30/09/12


  " Calçada dos Mestres  "


Três velhas e eu,
na última taberna de Campolide.
Falavam de ir "levantar" os maridos,
o que deles resta.
Mas não estão "capazes":
dois anos debaixo da terra
nem sempre é o bastante.
"O meu João era mais forte do que
o teu" - trabalho de vermes,
apenas. Também "por esta altura
morreu o Joaquim Sapateiro",
recordam. Como se já só
da morte vivessem
( o que não foge demasiado
à verdade geral:
alimentos em preparação - ou cinzas ).

Há quem tenha estado
dez anos debaixo da terra,
antes de poder ser "levantado"
- e há quem nunca tenha estado vivo,
acrescenta o autor destes versos,
condensando a tarde numa garrafa vazia.

Estão a perceber agora
por que é que eu gosto tanto
de tabernas?
( Não respondam; o poema termina aqui,
porque a Dona Joana tem de ir ao oculista. )

   Freitas, Manuel de. A Última Porta. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, pp 109 - 110.
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29/09/12


 " 1685 - 1750 "

I

Acabamos sempre assim, esquecidos
ou lembrados entre a poeira de duas datas.
Foram anos, esses, de extrema
devoção à única das artes.
Só é pena que hoje me doa tanto
o testículo direito, a vista cansada
do mundo. Arnstadt, Weimar, Leipzig
- as cidades do Senhor
uniam-se no crime da perfeição
e não há, para isso, palavras.

Como se não bastasse o génio,
povoou a terra de filhos virtuosos:
o inventor da ternura romântica;
o baptista de Amadeus; aquele outro ainda
que a tristeza e o álcool incensaram.
Mas nenhum desses ( ou dos mais )
esteve alguma vez tão próximo do
infigurável absurdo a que chamamos Deus.

II

São dias de extermínio, agora.
O punhal das horas já não
cede ao alaúde nem ao cravo torturado
pela mudez. Repugnam-me simplesmente
estes dias devagar e não sei com que letras
se escreve nunca mais o nome do amor
( deixei de confiar a alma a um celeiro podre ).

Quando a música de um homem assim
não consegue demover-nos da angústia,
percebemos que a vida é morte
- impossíveis os gestos, as fugas, os desejos.

Amanhece e eu não. O sono deixou-se
pousar ao lado do livro que não pude ler
e mesmo o que escrevi sobre a morte,
embora exacto, era afinal aproximativo.
Sou agora plenamente o meu cadáver.
Ofereço-lhe um cigarro, o que sobra
de cerveja, a memória das cantatas
que me salvaram do tédio, do suicídio
e de mim próprio. Talvez seja um sentido,
uma ânsia de dissipação que encontrou
o seu termo moral, espiritual, orgânico.
Não sei.

Todas as palavras se tornaram para o sangue
uma mesma mentira, entre o exorcismo
e a ameaça. No fundo, a dizer havia apenas
isto: a luz que explode na janela
já não encontra nem corpo nem vontade.

  Freitas, Manuel de. A Última Porta. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, pp 71 - 72.
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27/09/12

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  " Roberto Carlos "

Escolhem os meses correctos e praticam
o acasalamento. Assim lhes ordena
a imperiosa vocação de parir - razões de Estado
a iluminarem os corpos. Não têm a culpa,
ou quase a não têm, mas o muito que fedem
- quando fodem e quando não fodem - torna o caso
irrelevante: your body belongs to the state.

São felizes. Ou julgam sê-lo, arrastados
pela funda e negra angústia de quem cumpre
o insucesso dos dias. Felizes,
quero dizer cegos. Quanto vale este feto senil,
a borrar-se agora e no declínio da idade? Dúvidas
que não encontramos em álbuns para bebé
e noutras tristes muletas da memória familiar.
Fraldas contudo gentis deixam sequinho o monstruoso
rabinho tão belo. Fruto podre do amor, um animal
em breve decrépito, a desbaratar os anos
em revistas que no quiosque da esquina
lhe devolvem o flagelo banal da juventude
- e o rabo cada vez menos seco, a ardente frescura da merda.

