30/06/10

" Ó fulgida visão, linda mentira! "

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Singra o navio. Sob a agua clara
Vê-se o fundo do mar, de areia fina...
Impeccavel figura peregrina,
A distancia sem fim que nos separa!

Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuemente côr de rosa,
Na fria transparencia luminosa
Repousam, fundos, sob a agua plana.

E a vista sonda, reconstrue, compara.
Tantos naufragios, perdições, destroços!
Ó fulgida visão, linda mentira!

Roseas unhinhas que a maré partira...
Dentinhos que o vaivem desengastara...
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos...

Camilo Pessanha in "Clepsydra", Relógio D'Água Editores, Lisboa,
1995, p 111 ( Estabelecimento de texto, introdução crítica, notas e
comentários por Paulo Franchetti).
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29/06/10

" Como a onda na crista d'um rochedo. "

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"Estatua"

Cancei-me de tentar o teu segredo:
No teu olhar sem côr, - frio escalpello, -
O meu olhar quebrei, a debatel-o,
Como a onda na crista d'um rochedo.

Segredo d'essa alma, e meu degredo
E minha obcessão! Para bebel-o,
Fui teu labio oscular, n'um pesadelo,
Por noites de pavor, cheio de medo.

E o meu osculo ardente, hallucinado,
Esfriou sobre o marmore correcto
D'esse entreaberto labio gelado...

D'esse labio de marmore, discreto,
Severo como um tumulo fechado,
Sereno como um pelago quieto.

Camilo Pessanha in "Clepsydra", Relógio D'Água Editores, Lisboa,
1995, p 85 ( Estabelecimento de texto, introdução crítica, notas e
comentários por Paulo Franchetti).
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28/06/10

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Amor, juventude, ledas palavras,
o que é que sobre vós resplandece e vos seca?
Fica um cheiro a merda seca,
ao longo das sebes pesadas de sol.

Sandro Penna in "No Brando Rumor da Vida", Assírio & Alvim, Lisboa,
Lisboa, 2003, p 131 (Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo).
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27/06/10

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Il mio amore è furtivo
como quello di un povero.
Ognuno può rubarlo.
Ed io dovrà lasciarlo.

Per ciò, fiume silente,
per ciò, mio dolce colle,
io non posso chiamarlo
amor semplicemente.

Ma tu, colle dorato,
e tu, mio fiume molle,
sapete che il mio amore
davvero è un grande amore.

Il pericolo odiato
per adesso non c'è?
Ma voi sapete, amici,
che nel mio cuore è.

Piangere mi vedrete,
o voi sempre felici,
non come piango già,
non di felicità.

Sandro Penna in "No Brando Rumor da Vida", Assírio & Alvim, Lisboa, 2003, p. 40.
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25/06/10

"Pertenezco también a esa región, lo sabes,/ que humedece las horas/ cuando busco tu mano."

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"Todavía el Invierno"

Ahora no recuerdo muy bien en qué momento
este calor abrió, de pronto, los armarios
y transformó el invierno
en un lugar antiguo.

Se habla del frío como de un pasado incómodo
que acumula desusos:
todo eso que no cabe en los cajones
y queda a la intemperie
como cualquier presencia repentina
entre las calles. Hablo de nostalgia,

de como, de repente, mientras tomo café
y repaso las notas
de la proxima clase,
un golpe de aire brusco me devuelve
a la ropa de abrigo,
al cuarto que oscurece a las seis de la tarde
bajo una intimidad de luz incandescente
y radiador en marcha.

Vengo de allí. La ropa ligera, las sandalias
descubren esas manchas que diciembre
deja sobre la piel
cuando se hace recuerdo su paisaje.

Regreso,
porque el tiempo no suele cerrar bien las heridas
que mitiga la noche
en su trampa de ruidos y penumbras,
no recuerdo la fecha,
o esconde la cadencia del día que demora su final.

