29/09/09

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"a minha casa"

uma ilha
os livros todos que a poesia
tivesse julgado como abrigo

um solstício suspenso
para a luz ser lida
com tempo

e uma história para
mobiliar as paredes brancas

boa ou má
uma história com um passadiço
para o amor

Daniel Gonçalves In "a casaDescrita", edição de autor numerada e assinada, 2009, p 11.
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"a casa escrita"


a casa escrita
abre a sua grande janela
musical

deixa volutear as suas cortinas
brancas

como a orla de uma dança
cristalina

e chama as cotovias
a água primordial
do dia

o gato azul

para se sentar
no colo do poeta

Daniel Gonçalves In "a casaDescrita", edição de autor numerada e assinada, 2009, p 1.
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28/09/09

"E nenhum vínculo as ligará à morte"

"Retrato # 1, Lacedonia - Itália, 1957" foto de Frank Cancian (Irvine, Califórnia).
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Hão-de crescer mulheres como flores sobre os telhados.

Sonhar-se-ão em volta, arqueadas como abóbodas.

Serão verticalmente o poema
com suas frontes altas e brancas.

E nenhum vínculo as ligará à morte

quando sobre as cabeças ondularem como tochas.


Jorge Melícias In "disrupção", Cosmorama Edições, Vila Nova de Famalicão,
2008, p 116.
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"um metal onde florescem guelras."

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A vara cantada ao longo dos dedos,
um metal onde florescem guelras.

Eis o lugar infusível do poema.

A cegueira com a
precisão de um eixo.


Jorge Melícias In "disrupção", Cosmorama Edições, Vila Nova de Famalicão,
2008, p 90.
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27/09/09

"um deus despótico e cego"

"Estudos para a Morte de Cleópatra" (c. 1791) de Domingos António de Sequeira
(carvão e giz branco sobre papel). Foto de Arnaldo Soares.


"Punition"

Aujourd'hui
en cet instant
la vie sans foi est un verdict
les objects deviennent des dieux
le corps devient un dieu

un dieu despotique et aveugle
il engloutit et digère ses fidèles
puis les excrète


Tadeusz Rózewicz In "Inquietude", Buchet-Chastel Ed., Paris, 2005,
p 6o (tradução do polaco para o francês de Grazyna Erhard).
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25/09/09




Que noite escura! Que noite escura!
Bramem as ondas cavernosas...
A grande armada vai largar...
Oh, a armada do rei!... oh, as naus pavorosas
Na escuridão, turbilhonando, a baloiçar!...
São esquifes mortuários,
São féretros com velas de sudários,
Tumbas negras nas ondas a boiar!...
Ai que gemidos, que alaridos
De multidões na praia, olhando o mar!...
Lá vem o rei... lá vem a côrte... e luzes, luzes
De brandões, de tocheiros a sangrar...
Vai a embarcar?... vai a enterrar?... Não trazem cruzes,
Nem há sinos por mortos a dobrar...
Oh, a lúgubre, estranha comitiva
A bandada de espectros singular!...
É gente morta?... é gente viva?...
Procissões de defuntos a marchar!...
Cortesãos, cavaleiros e soldados,
Tudo esqueletos descarnados,
Olhos de treva e crânios de luar!...
Ladeiam côches fúnebres doirados...
São os côches d'El-Rei... vai a enterrar?...
Lá se apeiam as damas das liteiras...
Gestos de manequins, rir de caveiras...
Fitas e plumas sôltas pelo ar...
Olha a rainha, vem em braços, morta e doida.
Morta e doida a clamar que a vão matar!...
E o rei!... olhem o rei!... que rei de entrudo!...
Um porco em pé, com manto de veludo
E c'roa na cabeça, a andar, a andar!
Mas reparem... tem cornos! é cornudo!
Dois chavelhos de boi no seu logar!
Um rei, que é porco e tem chavelhos!
Um rei que é porco e tem chavelhos!
Que fantasia! enlouqueci!... ando a sonhar!...
Mas bem no vejo! eu bem no vejo,
C'roa de rei, tromba de porco e chifres no ar!...
.....................
Cái de rastros, chorando, o povo inteiro,
Beija-lhe a côrte as patas e o traseiro...
E êle a grunhir! e êle a roncar!...
......................
Lá vão as naus... lá vai o rei com seus tesoiros...
E lá ficam na praia, como agoiros,
As multidões soturnas a ulular! ...
......................
Olha uma águia rubra, uma águia bifronte,
Incendiando o horizonte,
A voar, a voar, a voar!...
Ai dos rebanhos!... ai dos rebanhos!...
Águia de extermínios, onde irás poisar?!
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Guerra Junqueiro In "Pátria", Livraria Chardron, de Lélo & Irmão,
Porto, 1912 (Quarta Edição), pp 129 - 131.
NOTA: este poste mantém a grafia de 1912.
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23/09/09