( Era uma canção de amor, lenta e dolorida
como todas, era o mês economicamente ideal
para acasalar - havia, há sempre, o cio bastante.)

E nisto, serenamente, tem a morte o seu lucro,
enriquecida colheita para a sua gadanha discreta.

  Freitas, Manuel de. A Última Porta. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p 22.
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25/09/12


Era a minha avó quem matava os coelhos:
dava-lhe dois hábeis socos atrás das orelhas
e nem esperneavam.
Na porta da retrete, num prego saliente,
pendurava-os por uma pata traseira.
Despia-lhes a pele como quem despe uma camisola
e fica com a vida do avesso.
Os gatos a ronronar assediavam as pernas da minha avó.
O rabo alçado, ponto de exclamação.
Num pestanejar estavam abertos e amanhados,
cristos em sangue,
as peles azuladas já a secar no telhado da retrete.

  Assim, Paulo. Fânzeres: Lugar da Palavra Editora, 2011, p 38.
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Apenas acrescento que ele, o meu pai, sabia
o sítio exacto donde brotavam os gomos do arco-íris:
era de debaixo das laranjeiras onde dormiam os gatos.
Parece inconciliável com as anedotas
travessas de Bocage que contava na taverna,
e no entanto era verdade que, mesmo antes
da chegada do arco-íris, já nós lá estávamos
de mãos estendidas para extorquir, com toda a fé das crianças,
a maior porção de cores e pintarmos um mundo só nosso.

  Assim, Paulo. Mão sobre os olhos. Fânzeres: Lugar da Palavra Editora, 2011, p 18.
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24/09/12

"(...) la derrota que no pese/ y por todo el horizonte velas extendidas "


    " Se Quisiera "

abrir los ojos cada mañana   seguir
como una gota el océano   como una hoja
la rama del árbol   se quisiera
las sombras como llamas
que se balanceen y cedan ante el peso del tiempo
se quisiera las herbas menos frágiles
el oleaje menos fuerte cuando el corazón voltee
se quisiera las estrellas que se inclinen
en medio del negro intenso   se quisiera la tierra
hermosa como un alba   como el átomo más pequeño
que la habita   se quisiera la esperanza
todavia posible en nuestras manos   sueños
sueños para toda una vida   y la historia del mundo
recomenzando en la luz   justo
esta luz de naciente mañana
se quisiera el camino como un soplo
las campanas por la alegría del alma
se quisiera la tormenta perdida   la derrota que no pese
y por todo el horizonte velas extendidas

  Dorion, Hélène. Revista de Letras Bora Nº 2. Málaga: Agosto 2012, p 23 ( Traducción del francés: José María Lopera ).

Nota - a) a poesia de Hélène Dorion constava já da lista de autores deste blogue; b) o facto de eu ter publicado na Bora Nº 2 trouxe-me também a enorme satisfação de ter ombreado com grandes poetas como é aqui o caso da canadiana Hélène Dorion.
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23/09/12

" que no sueña,/ ni habla,/ ni respira. "


 " Desahucio "

Se llamaba María, Ana, Luisa
y tenía su casa
muy cerca de la tuya.
Y hace días, muy pocos, que no vive.
Hace días que no sale a la compra,
que no asoma su rostro a la ventana,
que no sueña,
ni habla,
ni respira.
Se ha vencido en el caos de la crisis
al terror del desahucio y del vacío.
Así muren los pobres,
en silencio,
en el gris abandono de sus vidas,
sin conocer el grito de su fuerza,
su protesta en un coro de gargantas.
Y culpo a la avaricia,
a los mercados,
a los que nos gobiernan pese a todo,
de esta muerte.
        Y ya no habrá silencios.


  Miguel, Isabel. Revista de Letras Bora Nº 2. Málaga: Agosto 2012, p 45.
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22/09/12

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Surpreendida por um caminho sem tempo,
deixo que a lua se instale em minha pele,
lasciva e húmida. Habito uma ilha suspeita
de servir de abrigo a veleiros perdidos.
E digo: há um mar horizontal na solidão
de uma mulher, com as mãos cansadas
de sulcar distâncias em caminhos de espuma.

