance e não ficam a conhecer nenhum, porque logo os trocam por outros e fogem para mais longe. Os viajantes vão à procura de si, noutros lugares. Que ficam a conhecer profundamente porque nenhum esforço lhes parece demasiado e nenhum passo excessivo, tão grande é o desejo de se encontrarem.
   As agências de viagens e os turistas só se interessam, obviamente, pelas cidades reais. Os viajantes preferem as cidades imaginadas. Com sorte, conseguem encontrá-las. Ao menos uma vez na vida.
   Penso que uma vez na vida a sorte esteve do nosso lado e encontrámos a cidade que procurávamos. A Cidade de Ulisses.
 
 
   Gersão, Teolinda. A Cidade de Ulisses. Porto: Sextante Editora, 2011, p 31.
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02/01/14

 
 
 
   Estou sentado à minha janela, na tarde do mesmo dia, e contemplo a cidade, que se estende a meus pés, banhada pelo crepúsculo. Os sinos cessaram os seus dobres. As cúpulas dos templos e as habitações dos homens começam a desvanecer-se na obscuridade. O fumo da pira funerária serpenteia pelo meio de tudo o que os meus olhos avistam, e o seu cheiro ácido chega às minhas narinas. Um véu espesso estende-se sobre tudo; dentro em pouco, a escuridão será completa.
   Terá a vida uma finalidade? Para que serve ela? Qual é o seu sentido? Porque continua ela sempre, tão melancólica e vazia?
   Volto para a terra o archote que me ilumina, para o extinguir, e é a noite.
 
 
 
  Lagerkvist, Pär. O Anão. Lisboa: Antígona Editores, 2013, p 163.
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01/01/14





   O que sobretudo me aborrece é que Dom Ricardo tome parte no combate. Por todo o lado ele mostra a sua bazófia, principalmente na presença do príncipe, e as suas grosseiras facécias provocam o riso estúpido dos acompanhantes. Tem o aspecto dum tolo, com a sua cor trigueira de campónio e os grandes dentes brancos que continuamente mostra, pois ri de tudo. A sua maneira de atirar a cabeça para trás e de retorcer os anéis da barba castanha é para mim odiosa. Não compreendo como o príncipe pode suportar-lhe a presença.
   Ainda menos compreendo como pode a princesa sentir atracção por este indivíduo vulgar, pois ele é vulgar, embora de antiga nobreza. Mas tal assunto não tem qualquer interesse para mim. Nem, afinal, para ninguém.
   Quando alguém diz que ele é valente, admiro-me. Como muitos outros, ele estava entre os combatentes da margem do rio, mas recuso-me absolutamente a crer que aí se tenha de qualquer forma distinguido. Não consegui avistá-lo nem durante um segundo. Certamente foi ele quem contou a toda a gente como se portara com valentia. E como, assim que abre a boca, toda a gente o escuta, conseguiu convencer os seus auditores. Pessoalmente não creio na sua bravura. É um insuportável fanfarrão, eis tudo.
   Valente ele? Só a ideia me faz rir!
   O príncipe é valente. Atira-se ao mais confuso da peleja e, em todos os pontos onde o combate é mais aceso, vemos o seu cavalo branco (...) Boccarossa é também naturalmente bravo (...). Falo segundo o que ouço dizer, pois sempre tenho estado demasiado longe dele para poder vê-lo, e não posso exprimir até que ponto lamento ter de perder semelhante espectáculo.
   Homens como o príncipe e ele são valentes, cada um à sua maneira. Mas Dom Ricardo! É grotesco compará-lo com eles.
 
 
   Lagerkvist, Pär. O Anão. Lisboa: Antígona Editores, 2013, pp 68 - 69.
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