Angélique Ionatos canta a poesia de Odysseus Elytis.

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Sempre que a mim regressas indefeso te recebo e, sem temor
ou artifício, indefeso me dissipo na tentação por nós
arquitectada. Mas há tentações assim... Que nos devoram.
Que nos devoram e limpam da ferocidade diária,
dos mitos que nos apregoam mas não compramos,

porque tentação mais vil do que a nossa. Sempre que a mim
regressas - qual rosa ou vala ou ferida aberta - uma maré
de alegria me retoma, me submerge e apequena sem eu saber
como nem porquê. Grande é a vizinhança entre os instantes
das tuas vindas e a eternidade que nelas inscrevemos.

Grande a felicidade se acaso te demoras e eu, para além
das armadilhas da noite, para além do estampido das ondas
contra as rochas, dos estalidos do soalho sob os nossos
pés nus, do arquejar dos nossos corpos já saciados, esqueço
a minha boca colada à tua pele, como jóia cintilante a prender
o manto da mais bela rainha do Mediterrâneo.


Mateus, Victor Oliveira. A Irresistível Voz de Ionatos. Fafe: Editora Labirinto, 2009, p 17.
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Aportados em tão extrema manhã ao que vínhamos
bem nós sabíamos. Mas ao que estávamos, só quem via
aquele azul como nós, que religiosamente o calávamos
como coisa rara, coisa de impossível dizer, só quem via
nossa busca em seu intrépido fulgor, poderia perceber

tanto e tanto ardor. Aportados naquela manhã, na ponta
norte, de onde as costas da Lacónia nos apareciam
como um leve traço antes do céu, logo ali desocultámos
desse admirável princípio seu estranho véu. E com o teu
braço sobre os meus ombros, por entre sumagres, faias

e avelaneiras, adentrei-me naquela ilha, que por nossa
se desenhava. Ilha para lá do vazio, da felicidade imitada,
dos escombros: terra finalmente alcançada com o teu
braço sobre os meus ombros. Nenhum mal a poderia
já extinguir como marco nunca havido, nem a persistente

fragrância a si própria acrescentada de sémen e saliva
- de nós húmidos rastros - no abandono dos cômoros, nem
tão-pouco as terríveis perdas, que nas cidades fervilham
em correria inóspita e vã, parecer por nós recusado
quando à ilha havíamos chegado naquela extrema manhã.



Mateus, Victor Oliveira. A Irresistível Voz de Ionatos. Fafe: Editora Labirinto, 2009, p 10.
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22/09/09

"(...) parler d'une manière telle que mes paroles/ à travers les larmes atteignent l'éclat des sourires"


"Désir"

Je voudrais aujourd'hui parler un langage si imagé et si clair
que les enfants accourent vers moi comme vers un parc
baigné de soleil et gorgé de lumière

Je voudrais aujourd'hui parler avec tant de chaleur et de simplicité
que les personnes âgées puissent se sentir utiles

Je voudrais parler d'une manière telle que mes paroles
à travers les larmes atteignent l'éclat des sourires

Je voudrais aujourd'hui parler avec calme et douceur
afin que les gens puissent se reposer avec moi
rire et pleurer
et se taire et chanter

Je voudrais aujourd'hui parler avec rage et sévérité
afin qu'ils retrouvent leurs rêves égarés
l' Aile jadis jaillie de leur épaule

Je voudrais ne pas parler
mais agir avec des paroles
pour que les hommes de leurs mains
touchent mes paroles

