01/06/11


(...)
Esta é a juventude perene,
a que nenhuma neve cede às prerrogativas do tempo
e que eu, em menino, quis entrever para sempre,
a crença firme deveria poder reduzir-se
a outro teor, exaurindo-se do que avulta em injustiça no embaraço
de pregar aos peixes, como se a abutres fosse,
em vez de a homens,
com rostos semelhantes ao nosso semelhante,
nas intransponíveis perguntas para que não há resposta

Daí que todas as perguntas tenham sentido e não façam sentido
nenhum, unem-se os raros e os ternos, a luz solidifica,
todos os confrontos explodem em outras recriminações,
as cidades passam, passam as acareações,
passa a desolação para quem outra desolação se apreste
na cidade,
mas ninguém, morto que esteja, lê Herberto Helder,
como há muito sabemos,
enquanto a fulminação da infância é uma desventura
e é uma desvantagem escrever versos que ninguém há-de ler,
ou só mesmo pensar em escrevê-los

Adianta pouco esta roda de comprazimento,
caímos uma primeira vez e uma segunda vez iremos cair,
e logo uma terceira vez caímos,
mas morreremos, como sempre, na praia,
como sempre morreremos ao percorrer a passadeira devagar,
entre uma loja chinesa e outra loja chinesa,
entre um e outro descaminho,
um descaminho de atropelamento,
e fuga
e nada mais,
nada mais no horizonte da menina nua da avenida dos Aliados

Tudo é avulso, tudo é repulsivo,
calha-nos ensandecer cedo demais,
(...)

  Amadeu Baptista in " O Ano da Morte de José Saramago", &etc., Lisboa, 2010, pp 23 - 24.
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