18/09/09




                             "Confidências"


Mãe! dói-me o peito. Bati com o peito contra a estátua que tem em cima o verbo ganhar. Ainda não sei como foi. Eu ia tão contente! eu ia a pensar em ti e no verbo saber e no verbo ganhar. Estava tudo a ser tão fácil! Já estava a imaginar a tua alegria quando eu voltasse a casa com o verbo saber e o verbo ganhar, um em cada mão!
Dói-me muito o peito, Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
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Mãe!
Já não volto à cidade sem ir contigo! para a cidade ser bonita. Irmos os dois juntos de braço-dado, e andarmos assim a passear; para ver como tudo está posto na cidade por causa de ti e de mim e por causa dos outros que andam de braço-dado.
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Mãe! dize essa metade que tu sabes do que é necessário saber, dize essa metade que tu sabes tão bem! para eu pensar na outra metade..
Se não houvesse senão homens e saltimbancos eu ia buscar a outra metade, mas os saltimbancos estão vestidos como os homens, e os homens estão vestidos como os saltimbancos, ambos estão vestidos de uma só maneira, não sei quais são os homens nem os saltimbancos, eles também não o sabem, - não há senão losangos de arlequim!
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Mãe!
Quando eu vinha para casa a multidão ia na outra direcção. Tive de me fazer ainda mais pequeno e escorregadio, para não ir na onda.
Perguntei para onde iam tão unidos, assim, com tanto balanço. Responderam-me: Para diante! para a frente!
Iam para diante! iam para a frente!
Fiquei a pensar na multidão.
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O meu anjo de guarda disse-me: Pronto! A multidão já passou, levou um quarto de hora a passar. A multidão não é senão aquilo que levou um quarto de hora a passar. Pronto! Já está vista! anda daí!
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O meu anjo da guarda está sempre a dizer-me: De que estás à espera? Vá, anda! Começa já! Começa já a cuidar da tua presença!
Não sei o que o meu anjo da guarda quer que eu adivinhe em tais palavras.
Outras vezes, o meu anjo da guarda pede-me que seja eu o anjo da guarda dele.
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Mãe!
Hoje acordei todo virado para diante. Assim, como tu compreendes, Mãe!
Vi as coisas do ar que havia, as coisas que estavam focadas como ar de hoje. As lembranças já estão inteiras, muito poucos os minutos falsos.
Fiz todas as horas do sol e as da sombra. Ao chegar a noite estive de acordo com o sol no que houve desde manhã até ser bastante a luz por hoje. Depois veio o sono. E o sono chegou a horas. Antes do sono ainda houve uma imagem - um leão a dormir!
Na verdade, não há sono mais bem ganho do que o de um leão a dormir com restos de sangue ainda no focinho, como os leões de pedra que há nas escadarias por onde se sobe depois da batalha!
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José de Almada Negreiros In " Poesia - Obras Completas Vol. 4",
Editorial Estampa, Lisboa, 1971, pp 167-168.
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