Tadeusz Rózewicz, "Inquiétude", Buchet Chastel Éditions, Paris,
2005, pp 37 - 38 (tradução do polaco para o francês de Grazyna Erhard).
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20/09/09

" O futuro de um país lê-se no rosto dos seus habitantes"

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A este propósito, é bom lembrar que cerca de um terço da população portuguesa continua a viver no exterior. Cinco milhões de emigrantes encontram-se dispersos pelos Estados Unidos, pela França e pelo Brasil, por muitos e vários outros destinos, em confronto com os dez milhões e trezentos mil que vivem em território nacional, o que significa que Portugal continua a ser um país de partida. Aliás, a emigração de portugueses para a Europa mesmo nos últimos tempos não abrandou de ritmo. De momento, é mesmo o país da União Europeia que apresenta a percentagem mais elevada de cidadãos em idade activa a residir em outros Estados-membros. Isto é, como desde há muito, continua a existir um vasto país fora do país, e os números relativos a essa emigração continuada, esmagadoramente de natureza económica, não param de aumentar.
Mas se todos esses dados só confirmam realidades que vêm de trás, eles inscrevem-se agora numa constante bem mais alargada, integrada na mobilidade global que faz mover as populações em torno da Terra em direcção a determinados destinos. Quanto ao que nos diz respeito, o que há de novo, precisamente, é que Portugal tenha passado, nas últimas décadas, a ser cada vez mais um país de destino, e que se aproxime de meio milhão o número de estrangeiros a trabalharem e a residirem entre nós. (...) Os últimos números oficiais dão conta de quase meio milhão de estrangeiros a viverem legalmente em Portugal, sem contar com os clandestinos. À semelhança de outros países europeus, o maior número de imigrantes provém dos antigos espaços coloniais a que se juntam imigrantes oriundos das antigas repúblicas soviéticas - Rússia, Ucrânia, Roménia, Moldávia. Actualmente, pode dizer-se que cinco, em cada cem cidadãos deste país, são estrangeiros, e mesmo tendo em conta oscilações sazonais, o número tende a aumentar. Espera-se mesmo que o equilíbrio demográfico venha a ser alcançado, num futuro próximo, a partir das faixas da imigração residente. O que quer dizer que, à semelhança de outros países da Europa, num futuro imediato, Portugal terá um desafio importante pela sua frente, no qual já inclui uma bela moeda de troca.
É que neste campo de permuta, feito de partida e chegada, deve-se ter em conta que rara será a família portuguesa que não teve no seu passado a experiência do desconhecido e da errância. A força do seu trabalho e da sua energia espalhou-se por toda a parte. O português contactou com todos, à volta do mundo, conhece de tudo um pouco. Mas é a primeira vez, nos tempos modernos, que outras diásporas se cruzam no seu próprio espaço territorial, estando em vias de se desenhar um novo rosto para o futuro.
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O futuro de um país lê-se no rosto dos seus habitantes, e em trinta anos o rosto da população mudou. O vocabulário também.`É verdade que os conflitos aumentaram e a instabilidade se instalou em zonas que não era suposto, e surgiram tensões sociais que nos eram desconhecidas, crispações étnicas que entretanto se cruzaram com outras de vária natureza, à medida que a sociedade se foi tornando complexa e fragmentada. Mas se esta estrada tem oferecido vários caminhos divergentes, por vezes eles cruzam-se sobre o mesmo tapete de asfalto e alguns deles conduzem a locais inesperados.
Falemos desses lugares, alguns deles de natureza simbólica, por exemplo. É o caso da palavra "raça", que praticamente desapareceu do uso quotidiano para dar lugar a "etnia", um termo que sublinha a inscrição da pessoa numa cultura que lhe é própria, abrindo caminho para uma ligação a um "lugar" e uma "história", mais do que a uma História e uma Geografia.(...) e abre espaço, no plano dos conceitos, para aquilo que é hoje comum ser defendido pelos grupos que se batem pelo reconhecimento da igualdade biológica, em face da Ciência. E provenientes desse campo, até agora, só têm chegado notícias de que nada distingue os homens segundo as raças. As distinções, a nível biológico, estabelecam-se homem a homem, e as mais relevantes entram por outras portas e baseiam-se noutros critérios. (...) "O genoma humano não tem raça" - foi uma frase emblemática, proclamada a 13 de Fevereiro de 2001, e com a qual se baptizou o início deste século, que se pretende sem preconceito. Mas nem todas as alterações provêm do campo dos novos conceitos. Muitas delas resultam das circunstâncias nuas, e por vezes cruas, da pura factualidade.(...)
É assim que, entre nós, a pressão crescente dos números também explica a alteração positiva que se tem feito sentir neste domínio. Ainda há trinta anos, uma criança estrangeira que chegasse a uma escola portuguesa constituia um caso isolado. Hoje, há escolas que registam mais de trinta etnias, e turmas onde estudam em conjunto crianças oriundas de dez países diferentes, desde o Paquistão à Argentina, da Roménia à China.
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Lídia Jorge In "Contrato Sentimental", Sextante Editora, Lisboa, 2009, pp 28 - 31.
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19/09/09


