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16/10/11

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Lorenzaccio, meu irmão, meu gémeo, meu arquétipo, somos os fundadores duma classe onomástica com os pés no inferno, o espírito no impossível paraíso e o cérebro rasgado na confusão das trevas terrestres. Somos realmente os gigantes da angústia perplexa, megalómanos do sonho irrealizado.
Sei, desde essa altura, porque me chamo Lourenço, e uma tal ciência é importante, embora só relativamente: fiquei a saber-me e agora é impossível determinar, com uma apreciável aproximação, os motivos do meu deslumbramento pela Maria Emília, no dia em que a conheci. Acontece, porém, que se me põe uma alternativa de dois motivos que reciprocamente se eliminam: a "página em branco" permitia-me a re-criação da vida numa base de pureza ou a "página em branco" desencadeava em mim os brios de devasso à procura dum campo ideal, pronto a acolher a seiva dum pervertido perversor? A questão não é fácil de decidir, pois, ao tempo, ainda os meus instintos de devasso, tal como os meus pruridos de pureza, eram mais potenciais que efectivos. (Ao escolher-me o nome de Lourenço, a minha mãe, que era ledora de clássicos, saberia porventura ao que me expunha? Mal a conheci, nunca pude perguntar-lhe.)
Tudo isto é muito vago, ou melhor: era muito vago até há alguns tempos atrás. Agora deixou de ter importância, deixou de ter importância que seja ou não vago, deixou de ter importância que eu saiba ou não que era ou não vago. Importante, sim (mas seria?), era o que eu sentia, deitado ao lado de Matilde, repousando do amor e conversando, não sobre nós, antes sobre cada um de nós, cada um de si, entenda-se. Havia uma identidade própria que, no momento oportuno, não receava qualquer alienação, talvez porque, subjacentemente (ou suprajacentemente?), existíamos egoistamente, sabendo que o desejo que sentíamos um pelo outro era  a única forma de descansarmos de nós próprios - e ansiávamos por esse relaxe que em nada nos comprometia. Os nossos primitivos encontros na casa da serra ainda estavam carregados de ressentimentos e dúvidas, nós não sabíamos o verdadeiro motivo por que estávamos ali e fantasiávamos razões, vagamente inquietantes, subsidiárias dum trunfo ainda convencional, o dum amor burguês que, aliás, nenhum de nós sentia pelo outro. O Paulo deixara-lhe esse amargo de alma e ela encontrava-se numa encruzilhada de caminhos arejada por todos os ventos, tentando, muito confusa e dorida, definir-se por inteiro numa das direcções. O dilema era não saber por qual. Adoptar o dilema e passeá-lo como um cãozinho de estimação, adiando sempre uma decisão definitiva, deixando-se, entretanto, refrescar pelo vento mais oportuno - tal foi, penso eu, a sábia provisoriedade que Matilde deu à sua vida amorosa.

  Fernanda Botelho in " Lourenço é nome de jogral ", Contexto Editora, Lisboa, 1991, pp 83 - 85.
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15/10/11

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- Estou realmente a perder qualidades. Essas e outras.
- Tem juízo! - exclama Matilde, engasgada com um bocadinho de bolo. E depois: - O que te prejudicou foi a ortodoxia da situação.
Faço um apelo mudo, muito mastigado, a uma explanação mais vasta, e ela prossegue:
- Há algo de deprimente nas situações ortodoxas.
- Ortodoxas?
- Claro, meu querido! Queres coisas mais ortodoxas que um estilo de vida burguês temperado por uma literatura decadente? A tua Anne é... digamos, stendhaliana. Uma stendhaliana dos nossos dias. Conheço o género. Ela sentir-se-ia perfeitamente frustrada, des-classificada, se não fosse as suas facadinhas no matrimónio. A classe a que ela pertence exige-lhe essa desenvoltura secreta, mas secreta só até certo ponto. Quando ela passa, gosta de ouvir uns zunzuns. São os comentários do seu êxito social. São eles que a confirmam "classificada". Ela também os faz por conta de outras. Intercâmbio de maledicência, mas com boas intenções. É preciso explorar esses zunzuns, tirar deles todo o partido, pelo menos até ao sinal encarnado, que é o ponto em que a respeitabilidade se ressentiria, e ela, em vez de adivinhar zunzuns à sua passagem, começasse a defrontar olhares inequívocos de menosprezo. O que poderia significar uma " des-classificação ". É preciso conhecer a medida certa. Enquanto a tua Anne não deitar por fora, a classe a que ela pertence...
- A classe a que ela pertence!... - repito, com a sensação de um martelar doloroso algures na minha cabeça.
Matilde reclina-se. Fechou os olhos e conclui, já semialheada do meu problema, que o não é.
- Oh! É tudo tão ortodoxo! Não me obrigues a explicar-te mais. Estou, afinal, a falar de coisas que não conheço, duma classe a que não pertenço, dum mundo onde não existo. É como fazer o inventário do Palácio de Versalhes sem nunca lá ter posto os pés.

 Fernanda Botelho in " Lourenço é nome de jogral ", Contexto Editora, Lisboa, 1991, pp 160 - 161.
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