 Pires, Graça. Poemas Escolhidos 1990 - 2011. Lisboa: Ed. Autora, 2012, p 94.
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  " Marginalidade "


Subversivamente
o instinto me descomanda.

E a magia inconsciente
do meu corpo
é um jogo clandestino
de gestos sem eco.

Há um ritual divino
nas carícias sensuais
em que me invento.

Nada me torna inocente
dos meus próprios sentidos
quando solto
as linhas marginais
do pensamento
e me seduzo
com gostos proibidos.

Sempre são excessivos os desejos de quem sonha
a vida num momento.

A solidão é como o vento.

É nos olhos dos mendigos
que a noite se prolonga por mais tempo.

  Pires, Graça. Poemas Escolhidos 1990 - 2011. Lisboa: Ed. Autora, 2012, p 8.
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21/09/12

" Ou se é livre ou não se é livre. "



  Desde o momento em que o burguês detém um poder político, está alienado e toda a categoria… (…) Não se pode ser “muito mais livre”. Ou se é livre ou não se é livre.(…) É justamente a noção que é preciso tentar definir, que vos proponho que seja definida. Penso que um burguês que em parte tomou os poderes que os nobres detinham e os tenta assimilar não é livre; ele detém um poder sobre os outros, mas deter um poder sobre os outros é, precisamente, a definição da não liberdade. Se deténs poderes sobre os outros, condena-los a não serem livres e concomitantemente condenas-te a não seres livre. (…) Se um homem é livre, isso significa que ele detém um poder, mas este poder não deve ser, em caso algum, um poder de coerção. Numa sociedade cujos membros não tenham a possibilidade de se coagirem mutuamente, dado que são todos igualmente livres, teremos formas de poder que já não são o poder político, burguês ou socialista, tal como nós o conhecemos. É impossível, pois, que haja então nas instituições o que quer que seja contra os indivíduos.

 Sartre, Jean-Paul. Porquê a Revolta? Lisboa: Sá da Costa Editª, 1975, pp 320 – 321.
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14/09/12



 " Musa "


Musa ensina-me o canto
Venerável e antigo
O canto para todos
Por todos entendido

Musa ensina-me o canto
O justo irmão das coisas
Incendiador da noite
E na tarde secreto

Musa ensina-me o canto
Em que eu mesma regresso
Sem demora e sem pressa
Tornada planta ou pedra

Ou tornada parede
Da casa primitiva
Ou tornada o murmúrio
Do mar que a cercava

(Eu me lembro do chão
De madeira lavada
E do seu perfume
Que me atravessava)

Musa ensina-me o canto
Onde o mar respira
Coberto de brilhos
Musa ensina-me o canto
Da janela quadrada
E do quarto branco

Que eu possa dizer como
A tarde ali tocava
Na mesa e na porta
No espelho e no copo
E como os rodeava

Pois o tempo me corta
O tempo me divide
O tempo me atravessa
E me separa viva
Do chão e da parede
Da casa primitiva

Musa ensina-me o canto
Venerável e antigo
Para prender o brilho
Dessa manhã polida

Que poisava na duna
Docemente os seus dedos
E caiava as paredes
Da casa limpa e branca

Musa ensina-me o canto
Que me corta a garganta

  Andresen, Sophia de Mello Breyner. Antologia. Lisboa: Moraes Editores, 1975, pp 173 - 174.