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                   "Anto"


Bem que o cego avisara:
"César, tem cuidado com os idos de Março".
Mas isso fora há mil e muitos anos
e na história, mais que a realidade,
sempre procuraste o mito e a ficção.
Não é verdade que para ti
Hamlet era mais real que Shakespeare?
Quando chegaste ao Seixo, santo Deus, como vinhas!
Eram bem maiores as moléstias da alma
do que aquelas que carregavas no corpo
e te minavam os pulmões.
Tudo te causava horror.
Tinhas nojo dos homens e das coisas
mas a bondade renascia em teu coração
quando olhavas os carreirinhos de formigas.
No Seixo sonhaste reencontrar
o aconchego do ventre de tua mãe.
Mas os ares eram fortes de mais,
não fugias aos orvalhos da noite
e a ciência há muito te abandonara.
De nada valiam as rezas de Carlota
nem as perdizes do Senhor Abade.
Por isso tiveste de deixar
o lar da tua infância, a tua taça de leite.
Querias apenas dormir, dormir, dormir...
Enquanto olhavas do teu quarto
as ondas brancas do teu mar da Foz,
adormeceste para sempre, docemente,
nos braços maternais de teu irmão.
Era Março e tinhas a idade de Cristo.

António José Queirós In "Os Meninos e Outros Poemas", 2ª edição,
Editora Labirinto, Fafe, 2008, p 17.
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    "Soneto da Inquietação"


Olho a ponte, olho o rio, mas não vejo
quem meus olhos procuram cegamente:
corre o tempo, fica a dor e o desejo
que o mundo se acabe de repente!

Passa um dia, outro dia, já não sei
por onde se perdeu meu pensamento;
caem sombras nos sonhos que sonhei
debruadas de mágoa e esquecimento.

Com a vida, por vezes, não me entendo,
nem com seus alados véus de ilusão.
E enquanto o meu mundo vai morrendo,

em saudosas vigílias de paixão
recordando o passado vou vivendo
numa louca e amarga inquietação.

António José Queirós In "Os Meninos e Outros Poemas", 2ª edição,
Editora Labirinto, Fafe, 2008, p 57.
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18/09/09




                             "Confidências"


