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29/10/13



“Languages symbolise identities and are used
o signal identities by those who speak them”

M. Byram, 2006

A aprendizagem de uma língua é um processo, para além de cognitivo, também cultural e intrinsecamente ligado às questões de identidade e contexto social, pelo que é interessante analisar brevemente o processo de reconstrução da identidade da RAEM e da sua população após a reintegração do território na China, o seu significado e implicações na expressão que a língua portuguesa tem atualmente no território.

Num interessantíssimo e exaustivo trabalho datado de 2009, “Sovereignty at the Edge: Macau and the Question of Chineseness”, Clayton designa aquilo que aconteceu em Macau como “sort-of sovereignty”, uma espécie de soberania partilhada, única no mundo. Segundo a autora, em meados de 1990, sabendo que em breve mais de quatro séculos de domínio português estavam a chegar a um fim negociado, a administração portuguesa montou uma grande campanha para convencer os residentes de Macau, 95 por cento dos quais chineses, de que podiam reivindicar com orgulho uma identidade que os tornava diferentes de todos os outros chineses: uma identidade resultante dos 450 anos de história não de colonialismo, mas de um tipo de soberania compartilhada, ímpar no mundo moderno. Este projeto exigia uma completa transformação da imagem de Macau como cidade retrógrada, colonial e decadente e da imagem da administração portuguesa como potência colonial corrupta e inepta que presidiu e beneficiou dessa decadência.

Entre os residentes, as reações foram diversas. Alguns consideraram a celebração precoce do estatuto cosmopolita de Macau como uma mudança positiva, diferente da visão habitual de Macau como uma Hong Kong fracassada e de segunda categoria. Outros discordaram com a visão do Estado sobre o que era a “verdadeira” identidade de Macau, mas consideraram que valia a pena questionar o que tornava Macau diferente da restante China. Muitos outros ainda rejeitaram este projeto de “identidade” como uma ficção patética de uma administração colonial moralmente falida.

Por seu turno, Kaeding, investigador da Universidade de Surrey, refere que os dados de um estudo que efetuou mostram que a maioria da população de Macau se identifica etno-culturalmente como chinesa e que a identificação cultural com a China continental é grande, embora seja comummente defendido que a identidade singular de Macau resulta da influência dos quatro séculos de domínio português. Para o autor, “the Portuguese influence on the city’s collective identity in general is largely restricted to the material culture and its architectonical heritage.”

No entanto, a tentativa de convencer os residentes de Macau de que eram diferentes de todos os outros chineses, devido à sua experiência de uma administração estrangeira não colonial, levantou questões prementes: o que era a “soberania”, tal que o passado de Macau podia ser interpretado como não colonial; o que era “chineseness”, em que é que os chineses de Macau eram diferentes, e de intersecção entre elas.

Clayton avança que a resposta a estas perguntas, promovida em museus e publicações patrocinados pelo governo português, definia soberania em termos de supremacia militar, política, económica e cultural. De acordo com esta versão, os portugueses não teriam sido colonizadores porque nunca a tinham detido. Não tinham usado a força para retirar o controlo de Macau aos Ming; a instalação portuguesa fora resultado da negociação e do compromisso. Durante 300 anos, tinham pago o aluguer do terreno às autoridades chinesas em troca da autorização para permanecer na Península de Macau; quando solicitados, forneceram valiosa ajuda militar aos governos Ming e Qing; os seus representantes tinham realizado o kowtow[1] ao imperador e aceitado títulos, um indicador de que tinham sido incorporados na burocracia imperial de Pequim. Durante 300 anos, tinham-se governado apenas a si mesmos, dentro dos muros da cidade, reconhecendo a sua dependência total perante o imperador mesmo para as necessidades mais básicas, como água e comida. De fato, em várias ocasiões, ao primeiro sinal de truculência portuguesa, as autoridades chinesas tinham ordenado a todos os seus súbditos para evacuar a cidade, obrigando os portugueses a submeterem-se pela fome.

Esta argumentação prossegue, defendendo que tal não significa que os portugueses tenham sido meros vassalos do império chinês; a coroa portuguesa agiu como governante supremo do território muitas vezes. Em 1586, por exemplo, o vice-rei de Goa, agindo na suposição de que ele, e não o imperador Ming, tinha jurisdição sobre Macau, elevou o seu estatuto administrativo de povoação a cidade. Em 1846, Lisboa mandou o governador Ferreira do Amaral declarar unilateralmente soberania formal de Portugal em todo o território, recusando-se a reconhecer a autoridade de qualquer oficial de Qing dentro das fronteiras de Macau, e reivindicando a jurisdição sobre a terra e as pessoas (tanto chinesas como portuguesas) muito além dos muros da cidade existente. Em 1887, os oficiais Qing tinham assinado o Tratado de Comércio e Amizade, que reconheceu "a perpétua ocupação e governo de Macau e suas dependências por Portugal". Mas mesmo assim, continua o argumento, quando a reivindicação formal de soberania sobre Macau foi aparentemente reconhecida pelo direito internacional, os portugueses nunca impuseram a sua língua, religião, ideologias políticas ou padrões educacionais ao povo chinês sob a sua administração. Assim, a história da presença portuguesa em Macau foi apresentada como uma soberania partilhada, uma “espécie de soberania”, em que a resposta para a pergunta "quem manda aqui?" foi inteiramente contextual e muitas vezes deliberadamente ambígua.