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13/09/12


   É frequentemente a vulnerabilidade dos homens que os leva a preferir uma vida a dois. Ficam tranquilizados; procuram simultaneamente uma mulher "segura", autónoma quanto às despesas e aos filhos, mas também desejam que ela dependa deles afectivamente, de forma a terem a certeza de que ela fique com eles.
   (...)Apesar de não o assumirem claramente, e independentemente da idade, os homens procuram preferencialmente uma mulher "feminina", o que para eles significa muitas vezes sexy, ou seja, sexualmente "boa" (...)
   Para lhes agradar, uma mulher também deve trabalhar. Teoricamente, a maioria dos homens deseja que a mulher tenha um emprego, mas, na prática, continuam a procurar mulheres menos qualificadas ou que desempenham funções menos prestigiosas. Os mais velhos ainda têm a expectativa que a companheira trate da casa e eduque os filhos.
   O esquema de casal tradicional é evidente nos sites de encontros onde alguns homens recentemente viúvos ou divorciados procuram a mulher que poderá substituir a esposa anterior, de forma a reencontrar uma confortável posição social, sair em casal, receber, voltar a ser normal.(...)
   A sociedade continua a preparar os rapazes para ocuparem um papel dominante e não duvidarem do seu poder, mas a realidade encarrega-se rapidamente de lhes demonstrar que esta postura não é sustentável. Todavia, têm dificuldade em aceitá-la, pois foram sendo censurados por revelar momentos de fraqueza e, muitas vezes, a raiva ou o ciúme, as únicas emoções que não aprenderam a controlar, são o único recurso de que dispõem.
   A nossa sociedade sobrevaloriza a eficácia e o sucesso e as próprias mulheres também continuam a aceitar que um homem se revele agressivo em determinadas circunstâncias. Em toda a parte, é preciso ser o melhor, sem olhar a meios para atingir os fins. Com o pretexto da competição, valoriza-se, em certas profissões, o cinismo. E se a mulher tem de ser "feminina", o homem, por seu turno, vê-se obrigado a viver de acordo com os preceitos da virilidade. No entanto, nem sempre é fácil viver com os estereótipos de homens fortes e poderosos e alguns homens apenas conseguem esconder as suas fraquezas pisando quem é mais fraco, nomeadamente a mulher.
(...) Esperam que a mulher, tal como esperavam da mãe, lhes dê amor, atenção e tempo; que ela perceba as suas carências, que esteja disponível só para eles. Porque não são capazes de estar sós depois de uma separação, muitos encontram rapidamente outra mulher e acabam muitas vezes por encontrar uma que, encerrada na armadilha do modelo cultural antigo, o aceitará.

  Hirigoyen, Marie-France. As Novas Solidões. Casal de Cambra: Caleidoscópio Edição, 2011, pp 44-48.
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12/09/12

A Poesia de Maria João Cantinho!!!


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Poema:                               MARIA JOÃO CANTINHO

Realização:                         CAROLINA AMARAL

Conceção:                          LUÍSA AMARAL

Texto de apresentação
(no poste anterior e no
Youtube):                          Victor Oliveira Mateus
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   A poesia de Maria João Cantinho instaura-se nesse solo onde a memória e a procura se interpenetram e entre si dialogam, visando esse outro território  onde a alma nos possa sobejar nesta passagem que somos, e onde o olhar, límpido e de autenticidade cheio, se apreenda como uma outra linguagem a escrever-se no silêncio.
  A simultaneidade com que o resplendor e o justo equilíbrio deste processo metafórico se vai edificando – e onde podemos encontrar aspetos da memória cultural (os anjos de Chagall…), das inquietações metafísicas ( como tudo é sagrado e se renova…) e das partilhas afetivo-passionais  - faz-nos intuir que a poesia de Maria João Cantinho transporta no seu seio uma intenção abrangente, derradeira e marcada por um certa visão esperançosa do real, isto é, que a casa do humano possa ainda vir a recuperar vida por entre os escombros da memória.

                                                                  Victor  Oliveira  Mateus   
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"(...) esta dupla ênfase na materialidade do texto e na textualidade da matéria (...) que permite relacionar as duas rupturas de 60 aqui traçadas. "