Mãe! dói-me o peito. Bati com o peito contra a estátua que tem em cima o verbo ganhar. Ainda não sei como foi. Eu ia tão contente! eu ia a pensar em ti e no verbo saber e no verbo ganhar. Estava tudo a ser tão fácil! Já estava a imaginar a tua alegria quando eu voltasse a casa com o verbo saber e o verbo ganhar, um em cada mão!
Dói-me muito o peito, Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
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Mãe!
Já não volto à cidade sem ir contigo! para a cidade ser bonita. Irmos os dois juntos de braço-dado, e andarmos assim a passear; para ver como tudo está posto na cidade por causa de ti e de mim e por causa dos outros que andam de braço-dado.
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Mãe! dize essa metade que tu sabes do que é necessário saber, dize essa metade que tu sabes tão bem! para eu pensar na outra metade..
Se não houvesse senão homens e saltimbancos eu ia buscar a outra metade, mas os saltimbancos estão vestidos como os homens, e os homens estão vestidos como os saltimbancos, ambos estão vestidos de uma só maneira, não sei quais são os homens nem os saltimbancos, eles também não o sabem, - não há senão losangos de arlequim!
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Mãe!
Quando eu vinha para casa a multidão ia na outra direcção. Tive de me fazer ainda mais pequeno e escorregadio, para não ir na onda.
Perguntei para onde iam tão unidos, assim, com tanto balanço. Responderam-me: Para diante! para a frente!
Iam para diante! iam para a frente!
Fiquei a pensar na multidão.
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O meu anjo de guarda disse-me: Pronto! A multidão já passou, levou um quarto de hora a passar. A multidão não é senão aquilo que levou um quarto de hora a passar. Pronto! Já está vista! anda daí!
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O meu anjo da guarda está sempre a dizer-me: De que estás à espera? Vá, anda! Começa já! Começa já a cuidar da tua presença!
Não sei o que o meu anjo da guarda quer que eu adivinhe em tais palavras.
Outras vezes, o meu anjo da guarda pede-me que seja eu o anjo da guarda dele.
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Mãe!
Hoje acordei todo virado para diante. Assim, como tu compreendes, Mãe!
Vi as coisas do ar que havia, as coisas que estavam focadas como ar de hoje. As lembranças já estão inteiras, muito poucos os minutos falsos.
Fiz todas as horas do sol e as da sombra. Ao chegar a noite estive de acordo com o sol no que houve desde manhã até ser bastante a luz por hoje. Depois veio o sono. E o sono chegou a horas. Antes do sono ainda houve uma imagem - um leão a dormir!
Na verdade, não há sono mais bem ganho do que o de um leão a dormir com restos de sangue ainda no focinho, como os leões de pedra que há nas escadarias por onde se sobe depois da batalha!
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José de Almada Negreiros In " Poesia - Obras Completas Vol. 4",
Editorial Estampa, Lisboa, 1971, pp 167-168.
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16/09/09

" Fear in my mind # 7" (2008) foto de Jong Seong Park, Coreia.


Ora até que enfim... perfeitamente...
cá está ela!
Tenho a loucura exactamente na cabeça.

Meu coração estoirou como uma bomba de pataco.
E a minha cabeça teve o sobressalto pela espinha acima...

Graças a Deus que estou doido!
Que tudo quanto dei me voltou em lixo,
e, como cuspo atirado ao vento,
me dispersou pela cara livre!
Que tudo quanto fui se me atou aos pés,
como a serapilheira para embrulhar coisa nenhuma!
Que tudo quanto pensei me faz cócegas na garganta
e me quer fazer vomitar sem eu ter comido nada!

Graças a Deus, porque, como na bebedeira,
isto é uma solução.
Arre, encontrei uma solução, e foi preciso estômago!
Encontrei uma verdade, senti-a com os intestinos!

Poesia transcendental, já a fiz também!
Grandes raptos líricos, também já por cá passaram!
A organização de poemas relativos à vastidão de cada assunto resolvido em vários -
também não é novidade.
Tenho vontade de vomitar, e de me vomitar a mim...
Tenho uma náusea que, se pudesse comer o universo para o despejar na pia, comia-o.
Com esforço, mas era para bom fim.
Ao menos era para um fim.
E assim como sou não tenho nem fim nem vida.

Fernando Pessoa/ Álvaro de Campos In "Poesias - Obras Completas de
Fernando Pessoa, Vol. II", Edições Ática, Lisboa, 1980, pp 116 - 117.
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14/09/09


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. Esquecidos os nomes é a ti que me dirijo.
Em busca de uma memória onde enxertar
estes ramos, estas promessas por cumprir.
Vêm de um tempo em que o trovão, as leis
e a vida não ser isso se chocavam contra a
descrença e o areal escaldante. Não é
longínquo nem próximo esse tempo -
suspenso, misturam-se nele as vozes que
amo e me trazem até aqui, a este lugar
onde as imagens sobrepostas se vão
desfazendo e se vê, sobre o mar que fica,
como tudo foi roubado cedo e o naufrágio
era congénito.
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Silvina Rodrigues Lopes In "Sobretudo as vozes",
Edições Vendaval, s/c, 2004, pp 65-66.
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. Aquém do canto, o desconhecido regressou.
Chama-me lá do alto e as sílabas do meu nome
elevam-se para cair. Com a força da água, da
ausência. Ouço e escavo as palavras até serem
casas. Pelas janelas, ao longe, as chagas da
impaciência e dos dias escuros. Nada que perturbe
as falhas, o seu aprofundar-se, o equilíbrio da
rocha que absorve o tremor da gaivota.