Pertenezco también a esa región, lo sabes,
que humedece las horas
cuando busco tu mano.
Por eso vuelvo, porque tengo miedo
de olvidar lo que soy
cuando tú hayas partido.

José Ángel García Caballero in "Llaves Olvidadas", Editorial Renacimiento,
s/c, 2010, pp 19 - 20.
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24/06/10

" hei-de traçar por extenso/ a curva do descaminho. "

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"O Verão estava a acabar."

Mensageiro da promessa
extraviada, os olhos
do mais indeciso azul
que conheci. Alguma vez
hei-de traçar por extenso
a curva do descaminho.

Foi talvez aquele beijo
a meia praça ou o acaso
de fumares tabaco negro.
Por dentro das ruas
quietas, o eco de uma voz
que mal se ouvia:

estamos todos tão sós
em toda a parte

e é quase dia.


Rui Pires Cabral in "Oráculos de Cabeceira", Averno, s/c, 2009, p 22.
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22/06/10

" Se acordava, logo vinha ter com ele/ a mesma dor, como um animal "

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"I was entirely insular."

Horas a fio cercado de angústia
por todas as partes. A noite era vária
e trazia pela mão os bebedores,
seus prometidos. Nos sonhos via,
recorrente, um sino que oscilava
sem ruído e a aldeia estranhamente

abandonada, quatro ruelas entregues
ao espanto de um meio-dia infinito.
Se acordava, logo vinha ter com ele
a mesma dor, como um animal
sedento de atenção e companhia.
Era um estado de renúncia

e nenhum verso o aproximava já
de si, mas de alguém desconhecido
entre corpos que passavam,
desconhecidos também, todos eles,
desde o primeiro. Não tinha
com quem falar, nem saberia dizer

como pudera perder-se
de tudo quanto amara e conhecera.
E ao começo do verão quase se deixou
vencer, sentado no seu exílio
a olhar para os telhados, lá em cima
onde o silêncio o sequestrava.

Rui Pires Cabral in " Oráculos de Cabeceira ", Averno, s/c, 2009, p 18.
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21/06/10

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"Separação de Abraão e Lot (Gn 13)"


Se fores pela direita
Olharei em redor
Se fores pela esquerda e descansares
Olharei em redor

O meu olhar há-de acompanhar-te
Como a poeira à volta dos teus pés

Se desceres à planície
E fizeres a tenda com o véu da mulher
Não desviarei o olhar
Não dividirei a túnica

Se fores pelo centro de ti mesmo
Tactearei
Abrirei a mão e estarás próximo
Basta respirares
E olharei em redor

Daniel Faria in "Poesia", Quasi Edições, Vila Nova de Famalicão, 2003, 153.
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20/06/10

" a grande muralha ofegante das corolas somos nós. "

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para sete homenagens
esmago um saco de botões
most queens têm sempre uma bicicleta como último lance pensado
não me lembro que morra precipitadamente entre as veias
they were designed and impressed
but unpleasant to the eye
las fronteras de países imaginarios
verde sobre
os teoremas inquinados
os dias varados e escarlates de língua
yo hambre, yo no casa.
.
ars can be successful
sempre que a pintura seja um pouco sôfrega-corpo-todo
uma nêspera estrita e mínima.
talvez se o cabelo nu em qualquer mão seja vidrado
e as fibras do avesso.
seja um moroso sistema com frases
os movimentos das costas da tartaruga enquanto morte
- maybe it's
movable types
shortened labour
and cashmere
uma primeira palavra
e nenhum écran
o truque rítmico
das ameixas profundas
: quero dizer
voltear o holograma
que assoprado
que.
os focinhos somados ao corpo.
e é hemisférico
a grande muralha ofegante das corolas somos nós.
&
to the eye
cannot be successful.
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cristina néry (14/04/2010)
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19/06/10

