Mostrar mensagens com a etiqueta Fernando Pessoa (Álvaro de Campos). Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Fernando Pessoa (Álvaro de Campos). Mostrar todas as mensagens

20/08/12



    " Dobrada à Moda do Porto "

Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada ( e era à moda do Porto ) nunca se come fria.

Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.

Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo...

( Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim.
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).

Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.

  Pessoa, Fernando. Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Edições Ática, 1980, pp 310 - 311.
.

10/06/10

.
.
No fim de tudo dormir.
No fim de quê?
No fim do que tudo parece ser...
Este pequeno universo provinciano entre os astros.
Esta aldeola do espaço,
E não só do espaço visível, mas até do espaço total.

Fernando Pessoa (Álvaro de Campos) in "Poesias", Edições Ática, Lisboa, 1980, p 88
.

16/09/09

" Fear in my mind # 7" (2008) foto de Jong Seong Park, Coreia.


Ora até que enfim... perfeitamente...
cá está ela!
Tenho a loucura exactamente na cabeça.

Meu coração estoirou como uma bomba de pataco.
E a minha cabeça teve o sobressalto pela espinha acima...

Graças a Deus que estou doido!
Que tudo quanto dei me voltou em lixo,
e, como cuspo atirado ao vento,
me dispersou pela cara livre!
Que tudo quanto fui se me atou aos pés,
como a serapilheira para embrulhar coisa nenhuma!
Que tudo quanto pensei me faz cócegas na garganta
e me quer fazer vomitar sem eu ter comido nada!

Graças a Deus, porque, como na bebedeira,
isto é uma solução.
Arre, encontrei uma solução, e foi preciso estômago!
Encontrei uma verdade, senti-a com os intestinos!

Poesia transcendental, já a fiz também!
Grandes raptos líricos, também já por cá passaram!
A organização de poemas relativos à vastidão de cada assunto resolvido em vários -
também não é novidade.
Tenho vontade de vomitar, e de me vomitar a mim...
Tenho uma náusea que, se pudesse comer o universo para o despejar na pia, comia-o.
Com esforço, mas era para bom fim.
Ao menos era para um fim.
E assim como sou não tenho nem fim nem vida.

Fernando Pessoa/ Álvaro de Campos In "Poesias - Obras Completas de
Fernando Pessoa, Vol. II", Edições Ática, Lisboa, 1980, pp 116 - 117.
.
.
.