Silvina Rodrigues Lopes In "Sobretudo as vozes",
Edições Vendaval, s/c, 2004, p 13.
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12/09/09



"Segunda Variação Sobre o Sublime"
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Temos sublime de tipo A e sublime de tipo B.
Qual deseja? - Não tem de tipo C?
Não, desse não temos. - Então dê-me
um de tipo A e outro de tipo B. Posso misturá-los?
Não é muito conveniente. - Porquê?
Porque o de tipo A, apesar de ser constituído
por substâncias amigas do de tipo B, pode,
se misturado com este, desencadear reacções adversas.
- Quais? Bem, temos conhecimento
de alguma perfídia, rancor... Por vezes
a afeição dissimulada entre ambos resulta
numa maledicência caluniosa nunca assumida.
O que dantes era genial transforma-se em bestial,
como um amor que se dissolve em ódios
de trazer a tiracolo à hora do tiro aos pratos.
Convém também esclarecer que a mistura
de sublime de tipo A com o de tipo B
pode acarretar consequências embaraçosas
para o consumidor, como sejam as de em honra
do silêncio perder-se a honra pela palavra.
Sabe como é, tudo bem quando acaba bem,
tudo mal quando nasce torto. O melhor será
manter ambos dentro de frascos hermáticos,
separados por alguns metros, à distância
de mortais quebrantos, que isto de se zangarem
comadres, ao contrário do apregoado,
nunca traz as verdades. As verdades são
sempre as de cada qual como convém a cada um.
E entre sublimes, como sabeis, não há verdades.
Só há conveniências e oportunidades,
questões de agenda e de tabela periódica.
Sabe como é. - Sei, sei. E noto que percebe
muito de sublimes. Sendo assim, o melhor será
não levar nenhum e mantê-los na prateleira.
Não tendo o de tipo C, procurarei noutro lado.
Lamento informá-lo de que está esgotado.
- Não importa. Prefiro continuar a procurar
a desenrascar-me com o que não presta.
É como diz o povo: o barato sai caro. Lá isso é.
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Henrique Fialho In " Big Ode # 7 - Sublime ", 2009, p 9.
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11/09/09

"em cima da cama da tua pele./ sublime brilho."

"A água e o céu" foto tirada por mim (Portinho da Arrábida, 2009)


II ( sexo)

exacta é a medida entre as tuas pernas e a tua boca.
calor onde nenhum amor se vem.
confundir-me no cobertor da dimensão do teu cheiro.
do teu gosto a febre
onde levantas a caixa de fósforos vazia.
em cima da cama da tua pele.
sublime brilho.

Maria Quintans In "Big Ode # 7 - Sublime ", 2009, p 75.
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"Poema em Azul"
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As expectativas são azuis
como o horizonte depois de cada colina.
Têm cor intensa,
existe um dia na sua origem.
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Não são a compensação da noite,
quando nada mais é possível.
Partilham o fundo da provação,
a altura da vertigem.
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Dizem que estamos na penumbra,
ausentes de nós, privados de tudo;
mas, se a claridade não é verdadeira,
por que os nossos sonhos são azuis?
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Joel Henriques In "Revista de Poesia Saudade Nº 11", 2009, p 38.
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10/09/09

"à medida que lês/ estas palavras adquirem/ existência..."


" Nude # 6 " foto de Maurice Pitre, Quebec - Canadá (2005).
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diseuse? é para ti que falo.
imagino-te como uma voz
feminina, macia e doce,
impregnada do mistério das
mães. à medida que lês,
estas palavras adquirem
existência e depois voltam-se
a calar. fico envergonhado:
sei que não consigo estar
à tua altura. há também
a tua boca, diseuse: pinto-a
como uma ave a pôr asas
em tudo o que toca.
é neste momento que deves dar
a entender que caí nestas folhas
à procura de não sei quê
e que depois me debato,
neste lado, para estar ao pé
de ti, como um dos melhores
amigos da alegria. quando
estiveres a ler o texto seguinte
ficarei sentado, numa das mesas
defronte, a ouvir-te,
entretendo nas mãos uma
pequena chávena de café.
é preciso dar lugar à vida.
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Rui Tinoco In "Big Ode # 7 - Sublime ", 2009, p 95.
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09/09/09

"regresso/ aqui à procura de palavras/ desconformes."