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Por isso, não me pergunto tanto por que razão me entrego ao abandono, mas sim por que razão escrevo sequer. Porque não é fácil escrever, exige um esforço terrível e provavelmente inútil. Obriga-nos a recordar, e ainda que nunca possa livrar-me nem por um momento das recordações, nem eu nem aqueles que partilham o meu destino, gostaríamos ao menos de ser poupados a esse conhecimento. Afinal, estamos já acostumados à condição singular deste país: nunca somos livres, não somos "nós próprios", o desconhecido torna-se mais forte do que nós e leva-nos a estranhar o nosso próprio coração.
A esta condição começamos por chamar "viver experiências fortes". Somos expostos à paisagem desmedida, às suas cores esplêndidas e formas puras, à sua singularidade imperial. Observamos modos de vida estranhos, com curiosidade primeiro, depois com aversão. Mas como esta aversão se esbate, isso já não sabemos.
Com uma risada, os mais fortes enxotam para longe estas tentações, que se insinuam como doenças. Os mais inteligentes voltam para casa a tempo. Mas muitos de nós somos fracos, e eu estou "entre os mais fracos".
Escrevi muito acerca desta terra, de modo objectivo e sem nunca me aproximar demasiado. Donde vem então este impulso amargo para a confissão? Não poderei simplesmente confiar nos meus amigos? Não sabem eles também como é viver aqui, não poderão eles ajudar?
Contudo, por estranho que pareça, evitamos chamar estas coisas pelos nomes. Falamos muitas vezes da Pérsia, e sem dúvida que vale a pena conversar sobre os seus muitos tesouros e curiosidades. Mas quando alguém tem saudades de casa, não fala delas - e este é apenas o primeiro estádio do sofrimento.
(...) Os anjos são demasiado fortes e caminham com pés invulneráveis, mas os homens não querem pedir nada a ninguém, não sabemos ao certo qual é o ponto vulnerável dos outros, talvez seja o nosso? E assim se espalha o silêncio. A esta propagação do silêncio chamamos "endurecer"...
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Annemarie Schwarzenbach in " Morte na Pérsia", Edições Tinta-da-China, Lisboa,
2008, pp 86 - 87.
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18/06/10

José Saramago ( 16/11/1922 - 18/06/2010)

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Deu naquelas palavras clara mostra o arcebispo de Braga de saber que Deus e Alá é tudo o mesmo, e que remontando ao tempo em que nada e ninguém tinham nome, então não se encontrariam diferenças entre mouros e cristãos senão as que se podem encontrar entre homem e homem, cor, corpulência, fisionomia, mas o que provavelmente não terá pensado o prelado, nem tanto lho poderíamos exigir, tendo em conta o atraso intelectual e o analfabetismo generalizado daquelas épocas, é que os problemas começam quando entram em cena os intermediários de Deus, chamem-se eles Jesus ou Maomé, para não falar de profetas e anunciadores menores. Jé é muito de agradecer-lhe que vá tão fundo na via da especulação teológica um arcebispo de Braga armado e equipado para a guerra, com a sua cota de malha, o seu montante suspenso do arção da mula, o seu elmo de nasal, quiçá não lhe permitam as mesmas armas que leva chegar a conclusões de humanitária lógica, pois já então podia ver-se até que ponto os artefactos de guerra podem levar um homem a pensar diferentemente, sabemo-lo hoje muito melhor, embora ainda não o suficiente para que retiremos as armas a quem, no geral, delas se serve como único cérebro. Porém, longe de nós a intenção de ofender estes homens ainda pouco portugueses que andam a combater para criar uma pátria que lhes sirva, em campo aberto quando for necessário, pela traição quando convenha, que as pátrias foi assim que nasceram e frutificaram, sem excepção, por isso é que, tendo caído em todas, pode a nódoa passar por adorno e sinal de mútua absolvição.
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José Saramago in "História do Cerco de Lisboa", Editorial Caminho, 1989, pp 202 - 2o3.
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17/06/10

"não é por se negar o fumo que se apaga o fogo." (p.138)


