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02/01/12


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Recordo-me de um derradeiro presente de John. Foi no meu aniversário, 5 de Dezembro de 2003. Começara a nevar em Nova Iorque cerca das dez da manhã, à tarde já havia vinte centímetros de neve acumulada e esperava-se quase outro tanto. Lembro-me de que a neve tombara em avalanche do telhado de ardósia de Igreja Episcopal de São Tiago para a rua. O plano para nos encontrarmos com Quintana e Gerry no restaurante foi cancelado. Antes do jantar, John sentou-se junto da lareira na sala de estar e pôs-se a ler em voz alta para eu ouvir. O livro que estava a ler era um romance meu, A Book of Common Prayer, que por acaso ele tinha na sala porque estava a reler a fim de ver como é que algo resultava tecnicamente. A sequência que ele estava a ler em voz alta era uma em que Leonard, marido de Charlotte Douglas, visita a narradora, Grace Strasser-Mendana, e lhe dá a saber que o que está a acontecer no país que a família dela governa não vai acabar bem. A sequência é complicada ( era de facto a sequência que John tencionara reler para ver como é que funcionava tecnicamente), é interrompida por outra acção e exige que o leitor apanhe o subtexto do que Leornard Douglas e Grace Strasser-Mendana dizem um ao outro. "Caramba", disse-me John ao fechar o livro. "Não me voltes a dizer que não sabes escrever. O meu presente de aniversário é isto."
Recordo-me de que as lágrimas me vieram aos olhos.
Estou a senti-las agora.
Em retrospectiva, fora este o meu pressentimento, a minha mensagem, o nevão precoce, o presente de aniversário que ninguém mais poderia dar-me.
Restavam a John vinte e cinco noites de vida.

  Joan Didion in " O Ano do Pensamento Mágico ", Gótica, Lisboa, 2006, pp 171 - 172.
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01/01/12

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Pareceu-me, naquele dia, no quarto de Quintana no Presbyterian, quando li as últimas provas do Nothing Lost, que talvez houvesse um erro gramatical na última frase da passagem sobre J. J. McClure, Teresa Kean e o tornado. Na verdade, nunca soube as regras da gramática, e em vez disso sempre confiei no que me soava bem, mas havia ali qualquer coisa que me parecia que não soava bem. A frase nessas últimas provas rezava assim: " Era o mais próximo uma declaração de amor que J. J. era capaz de fazer." Por mim, teria acrescentado uma preposição: " Era o mais próximo de uma declaração de amor que J. J. era capaz de fazer."
Sentei-me à janela e fiquei a ver os blocos de gelo no Hudson, pensando na frase. Era o mais próximo uma declaração de amor que J. J. era capaz de fazer. Não era o género de frase que, caso a tivéssemos escrito, gostássemos que estivesse errada, mas também não era o género de frase, se fosse assim que a tivéssemos escrito, que gostássemos de modificar. Como é que ele a teria escrito? Que tinha em mente? Como a queria? A decisão ficou para mim. Qualquer escolha minha acarretaria um potencial abandono, se não traição. Foi uma das razões por que estava a chorar no quarto de Quintana, no hospital. Nessa noite, quando voltei para o meu quarto, comparei com as provas anteriores e com os originais. O erro, se é que havia um erro, estava ali desde o princípio. Deixei ficar como estava.
Porque é que hás-de ter sempre razão.
Porque é que hás-de ter sempre a última palavra.
Ao menos uma vez na vida, deixa andar.
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  Joan Didion in " O Ano do Pensamento Mágico ", Gótica, Lisboa, 2006, pp 146 - 147.
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30/12/11

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Uma das coisas em que reparei durante aquelas semanas na UCLA foi que muita gente conhecida, quer de Nova Iorque, quer da Califórnia e de outros sítios, partilhava de um hábito mental geralmente atribuído aos que se deram muito bem na vida. Acreditavam piamente na sua própria capacidade de resolução de problemas. Acreditavam piamente no poder dos números de telefone que sabiam na ponta da língua, o médico certo, o principal doador, a pessoa que podia facilitar um favor junto do Estado ou da Justiça. A capacidade de resolução dos problemas daquela gente era de facto prodigiosa. O poder dos seus números de telefone era de facto ímpar. Eu própria, durante a maior parte da minha vida, partilhava da mesma fé enraizada na minha capacidade de controlar os acontecimentos. Se a minha mãe fosse hospitalizada inesperadamente em Tunes, eu conseguiria que o cônsul americano lhe levasse jornais em língua inglesa e a metesse num voo da Air France para ela se encontrar com o meu irmão, que estava em Paris. Se Quintana ficasse subitamente apeada no aeroporto de Nice, eu conseguiria arranjar alguém da British Airways para a meter num voo da BA para ela ir ter com o primo a Londres. No entanto, a um determinado nível, porque sou medrosa de nascença, tivera sempre a percepção de que certos acontecimentos da vida estão para além da minha capacidade de os controlar ou resolver. Certos acontecimentos limitam-se a suceder. Este era um desses acontecimentos. Sentamo-nos para jantar e a vida, tal como a conhecemos, acaba.

   Joan Didion in " O Ano do Pensamento Mágico ", Gótica, Lisboa, 2006, pp 104 - 105.
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