"Feast " (Alemanha, 2006), foto de David Lykes Keenan (Austin, Texas)


quando termino um verso
fico imediatamente sentado
na cadeira do leitor... por favor,
arranjem-me um lugar...
obrigado. ponho-me à-vontade.
sigo com interesse
várias histórias na grande
televisão da vida. regresso
aqui à procura de palavras
desconformes. fosse possível
corrigir assim as existências.

Rui Tinoco In "Revista Big Ode # 7 Sublime", 2009.
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08/09/09

"e disputam a amizade como um jovem lobo que aprende/ a caçar"

" amigos de longa data do dia que não acaba"

quero os amigos que tenho na cabeça
os que tenho em mente nunca conhecer pessoalmente

e não vão ter defeitos os meus amigos de nunca
mais

os meus amigos são Simão que vende seguros e por isso
usa óculos só para os poder partir

são Jaime que tem um snack-bar que dá prejuízo

são Abu que é indiano e que está na minha cabeça só
para provar que sou multicultural e tirando isso o
Abu cala-se o Abu canha-se

e são eles aqueles que eu gostava de levar para a cova
para os apresentar à Nossa Senhora

e são eles aqueles com quem jogo cartas sem me
preocupar com a morada certa

e desabafo com eles como quem tem falta de ar
e converso com eles nos intervalos das discussões
que o resto do tempo fica para discutir quem é mais
meu amigo
amigo meu mais
meu mais amigo

e fazem concursos para ver quem me lava melhor os
pés
quem me coça melhor as costas
quem me dá o abraço mais apertado e sexual sem
chegar ao ponto do desconforto de ter vontade de o
beijar

e tenho tantas saudades deles
inventei as saudades que lhes tinha e pedi que chorassem
muito

e eles choraram o dobro de muito que é para cima de
um lago onde vamos nadar os quatro

o choro deles quando se juntam é do tamanho
da água de que precisa o veleiro de onde partimos à
aventura

e ao partir a aventura dividi-a pelos três
e agora estão ciumentos porque não dá conta certa
e disputam a amizade como um jovem lobo que aprende
a caçar

e eu dou-me todo por não ter a quem mais dar
e converso-lhes as palavras todas porque eles não
existem

e digo-me os elogios todos porque eles não me podem
ver

e canto-me as canções mais doces porque voz não
sabeis
não sabes
não estás cá
não estão cá
antes estivessem
se cá estivessem era melhor
não estando tenho de me contentar com os homens e
mulheres que estão ao meu lado e que eu não inventei

e cada vez tenho mais saudades deles
procuro alguém parecido mas não encontro

e quando encontro não gosto porque me apaixono pelas
pessoas que são o contrário do que a minha imaginação
prefere

e o Jaime o Simão e o Abu levaram a mal e foram
passar férias para acabeça de outra pessoa e nem um
recado deixaram

e se calhar não voltam
e se calhar não quero
e a cabeça já não tem inquilinos
e os que há estão à minha volta
mesmo à minha volta
mesmo de verdade
com caras que não me são familiares e personalidades
defeituosas que eu julgo como quem beija

a cabeça levo-a leve mas o coração bate mais forte
mais pesado
pudera tem gente lá dentro

João Negreiros In "Luto Lento", Ed. Projecto Literatura em Movimento,
(http://www.oletras.com/), s/c, 2008, pp 57 - 59.
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06/09/09

"O/ desprendimento é o único/ elo."


De que vale tudo recordar,
se nada sei esquecer? O
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desprendimento é o único
elo. Deixar o rio seguir
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o seu curso e todo o fluxo
que depois vier sempre será
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água nova. Essa vela fugaz
enquanto acesa e perene
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quando apagada. Levar para
dentro do desejo, a árvore
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e sua colheita. Levar para
dentro da árvore, como uma
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vela num quarto, o desejo aceito.
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Maria Carpi In "Desiderium Desideravi", Ed. Movimento,
Porto Alegre, 1991, p 70.
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05/09/09

"Posso, minúscula, adormecer/ na ventania."