Tanto esta narrativa histórica como esta concepção da natureza do Estado português não permaneceram incontestadas durante a época de transição. Alguns residentes de Macau definiram colonialismo mais de acordo com o senso comum, simplesmente como qualquer ocupação estrangeira do solo chinês. Apontaram a estrutura do sistema político da cidade, que consistentemente beneficiou os portugueses e os falantes de português, para argumentar que toda a história da presença portuguesa tinha sido de natureza colonial.

Alguns estudiosos sugerem que o período “colonial” tenha começado apenas com a chegada de Ferreira do Amaral, em 1846, quando, influenciado pelo exemplo dos britânicos em Hong Kong, Portugal insistiu que a existência de uma povoação portuguesa autónoma em solo chinês era a evidência da soberania de facto sobre o território. Outros sugeriram que, independentemente da data do seu início, o período colonial terminou em 1966, quando manifestações e boicotes de inspiração maoísta forçaram a administração portuguesa a aceitar uma série de exigências que fizeram de Macau uma zona “semi-libertada”.

Mas houve um debate mais intenso sobre a questão de como o passado de Macau configurou o sentido de “chineseness” dos residentes de Macau. Na narrativa do governo, a “espécie de soberania” tinha feito dos residentes de Macau uma “espécie de chineses” – “chineses latinos”, como lhes chama Roderich Ptak. Essa transculturação evidenciou-se na arquitetura, na cozinha híbrida e no caráter mais tolerante e descontraído da cidade. Durante a época da transição, a pequena comunidade de Macau de moradores etnicamente mistos, conhecida como macaense, tornou-se o símbolo por excelência desse hibridismo: em termos fenotípicos, linguísticos, culinários, religiosos e genéticos, eles eram a expressão máxima do espírito de troca pacífica e generativa entre diversos povos que a administração portuguesa tentou reclamar como legado seu.

A Professora Wai-man Lam, da Universidade de Hong Kong, refere que em contextos pós-coloniais a identidade é uma arena de competição política onde vários discursos que encarnam reapropriação das tradições políticas e legados se cruzam. Na RAEM, a identidade do pós-handover compreende as componentes locais, nacionais e internacionais, com Macau caracterizada como um objeto colonial/cultural/histórico e económico híbrido. Para a autora, a identidade de Macau após 1999 é uma reapropriação da imagem da Macau colonial propagada pela administração portuguesa desde a década de 1980.

Com efeito, em 2011, o presidente do Instituto Cultural de Macau, Guilherme Ung Vai Meng, salientava em conferência de imprensa a propósito da promoção de um mega desfile cultural por ocasião das comemorações do 12o aniversário da RAEM que Macau era “uma cidade de cultura aberta”, “que apresenta uma mestiçagem de características ocidentais e orientais”, patentes “nas construções, gastronomia, hábitos locais, línguas e religião”[2].

A construção da identidade pós-handover alicerçou-se num processo de incorporação e não de repressão ou eliminação do “outro” – a construção de uma identidade nacional autónoma não tem sido a principal tarefa na reconstrução dessa identidade. Em vez disso, várias componentes identitárias foram deliberadamente promovidas e integradas. O sucesso do processo garantiu o relativamente suave reingresso na China e reforçou a legitimidade do novo governo da RAEM.

(a autora escreve segundo o novo acordo ortográfico)

*Investigadora da Universidade Aberta


  Dias, Ana Paula. Macau e as Fronteiras da Identidade. Macau, 2013.
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31/01/10

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                            "Made in China: um instântaneo de Macau"


