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08/12/12



Sobre os écrans, o poeta há-de verter poemas.
De tudo sabe um pouco,
havendo, ainda, tudo o que adivinha
em seus fulgores de génio e de duende

à deriva no mundo. As mãos levanta
acima da cabeça, com os pés soterrados
pela greda, enredado em escórias,
que, aonde quer que vá, sempre o sitiam.

Com tinta permanente e com ácidos
não pode mais fazer que exorcismar
o que em si há de mais pungente

na rota dos algares e das serpentes.
De pé, espera, a atravessar a noite
que perscruta.

  Baptista, Amadeu. Atlas das Circunstâncias. Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim Editora, 2012, p 30.
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07/12/12



É anfíbia, a adolescência do poeta.
Distinguem-se-lhe no tórax barbatanas
dorsais e pulsam-lhe, na garganta, pequenas
brânquias, que permitem que toque o fundo

do mar, das coisas e da terra.
O poeta é portador de uma beleza
oculta onde tudo se encontra, uma banca
de trabalho, um alguidar, uma reverberação

líquida, cor de fogo, a sitiá-lo dentro
da sua própria vida, a sua descendência,
a chuva que não cessa de cair

sobre as cabeças, diluviana, escaldante,
escura, como uma pedra
didáctica.


   Baptista, Amadeu. Atlas das Circunstâncias. Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim Editora, 2012, p 18.
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01/06/11


(...)
Esta é a juventude perene,
a que nenhuma neve cede às prerrogativas do tempo
e que eu, em menino, quis entrever para sempre,
a crença firme deveria poder reduzir-se
a outro teor, exaurindo-se do que avulta em injustiça no embaraço
de pregar aos peixes, como se a abutres fosse,
em vez de a homens,
com rostos semelhantes ao nosso semelhante,
nas intransponíveis perguntas para que não há resposta

Daí que todas as perguntas tenham sentido e não façam sentido
nenhum, unem-se os raros e os ternos, a luz solidifica,
todos os confrontos explodem em outras recriminações,
as cidades passam, passam as acareações,
passa a desolação para quem outra desolação se apreste
na cidade,
mas ninguém, morto que esteja, lê Herberto Helder,
como há muito sabemos,
enquanto a fulminação da infância é uma desventura
e é uma desvantagem escrever versos que ninguém há-de ler,
ou só mesmo pensar em escrevê-los

Adianta pouco esta roda de comprazimento,
caímos uma primeira vez e uma segunda vez iremos cair,
e logo uma terceira vez caímos,
mas morreremos, como sempre, na praia,
como sempre morreremos ao percorrer a passadeira devagar,
entre uma loja chinesa e outra loja chinesa,
entre um e outro descaminho,
um descaminho de atropelamento,
e fuga
e nada mais,
nada mais no horizonte da menina nua da avenida dos Aliados

Tudo é avulso, tudo é repulsivo,
calha-nos ensandecer cedo demais,
(...)

  Amadeu Baptista in " O Ano da Morte de José Saramago", &etc., Lisboa, 2010, pp 23 - 24.
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11/03/10

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"Franz Schubert:
Standchen "


Os pensamentos que me assaltam nesta madrugada
fria de Setembro
não estão longe da distância dos teus lábios
e do rumor suave das tuas mãos que tocam
as insígnias de Deus sob o dorso da terra.

Se olhasses para mim verias nos meus olhos
a lancinante expressão da solidão
e a esperança sem qualquer indecisão
de que é possível o teu nome ser maior
que o céu que me vela o silêncio da noite.

Amar-te desde sempre é mais que uma forma de estar vivo
e dar expressão à divindade que trago comigo
desde que atravessei a fronteira
que entre o mar e o mar estabelece
a luz mais verdadeira.

O mais sequer é tempestade que neste coração sangra,
ou dúvida subtil ou estremecimento,
sentindo o alvoroço em que te sinto
apenas peço que sejas tu o assombro
e me devolvas enfim a harmonia.

Amadeu Baptista in " o bosque cintilante", Cosmorama Edições,
Vila Nova de Famalicão, 2008, p 39.
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17/10/09

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já não me lembro se era inverno ou verão.
sei que o sol estava baixo e a sombra dos prédios
se alongava pelo rio e um último feixe de luz precipitava
o início de um crepúsculo de cores muito saturadas.
alguém veio chamar a minha ama
e ela levou-me pela mão como se houvesse
no ar o sinal de uma catástrofe
maior do que poderia pressentir.
só parámos em frente à entrada principal do palácio das sereias
de onde vi, ao longe, a carga policial
sobre os manifestantes que se aglomeravam no largo da alfândega.
de um lado havia gente em silêncio
e do outro guardas a cavalo.
dir-se-ia que apenas esperavam
o momento adequado para o impulso
de raiva que se lhes vislumbrava
estampada nos rostos. eu não sabia
o que não sabia existir. de súbito, senti
um nó na garganta
que apertava tanto que me fez doer
a nuca, os braços, as clavículas,
as pernas, os joelhos. a minha mão
na mão da minha ama, que senti tremer.
de súbito, provindo do silêncio
em que tudo decorria, sem prévio
aviso, ouvimos um estampido, e outro, e outro, ainda.
dos homens a cavalo, alguém puxara
de uma pistola e disparara sobre a multidão
silenciosa, que começou a gritar e a correr,
arremessando pedras sobre os guardas
de esporas nos cavalos, que espumavam
e levantavam as patas dianteiras.
nas janelas das casas vi
gente que levantava bandeiras negras
e vermelhas, outras brancas,
e apupava a polícia e clamava
palavras que até ali desconhecia
e aprendi, para sempre, serem
as mais essenciais para quem da vida
só espera a liberdade. do sítio de onde
estava, num relance, vi um homem
com sangue a escorrer do peito e da cabeça, estando muitos
caídos pelo chão, que os cavalos pisavam
e a quem os guardas batiam com bastões,
enquanto outros não paravam de correr,
procurando refúgio atrás das poucas árvores
e de alguns automóveis ali parados.
por essa altura, todo o meu corpo
se pôs em convulsões, acompanhando
os gritos que ainda hoje oiço
da infância.

Amadeu Baptista In "os selos da lituânia", & etc., Lisboa, 2008, pp 19 - 21.
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26/10/08




Opto pela visão do desejo
quando te espero no térreo jardim da manhã.
A viagem inscreve na cabeça
a magia da encruzilhada.
O resplendor da lua promete
neste encontro o brilho do fascínio,
alguns despojos breves na folha de papel,
a alma, o sortilégio,
a divina confluência dos rios que iluminam
o júbilo e a sombra da existência.
Sinto esta cidade densamente povoada
de ocres e azuis,
as árvores inclinam-se para o princípio do mundo,
a música que passa é essa transparência
de um enigma vivo,
a luz fragílima de um sentido brutal,
anterior a nós.
O verde ao longe é a solidão do mundo,
o feitiço das ruas esse fogo perpétuo,
a rosa nos teus olhos o augúrio da água
de que nascem as fontes e se incendeia a terra.
Pelo destino do mar regresso a esta pedra,
sob a sombra das aves celebro o sol e a lua,
nesta cidade me perco e me encontro,
novilho da impaciência e da carícia.


Amadeu Baptista, In "Arte do Regresso",
Campo das Letras Editores, Porto, 1999, pp. 22-23.
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