Posso, minúscula, adormecer
na ventania. Posso, rala,
serenar-me os rios. Porém,
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quando o abandono em mim
pede trégua e a tua saliva
busca meu germe, ainda
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sou desordem, ainda engendro
distâncias. Não sei acolher-te
da errância. A não me isolar
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entre pedras, a não me secar
entre gráficos ou jazer cinza entre
cinzas, a não revirar os olhos,
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clausuro-me em teu andamento.
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Maria Carpi In "A força de não ter força", Escrituras Editora,
São Paulo, 2003, p 51.
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04/09/09

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Lava a minha suja memória neste rio de lama.
Com a ponta da tua língua limpa-me por todos os lados.
E não deixes o mínimo vestígio de tudo quanto me prende e cansa.
Ah, caça! Persegue-a em mim, pois só em mim ela vive!
E quando a tiveres sob a alçada do teu fuzil
não escutes as suas súplicas.
Tu bem sabes que ela deve morrer - uma segunda morte.
Então, mata-a! Uma vez mais...
Chora! Também eu, antes de ti, já o fiz,
mas foi em vão.
E quão belos são os soluços inundando as almofadas!
Eu tentei, tentei mas tenho o coração seco e os olhos inchados
(tenho o coração seco e os olhos inchados...)
Então queima! Queima o momento em que te envolves no meu grande leito de gelo,
este leito que, como uma banquisa, se derrete se acaso me abraças.
Nada é mais triste. Nada é mais grave
se tenho o teu corpo como uma torrente de lava.
A minha suja memória neste rio de lama
lava! Lava a minha memória suja
neste rio de lama - Lava!

Alex Beaupain In "Les chansons d'amour" de Christophe
Honoré (tradução de Victor Oliveira Mateus).
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"Les chansons d'amour" de Christophe Honoré

Poema de Alex Beaupain por Louis Garrel

03/09/09


"Vi - Ana do Castelo "

Nesta moldura branca a cidade és tu

escrevo-te como condição e semelhança
plena sem limites ou esquinas
contigo nesta página componho a grama pulsada
pelo tempo rememorando o sol e o silêncio
que em ti grafei um dia
e persisto na claridade e na folhagem
que despontam no leito que sublima o bulício dos dias
num disperso labor ou tráfego

em ti giram o espaço o rio
as horas os séculos o tempo e a foz
é no castelo que repousas serena
rodeada pelas muralhas outrora abrigo

pouso devagar os pés entre as ameias
e avisto-te por entre sílabas esguias
desenho o teu desejo e as ruas percorrem-me
trespasso o castelo e os muros numa incandescência ocre
e desaguo junto à margem do tempo
que reflecte um presente perpétuo
e vejo nesta página o nome
que eleva a ponte das raízes

Gisela Ramos Rosa In "Viana a Várias Vozes", Ed. Câmara
Municipal de Viana do Castelo, 2009.
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"(...) Trémula, nua, desenhada/ na poeira ou no mármore do tempo ..."


"La Belleza"

Ah, quién podrá decir qué es la belleza!
Secreta en su envoltura celeste de cristal
como un reloj o un ángel debajo de un fanal
que brilla y nos otorga la dicha o la tristeza
de un modo natural.

Qué es la belleza! Trémula, desnuda y dibujada
sobre el polvo o el mármol del tiempo que sedientas
largas horas contemplan, liman, pulen atentas
como la suave piedra por los mares besada
que atraviesa tormentas.

No supo Schopenhauer definirla y fue en vano
que Platón en sus Diálogos hablara tanto de ella.
Tiembla como en el agua, que la oscuridad sella,
el reflejo perfecto de un ala o de una mano
o de una antigua estrella.

Ah, quién podrá decir de qué ansiosas sustancias
nace y en qué momento y con qué proporciones
descubrieron sus rostros con tantas perfecciones
misteriosas, fugaces, como son las fragancias
de una flor sin razones.

Silvina Ocampo In "Poèmes d'amour désespéré" (Édition bilingue - traduction Silvia
Baron Supervielle), Librairie José Corti, Paris, 1997, p 116.
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