Talvez primeiro seja o calor. Para quem gosta dele. Envolve-nos mal pomos o pé fora do jetfoil, como um abraço confortável e húmido que se cola à pele. É um calor denso e pesado, que não dá tréguas, que entra na respiração a parece conseguir chegar até à alma. Claro que há quem não o suporte. Comigo foi o reencontro com uma sensação perseguida, entrevista, de outras terras e lugares com os quais o primeiro embate é físico e só depois racional.
A seguir talvez seja o movimento incessante, qualquer coisa que pulsa duma vitalidade colorida, simultaneamente berrante, suja, kitsch e harmoniosa. Os milhares de néones, a desordem barroca do inexistente ordenamento territorial, os prédios e lojas encavalitados, as ruas labirínticas. As ruas por detrás das ruas principais a levar-nos de imediato para um território obscuro, mais silencioso, mais cinzento. Os rostos inexpressivos, as pessoas que passam por nós lado a lado nem curiosas, nem hostis, que apenas parecem não nos ver. Deambula-se facilmente por esta cidade com essa sensação de estar noutra dimensão, paralela e, como tal, impenetrável. E talvez esse seja o segundo trunfo de Macau - a liberdade de pisar um chão ao mesmo tempo familiar e estranho. Porque a sensação é de familiaridade, não haja equívocos. A calçada portuguesa, da qual só nos apercebemos ao fim de algum tempo, de tão próxima, a toponímia feita de palavras conhecidas e por vezes um pouco deslocadas, como se tivessem deslizado de outro tempo e chegado até aqui ao século vinte e um como ecos dessa errância histórica de centenas de anos que nos está nos genes. Palavras que escorregaram e se instalaram à sua maneira ingénua, desconcertante, arcaica nas tabuletas, nos anúncios, mesmo nos serviços públicos, nos domínios institucionais. Palavras portuguesas.
Talvez ainda sejam os portugueses que aqui vivem, portugueses ilhéus duma pátria idealizada ou mítica. Portugueses que falam em eles e em nós e que não são uma coisa nem outra, conformados à geografia da terra, parecidos com as tais palavras extemporâneas que povoam as ruas. Que comem em restaurantes portuguesíssimos com bandeiras do sporting ou do benfica e ao fim de vinte anos de permanência continuam a detestar a comida local que nunca provaram. Mais uma vez, surpreendentes na sua generosidade, por vezes manhosa, interesseira, mas que está lá. Que fazem questão de acolher, "ensinar" quem chega, avisar sobre as perfídias da terra. Portugueses que dificilmente voltarão a viver em Portugal, que dificilmente serão felizes noutro local, que usam o verbo ir e raramente o verbo voltar.
Podem ser os souvenirs locais, os muito típicos galos de Barcelos e os pastéis de nata egg tarts que constam serem péssimos. O cheiro doce e intenso em algumas ruas, um cheiro indecifrável a coco, os numerosos vãos de escada onde se vendem espetadas com pedaços de comida que oscila à vista entre o vegetal e o animal, tudo cozido no mesmo caldo espesso e intenso. De novo a tentação, a hesitação entre a repulsa e a prova. As pessoas a comerem na rua a toda hora, o exotismo hábil dos pauzinhos, a delicadeza de alguns sabores, a beleza de algumas composições gastronómicas. O luxo dos muitos restaurantes, o típico das barraquinhas de rua.
Ou a luz. A luz que não é luminosa a maior parte das vezes. Baça. Baixa. Uma luz sem horizonte, sem espaço. Qua às vezes pesa, que às vezes oprime amarelamente o peito. Dizem que chega a haver quarenta e cinco dias seguidos sem sol, só este contínuo manto nevoento que às tantas parece um sonho onde tudo flui fantasmagoricamente, silenciosamente e o coração começa a bater mais devagar, como nos contos de fadas em que o tempo se suspende na imobilidade do presente.
Podia ser um caso de amor. Mas Macau é também a proliferação ad nauseam das coisas acessíveis. Coisas. Objectos. Novidades. Brinquedos. Coisas que se coleccionam compulsivamente, que se adquirem, todos os dias, continuamente - porque são acessíveis. Porque são novidade. Que não se usam? Que não se desfrutam? Que não nos fazem falta? Que se têm para estarem à mão, para sabermos que estão ali quando as quisermos? Que se vão juntando até já não sabermos quais, quem, como são, qual a sua individualidade, porque nos aproximamos delas um primeiro lugar? São as compras e o consumo, é a evidência do que fizeram os economistas, os jornais ou as notícias sobre a liderança económica da China no cenário mundial. O que não deixa de ser irónico se pensarmos que o país se chama República Popular da China e tem um regime comunista. Esta insaciedade é histórica, sociológica ou é estrutural, o mundo a caminho de lado nenhum? Talvez Macau seja uma alegoria ou uma metáfora. É de certeza. Vai-se a gongbei, passa-se para a China como se diz por cá e compram-se todos os livros, todos os dvd's, todas as malas, sapatos, relógios, telemóveis de todas as marcas de todos os últimos modelos em todas as cores e tamanhos. Made in China. Igualzinho ao original, se é que o original existe. Volta-se carregado. Volta-se mais vazio?
Macau é uma casca. Penso que é preciso muito tempo para saber o que lá está dentro. Podia ser um caso de amor. Mas o amor deve ter uma profundidade mais profunda que a dos aterros, que a da terra que foi roubada ao rio e sobre a qual se construiu o admirável mundo novo dos casinos - deslumbrantes, imensos, impactantes, mas assentes num chão que não existe.
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Macau, 23 de Janeiro de 2010.
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Ana Paula Dias (Inédito)
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