É minha firme opinião, que a Isabel Mendes Ferreira, para além de uma excelente artista plástica - representada em várias colecções particulares, na Europa e nas américas, é a nossa melhor Poeta contemporânea. Já o disse, redisse, escrevi e rescrevi, que "ler Isabel Mendes Ferreira é como assistir ao descerrar de auroras, cantando e reinventando palavras de diferentes paladares por detrás dos fiapos da memória e da respiração das manhãs", e continuarei a dizer e a escrever o mesmo, enquanto não aparecer no actual panorama literário português, alguém que altere esta convicção, formada desde o dia em que a descobri e de que não esqueço a forte impressão que senti ao lê-la: uma pedrada na "modorra" instalada.
Ninguém actualmente escreve como a Isabel Mendes Ferreira: nem com a profundidade nem com o estilo, nem com a qualidade que lhe advém do domínio absoluto da escrita e de um jogo de palavras soberbo.
Como se pode ler no posfácio, "O sentido ambíguo da sua escrita, converte-se no que o excede e onde ser o mesmo é ser outro de si (é outrar-se, como diz Fernando Pessoa), o que apela à desconstrução do discurso tradicional".
Para mim, é pois, extremamente gratificante falar do novo livro de uma escritora e poeta, despojada de falsas crenças da unidade da consciência identitativa, de uma escritora que transporta os verbos que ainda não estão corroídos, prevertidos, subvertidos, gastos, e que com ela voltam fantásticos, imortais, castos e vestidos de denso sentir.
Este, o seu décimo terceiro, é um livro que me fascina, aprecio-lhe o cheiro das areias do deserto e a cor do cair da noite quantas vezes ruborizada de pudor e aureolada de luminosidade divina, um livro para ler e reler, uma instância de retemperação. Um livro com chancela da Arcádia, onde voltaremos amiúde e que está a partir de hoje à venda em todas as livrarias Babel.
"As Lágrimas Estão Todas na Garganta do Mar", integra uma novíssima colecção de poesia, iniciada por David Mourão-Ferreira e onde é o terceiro título.
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José Pires F
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16/06/10

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"Plenitude Solar"


Quando eu era só
um quarto escuro e tu vieste, abrindo
de imediato as persianas, nenhum indício
me prevenira para a súbita abundância de luz.
Eu era só um quarto escuro, uma divisão esconsa
onde nem as crianças entravam à descoberta
dos espaços ocultos.

Quando tu vieste,
envolta numa luminosidade
de horizontes dispersos, fazia ainda frio
e tudo era inerte ou temeroso.

Como poedria eu, logo então,
partilhar contigo a plenitude solar?

Paulo Tavares in "Minimal Existencial", Artefacto, Lisboa, 2010, p 48.
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15/06/10


Apresentação do livro "Minimal Existencial", Lx 8/6/2010.

Foto da direita: uma panorâmica do espaço da Guilherme Cossoul onde ocorreu o lançamento.
Foto da esquerda: António Carlos Cortez, Paulo Tavares e Luís Lucas.
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"Depois da Noite"
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Depois da noite,
ou apenas do seu indício,
surge a voz rouca dos bosques e das marés,
comprimida pela agonia do abandono.
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Em desespero,
procuramos por entre a vegetação
onde plantámos
pequenas sementes de quasares
um momento elástico que brote da terra,
se prolongue pelas eras
e nos sutenha para sempre
no útero inviolável das promessas.
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Perseguimos a bonança
onde hoje restam espaços inabitados
e matizes repetidos: árvores nuas
na penumbra da solidão,
caminhos áridos desembocando
em novas encruzilhadas.
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Paulo Tavares in "Minimal Existencial", Artefacto, Lisboa, 2010, p 42.
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14/06/10

" ensaio a descoberta/ de uma nova clareira "

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Porque a maturação dos frutos
permanece e só importam
as coisas certas porque simples

como o dourado da luz
na medula dos teus olhos

ensaio a descoberta
de uma nova clareira
onde a vida não seja só
uma após outra morte.