   Se entre Florbela Espanca e Sophia de Mello Breyner Andresen, consideradas, enquanto escritoras mulheres, em função dos respectivos papéis que desempenharam na vida literária e cultural portuguesa, se podia postular a diferença de uma época, uma ruptura igualmente epocal permitirá distinguir a actividade literária feminina com raízes nos anos 50 e 60 do século passado daquela que se situara nas décadas (e nos séculos) anteriores. Como notou Maria de Lourdes Belchior (citada por Isabel Allegro de Magalhães), "Um fenómeno, entre outros, parecia caracterizar, de certo modo, a literatura portuguesa das décadas 50 e 60: a presença, nos arrais das letras, da mulher como autor". Ou, melhor dizendo, de mulheres como autoras, já que é precisamente a pluralização do fenómeno, estabelecido historicamente como excepcional e singular (em todos os sentidos), da participação literária feminina, e o facto de esta participação ser apreendida como existindo em pé de igualdade com a masculina, que marcam diferentemente a segunda metade do século vinte, introduzindo na paisagem cultural "o que por ausência maciça nunca (nela) houve e, de repente, passou a haver, com suspeita e suspeitada abundância" (Lourenço 1977, 10).
   Não é, no entanto, com esta transformação sócio-cultural que se costuma associar a expressão "a ruptura de 60" no discurso histórico-literário português: ela tem vindo a designar um período de renovação autoconsciente da teoria e prática do discurso poético em Portugal. O significado desta renovação, que se baseou sobretudo na actividade de dois grupos, ou movimentos, que surgiram na primeira metade dos anos 60 - Poesia 61 e o Experimentalismo - assim chegaria a ser resumido por um dos animadores principais, E.M. de Melo e Castro:
"Esta ruptura de 60 pode dizer-se que consistiu numa mudança radical da posição do poeta perante os seus instrumentos de trabalho: a escrita, a linguagem. A poesia não é agora mais instrumento, nem retórico nem ideológico nem moral. A poesia, por outro lado, não é mais sentimento nem sentimentalismo. A poesia não narra, não serve, nem é mais discursiva. A poesia substantiva-se. É uma operação linguística que tem como meio a escrita e como objectivo a sua própria renovação. (1980, 75)
   Nas considerações posteriores dos movimentos poéticos dos anos 60 tem-se destacado precisamente a sua "acentuada inflexão para a materialidade do texto, para a exploração das possibilidades criativas do universo linguístico visto na sua autonomia" (Martins, 1986, 81). Entretanto, a imagem do extremo ensimesmamento da construção poética, pintada por Melo e Castro numa representação ilustrativa do vanguardismo autoconsciente do projecto, não se manteria inteiramente fiel à pureza radical dos seus postulados. Conforme sublinhou Eduardo Prado Coelho, na ocasião do décimo aniversário de Poesia 61, o itinerário do grupo poderia ser resumido  como "a passagem dum formalismo desesperado (...) para uma articulação mais reflectida e estruturada das relações entre a palavra como o signo da história e história como produção de palavras". Também Manuel Frias Martins observa que "a especificidade do novo" nos movimentos poéticos dos anos sessenta se valida menos pela aderência às suas bases programáticas explícitas, concentradas nos aspectos formais - a "preocupação com a linguagem", com o "rigor vocabular", com a "depuração discursiva" - do que por uma "consciência cultural que ultrapassa a preocupação finalista com a linguagem para configurar o poema com o espaço vital por que o real e a experiência tomam verdadeiramente sentido" (82; sublinhados originais).
   É precisamente esta dupla ênfase na materialidade do texto e na textualidade da matéria, ou, por outras palavras, na maleabilidade poética do logos implicado na construção da realidade fisio-lógica e sócio-lógica, que permite relacionar as duas "rupturas de 60" aqui traçadas. Sobretudo na obra de duas autoras, ambas participantes na publicação de Poesia 61 - Maria Teresa Horta e Luiza Neto Jorge - as explorações atentas da "quarta dimensão" (LNJ) da linguagem poética aliam-se intimamente ao imperativo feminista da reescrita do texto cultural legado ao Ocidente europeu pelos séculos da dominação masculina.

  Klobucka, Anna M. O Formato Mulher, A Emergência da Autoria Feminina na Poesia Portuguesa. Coimbra: Angelus Novus Editª, 2009, 203 - 206.
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10/09/12


