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03/01/14

 
 
 
   Tinhas partido e era eu que ficava em casa, à tua espera. Como Penélope, era eu que te esperava, que mantinha a esperança. Contra o mais elementar senso comum.
   Mas um dia, ao contrário dela, deixei de esperar. Percebi que não voltarias, que ninguém volta, que o regresso não é possível: nunca ninguém se banha duas vezes na mesma água de um rio.
   Percebi que a minha fidelidade era louca, que a vida me passava ao lado. O universo estava em movimento e também eu comecei a mover-me.
(...) Percebi que, se voltasses, eu ficaria sentado à tua frente em silêncio e não poderia comunicar contigo: haveria entre nós a barreira do tempo.
   Porque não é possível alguém voltar ao leito conjugal e fazer amor, contar o que sucedeu durante os anos de ausência, enquanto uma deusa faz com que a noite se prolongue e o dia tarde a nascer para termos tempo de contar o tempo intermédio e tudo voltar a ser como era, desde o momento em que foi interrompido.
   Nada disso era possível, a não ser numa história mal contada.
   Tínhamos saído da vida um do outro, cada um tinha agora a sua.
   Então assumi que não irias voltar.
   Um dia acordei com essa certeza: nunca irias voltar.
   E Lisboa desapareceu contigo.
 
 
   Gersão, Teolinda. A Cidade de Ulisses. Porto: Sextante Editora, 2011, pp 152 - 153.
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   A tua visão podia ser também assim: pragmática. Ou, segundo dizias, realista e útil.
   No entanto não conseguias ser de facto realista. O amor, enquanto durava, transformava tudo.
   E nada tínhamos a ver com turistas. Éramos diferentes. Viajantes.
   Os turistas vão à procura de lugares para fugirem de si próprios, da rotina, do stress, da infelicidade, do tédio, da velhice, da morte. Vêem os lugares onde chegam apenas de relance e não ficam a conhecer nenhum, porque logo os trocam por outros e fogem para mais longe. Os viajantes vão à procura de si, noutros lugares. Que ficam a conhecer profundamente porque nenhum esforço lhes parece demasiado e nenhum passo excessivo, tão grande é o desejo de se encontrarem.
   As agências de viagens e os turistas só se interessam, obviamente, pelas cidades reais. Os viajantes preferem as cidades imaginadas. Com sorte, conseguem encontrá-las. Ao menos uma vez na vida.
   Penso que uma vez na vida a sorte esteve do nosso lado e encontrámos a cidade que procurávamos. A Cidade de Ulisses.
 
 
   Gersão, Teolinda. A Cidade de Ulisses. Porto: Sextante Editora, 2011, p 31.
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