Rute Mota in "Nenhuma palavra nos salva", Livrododia Editores,
Torres Vedras, 2007, p 44.
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13/06/10

" para que não me esqueça "

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Hei-de marcar-te, tatuar-te,
se necessário magoar-te
- desde que te marque -
para que não me esqueça
e sempre te reconheça
como aquele que desconheço.

Rute Mota in "Nenhuma palavra nos salva", Livrododia Editores,
Torres Vedras, 2007, p 9.
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10/06/10

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No fim de tudo dormir.
No fim de quê?
No fim do que tudo parece ser...
Este pequeno universo provinciano entre os astros.
Esta aldeola do espaço,
E não só do espaço visível, mas até do espaço total.

Fernando Pessoa (Álvaro de Campos) in "Poesias", Edições Ática, Lisboa, 1980, p 88
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09/06/10

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"Poema 10 do ciclo Café de Subúrbio"


Usa um brinco na orelha,
Pulseiras e colares de cor,
Cabeleira em cocar de pele-vermelha
E o uniforme punk de rigor.

Transpira droga, violação, violência,
As sangrentas sevícias contra quem o provoque,
Uma moto feroz numa veloz demência,
Roubo, assalto, assassínio... e o ritmo rock.

Tem aos pés uma caixa negra, inquietante.
(Instrumento musical? Arma de fogo?)
Fixa-me num olhar vago, distante...
Em que pensa (se pensa)? Anda-lhe um golpe em jogo?

Para mais, o café está quase vazio.
Quando o empregado se aproxima dele,
Sinto o temor de um arrepio
Na pele.

Numa voz de contralto (que surpresa!)
Pede um "caracol" e um leite quente.
Depois, começa a ler, cotovelos na mesa,
Uns comics do Disney. E ri perdidamente!

António Manuel Couto Viana in "60 Anos de Poesia" - Vol. II, Imprensa Nacional -
Casa da Moeda, Lisboa, 2004, p 119.
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António Manuel Couto Viana (24/1/1923 - 8/6/2010)

. Na última visita, eu não quis subir para não o fatigar. Desceu ele, acompanhado pela Alice Fergo que o ajudava. Fiquei embaraçado com a delicadeza, coisa a que nos vamos desabituando já. Ficámos os três à conversa. Ainda me ri com uma estória que ele contou sobre o Junqueiro. Recitou de cor alguns poemas... e não apenas seus. Disse-lhe, quase a medo, que chegáramos a participar numa mesma Antologia. Ele lembrava-se. Ao fim da tarde eu e a Alice saímos prometendo voltar, coisa que andávamos a pensar fazer. O que já não vai ser possível. Mas ainda me recordo das palavras dela quando entrávamos no carro: -" eu não te digo que ele é extremamente culto... e um gentleman?".
Hoje, no lançamento do livro do Paulo Tavares, fiquei grato ao António Carlos Cortez, por ter dedicado a sua apresentação, não só ao Paulo, mas também ao Couto Viana. Outro gesto bonito - também!
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08/06/10