   O Amor é, de facto, o principal tema de toda a lírica camoniana - como é n' Os Lusíadas, uma das grandes linhas que movem, organizam e dão sentido ao universo, elevando os heróis à suprema dignidade de, através dele, atingirem a divinização.
   Na Lírica de Camões, o amor é, contudo, fonte de contradições vivamente sentidas: ele é sucessivamente "fogo que arde sem se ver", "ferida que dói e não se sente", "contentamento descontente" - daí que dificilmente ele possa trazer consigo a alegria e a paz. É algo de indefinível ou, nas próprias palavras do Poeta, "um não sei quê, que nasce não sei onde, vem não sei como e dói não sei porquê".
   O amor aparece nestes poemas sob uma dupla abordagem. Uma é a sua abordagem à maneira petrarquista, de raiz provençal e neoplatónica. Trata-se de um amor espiritualizado, em que não se vislumbra o corpo dos amantes, que se compraz na adoração e contemplação do ser amado e que leva a que o amador se "transforme" na "cousa amada". Num amor assim vivido, a ausência da amada não só não é sentida com dor, mas é encarada como ocasião de purificação do sentimento amoroso. A mulher amada, encarada como reflexo da beleza divina, é a ponte para a perfeição do "amador". Assim, ela não é retratada com traços fisionómicos precisos - a sua beleza, que é grande, reside sobretudo no olhar, "brando e piedoso", na postura "humilde", na bondade; o seu retrato é um retrato psicológico da perfeição e pureza que dela emanam. Regista-se a impressão que a sua beleza causa, e não os traços de que essa beleza é feita. Trata-se de um ser sublime, divinizado, que se movimenta numa natureza alegre, colorida, paradisíaca. (...) Mas o amor aparece também visto sob outro aspecto, numa outra abordagem. Camões, senhor de uma "longa experiência" de vida, apercebe-se da enorme distância que vai do pensamento à realidade vivida - e sente, mais violentamente que Petrarca, que a vivência quotidiana do amor, longe de trazer tranquilidade e paz, se for dela excluído o factor erótico, traz inquietação e perturbação. (...)
   Da tensão (...) entre o amor espiritual e o amor sensual, resultam, para quem ama, conflitos interiores, perplexidade, contradições, angústia. O sentimento amoroso torna-se motivo de perturbação; a mulher amada transforma-se em "fera", em "Circe", que enfeitiça, destilando no amador o "mágico veneno" e transformando-lhe o pensamento; a ausência e a morte da amada passam a constituir ocasião de dúvida, ciúme, angústia, "mágoa sem remédio".

  Pais, Amélia. Eu cantarei de amor - Lírica de Luís de Camões. Porto: Editª Areal, 1ª edição.
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09/09/12

"Se ambas as perspectivas são empobrecedoras da prática poética(...) elas florescem em momentos muito próprios de uma sociedade. "


   Embora ignorada, implícita ou explicitamente, nas suas implicações estéticas, é genericamente admitido pelo pensamento literário contemporâneo que uma compreensão rigorosamente séria da poesia não se compatibiliza com uma valorização do que é exclusivamente livresco no fenómeno poético. Quando essa valorização acontece, subverte-se inevitavelmente a imagem da poesia. Por um lado, retira-se-lhe aquele componente natural que a faz abrir-se a um imaterial transcendente cujo horizonte só pode ser intuído, não pelas (mais ou menos elaboradas) construções linguísticas e imaginativas mas apesar delas. Por outro lado, a exclusiva acentuação dos traços especificamente artísticos na compreensão e na prática da poesia, se confere ao poeta a consciência da liberdade e da autonomia do seu discurso, lança-o, no entanto, para a fronteira social e política que o estatui em inofensivo especialista do belo, laureado e aplaudido exactamente porque confirmador dessa fronteira.
   Porém, o reconhecimento deste facto não conduz (não deve conduzir) necessariamente, quer ao privilégio das estruturas iletradas, intuitivas ou pré-intelectuais da criação poética, quer à exclusividade de um comprometimento deliberado do poeta com a realidade social e política. Quando esse privilégio acontece, reduz-se a poesia a um mero reportório de fixações afectivas tautologicamente justificadas por interditos ideológicos que emanam da própria lógica das estruturas iletradas, intuitivas ou pré-intelectuais que lhe estão na origem. Quando acontece a exclusividade do comprometimento, o discurso poético está irremediavelmente condenado a permanecer na periferia da poesia, e, embora possa adquirir o estatuto de documento, mesmo assim, enquanto documento a sua informação distorcida (pela intenção poética) é de importância duvidosa.
   Se ambas as perspectivas são empobrecedoras da prática poética e da vida cultural que lhe subjaz, elas florescem em momentos muito próprios de uma sociedade. A primeira encontramo-la invariavelmente nos períodos caracterizados por aquele tipo de ordem tão cara à dominação da burguesia, a qual investe no artista porque (ou quando) é aquele que lhe dá um real decantado (= livresco) de um imaginário outro, alternativo se se quiser, que é quotidianamente sentido ou pressentido pela burguesia através do afrontamento das suas manifestações sociais exteriores. O artista (o poeta) ao institucionalizar a arte (a poesia) livresca implicita a institucionalização da ordem política que, afinal, a determina. A segunda encontramo-la nos grandes momentos de crise social e política; nos momentos de transformação revolucionária do curso da História; nos momentos em que o "povo", depositário dos valores mais substanciais, ou o "proletariado", escorado nas razões vitais do lugar que ocupa no processo de produção, são apresentados como sujeito e efeito de uma nova dinâmica cultural. Uma dinâmica tutelada pela categoria de "massa", e que passa a presidir ao acto de produção (objectiva) e recepção (ideal) dos bens culturais.