Quando o xá, algumas semanas antes, proibiu o kula pahlavi - baptizado com o seu nome - e recomendou em seu lugar o uso de chapéus europeus, autorizando ao mesmo tempo que as mulheres deixassem o chador e saíssem para a rua sem véu, houve aqui e ali notícia de agitações, sobretudo nas cidades sagradas. O kula era um boné de pala bastante desengraçado, feio mesmo, que dava aos homens um ar de escroques e vagabundos, mas que ainda assim permitia virar a pala para a nuca e seguir o preceito de tocar no chão com a testa durante as orações, sem descobrir a cabeça, Isso era impossível com chapéus europeus - um chapéu de feltro, um chapéu de cco, um panamá -, e por isso os mulás, acreditando que chegava a hora, faziam as suas prédicas em reuniões secretas ou em público, no adro das mesquitas.
Os jornais falavam do júbilo com que o povo recebia esta novidade da civilização, e os ministros e governadores das províncias ofereciam jantares onde as esposas convidadas teriam de se apresentar sem chador. A multidão apertava-se à entrada para ver o espectáculo dos fiacres que chegavam e donde desciam as senhoras, confusas e profundamente envergonhadas. Durante a refeição, os criados faziam desaparecer no guarda-roupa os kulas dos convidados que, quando deixavam os seus anfitriões e para não terem de regressar a casa com a cabeça descoberta, compravam um dos chapéus faranghi, os chapéus estrangeiros, que tinham à sua disposição. Uma organização exemplar, ocidental mesmo! Pedro, o Grande, não fizera melhor para privar os boiardos das suas barbas asiáticas! Estas barbas perduraram por mais tempo na Pérsia. Por outro lado, os diplomatas iranianos estão agora autorizados a apresentar-se de bicorne, que por sua vez foi introduzido no Ocidente progressista no tempo da Revolução Francesa(...). Na Hungria, para terem assento no Parlamento e darem provas do seu patriotismo, os magiares têm de deixar crescer longos bigodes e de passar as pontas por brilhantina, de maneira que elas se mantenham ousadamente reviradas. Mas onde irá o xá encontrar um modelo para a introdução dos bons velhos direitos do homem?
(...) Foram os dias mais quentes do Verão persa. Os jardins em Shemiran, cercados por muros demasiado altos, cheios de vegetação demasiado densa, eram quentes e abafados como estufas. Os mosquitos enxameavam os lagos de águas chocas. Tive malária pela segunda vez. À noite, o ar lá fora arrefecia um pouco, mas a febre subia. Quando pude sair novamente do jardim de casa, as cercanias de Teerão estavam calcinadas. Os jardins de Shemiran eram duas ilhas escuras no amarelo monótono e leproso. À minha frente, na estrada, seguia um jovem oficial, os sapatos e as polainas brancas do pó. Trazia uma pasta e uma caixa com o capacete. Encostei o carro e deixei-o subir. Ele sorriu, o suor corria-lhe pelo rosto queimado.(...) A grande praça de Tedrzriz estava vazia, tirando uns poucos fiacres com os seus cavalos brancos e famintos que pareciam anestesiados à torreira do sol.(...) Sombras e escuridão caem sobre mim como ondas. O cheiro a fresco, da terra, das folhas, uma álea e as raízes das árvores que rompem o caminho e forçam o carro a derrapar quando se tenta fazer a curva em grande velocidade. Subo sempre em terceira até diante da casa! Deixo o carro à sombra, saio, corro pelo alpendre branco, passo as portas duplas feitas de um mosquiteiro fino. Da sala chega o som de um piano. Zadikka ainda está a praticar, penso eu, aqui continua tudo igual - e respiro fundo, depois do medo inominável durante a viagem ao longo da terra aberta, exausta e transfigurada pelo sol.
(...) A irmã mais velha de Zadikka está ao pé de mim, deitada à sombra de uma grande árvore. Trouxeram-nos almofadas e água tão gelada que os copos ficam embaciados.
- Vou-me embora - disse eu.
- Vais ter com os teus amigos ingleses?
- Sim. Vou para o acampamento deles, no vale de Lar.
- Quando?
- Amanhã.
Ficámos em silêncio por um momento. Ouvíamos os gritos que chegavam do campo de ténis, a batida seca das bolas.
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Annemarie Schwarzenbach in " Morte na Pérsia", Tinta da China Edições, Lisboa,
2008, pp 18 - 22.
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07/06/10

" El viaje no termina en estas playas "

"Acantilado"

Mas recuerda triste alma
cansada que aún puedes trocar - como
pidió Montale - en himno
la elegía. Sentir un loco urgir
de voces entre perfumes
y vientos: Renacer
en el sol que te inviste - Oh
acantilados abruptos
que roen las mareas, agonía
que jadea en cada ser:
Una urgente floración de cardo
y trébol rojo - árida luz bajo el delírio
de la tierra, que aún te llama.
O el salvaje espliego
entre retamas olorosas a esperma renovada
que te acosa. Tiende
la mano hasta ellas - sumergida
vida, sólo tuya por ahora:
El viaje no termina en estas playas
mientras alguno
a quien amaste aguarde cara al viento - roto
de esperanza,
sobre otro acantilado.