  Martins, Manuel Frias. 10 anos de poesia em Portugal 1974-1984, leitura de uma década. Lisboa: Editorial Caminho, 1986, pp 31 - 32.
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08/09/12

"(...) a tarefa da crítica literária deve radicar sobretudo na interpretação e na análise... "


Sem recusar uma preocupação com o mérito literário das obras, creio, no entanto, que a tarefa da crítica literária deve radicar sobretudo na interpretação e na análise, por aí contribuindo para a revelação do valor da(s) obra(s). Deste modo, a crítica poderá desempenhar um papel verdadeiramente produtivo no contexto da comunidade literária, abrindo simultaneamente ao leitor potencial dos textos analisados um campo de intervenção e de permuta. Se é certo que o discurso crítico é inevitavelmente persuasivo, não é menos certo que se a crítica se esgotar na persuasão através de juízos de valor estará a criar as condições para se tornar um mero adereço da cena (literária) que deveria ser sua função analisar.
   Creio que devo ainda acrescentar a minha convicção de que o crítico não deve preocupar-se com uma competição com o(s) escritor(es) através da prolixidade de um discurso recheado de jogos verbais e/ou de conceitos fundados na retórica do fascínio da sua própria produção. Ou seja, pretendo não só distanciar-me daquele tipo de discurso contemporâneo que sanciona o acto crítico pelo mero espectáculo de (uma) escrita, mas também justificar a economia deste ensaio exactamente pela fundamentação dos juízos que contém. No entanto, devo também sublinhar a minha crença na intersecção do trabalho literário e do trabalho crítico numa mesma urgência para responder às solicitações do real através da determinação das condições estéticas da sua interpretação. Ou seja, pretendo não só legitimar o dialogismo implícito nas construções intelectuais do (meu) trabalho crítico, mas também reiterar a validade dessas mesmas construções.
   Finalmente, esclareça-se que as divisões que irei fazer não são absolutas. Se a dominante da produção de um determinado autor parece sugerir a sua inclusão num determinado conjunto, esse facto não anula a possibilidade de esse mesmo autor também apresentar características que o "empurram" para um outro conjunto. Esta situação não faz mais do que confirmar a poesia como género plural, e o trabalho que a organiza como exercício potencialmente conjuntivo da multiplicidade do real - e que, aliás, torna a tarefa crítica muito ingrata, mas também extraordinariamente aliciante.


  Martins, Manuel Frias. 10 anos de poesia em Portugal 1974-1984, leitura de uma década. Lisboa: Editorial Caminho, 1986, pp 13 - 14..
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"(...) mas é também importante... "



   " A economia é necessária; é importante que todos o saibamos;
   mas é também importante que ela seja nobre, e não sórdida. "


Christine de Suède. Maximes. Paris: 1996, p 96 (Préface de Chantal Thomas
e tradução minha).



Nota - o quadro da rainha Cristina (1626-1689) é da autoria de
Jacob Ferdinand Voet.