Miguel Veyrat in "Razón del Mirlo", Editorial Renacimiento, s/c, 2009, pp 54 - 55.
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06/06/10

" (...) O teu nome/ é um marco - mas, insistentes,/ apagam-no o vento e as marés. "

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"Ítaca"

Nunca hubo jardín. Tu nombre
es laberinto y la patria
perdida el hilo roto de tu hija
Adriana que el viento trae
y aleja, uncido ao ritmo
entrecortado de lo vivo: Barre
las hojas de la especie
en tanto que tu pierna
herida de Rimbaud enhebra
de nuevo el camino
de regreso. Nunca hubo jardín
ni patria conocida. Tu nombre
es estela - y lo borran
constantes el viento y las mareas.

Miguel Veyrat in "Razón del Mirlo", Editorial Renacimiento, s/c, 2009, p 16.
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05/06/10

" Tudo teve um sentido porque tu/ ditaste as regras da História."

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Francisco José Martínez Morán traduzido por Victor Oliveira Mateus: o poema Omnia Tibi de
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"Tras la puerta tapiada", Ediciones Hiperión, Madrid, 2009, p 59 :
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Por ti levantar-se-ão as cidades,
alargar-se-ão as pontes, desenhar-se-ão
os caminhos, as estradas, os jardins.
Em tua honra, estes olhos conhecerão
a ordem e a ruina dos anos
e o passo indiferente das chamas.

Tudo teve um sentido porque tu
ditaste as regras da História.

O mundo é um reflexo do teu corpo,
uma cópia - em esboço - do teu rosto.
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04/06/10

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As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões
E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos - digo,
As mulheres - ainda que as casas apresentem os telhados inclinados
Ao peso dos pássaros que se abrigam.

É à janela dos filhos que as mulheres respiram
Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas
Transformam-se em escadas

Muitas mulheres transformam-se em paisagens
Em árvores cheias de crianças trepando que se penduram
Nos ramos - no pescoço das mães - ainda que as árvores irradiem
Cheias de rebentos

As mulheres aspiram para dentro
E geram continuamente. Transformam-se em pomares.
Elas arrumam a casa
Elas põem a mesa
Ao redor do coração.

Daniel Faria in "Poesia", Quasi Edições, Vila Nova de Famalicão, 2003, p 122.
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03/06/10

João Aguiar (1943 - 2010)


Faleceu João Aguiar. Da sua vasta produção literária, e de tudo o que dele li, sublinharei
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apenas os títulos que mais me marcaram: "O homem sem nome", "O trono do Altíssimo",
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"O navegador solitário", "A hora de Sertório" e "A voz dos deuses".
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02/06/10

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Ando um pouco acima do chão
Nesse lugar onde costumam ser atingidos
Os pássaros
Um pouco acima dos pássaros
No lugar onde costumam inclinar-se
Para o voo

Tenho medo do peso morto
Porque é um ninho desfeito

Estou ligeiramente acima do que morre
Nessa encosta onde a palavra é como pão
Um pouco na palma da mão que divide
E não separo como o silêncio em meio do que escrevo

Ando ligeiro acima do que digo
E verto o sangue para dentro das palavras
Ando um pouco acima da transfusão do poema

Ando humildemente nos arredores do verbo
Passageiro num degrau invisível sobre a terra
Nesse lugar das árvores com fruto e das árvores
No meio dos incêndios
Estou um pouco no interior do que arde
Apagando-me devagar e tendo sede
Porque ando acima da força a saciar quem vive
E esmago o coração para o que desce sobre mim

E bebe

Daniel Faria In " Poesia ", Quasi Edições, Vila Nova de Famalicão, 2003, p 39.
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