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17/01/12

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Teseu:

Dizeis...? Tudo está bem.
Voltou o meu sossego. De onde escapei,
lá estava Minotauro e labirinto.
Mas eu matei-o!
E ele, em morte, fugiu,
para sítio lodoso e muito informe.
E vós sois minha, como sempre fostes.

Ariadne (Aparte):

Porém, não só de vós, mas também dele.
(...)
As falas de Teseu sinto-as em nada
se as peso ao lado destas
que invento em Caliban.
(...)

(Dirige-se a Teseu):

De vós serei?
Eu sou de sobras tantas, meu senhor,
e tenho-me bastado
encostada à ideia de não ser,
de ter-vos só defronte a coisas tais
que ter-vos já de coisa feita era.
Mas seja assim:
De vós aqui me tendes -

Teseu:

Como divagam as mulheres!
Vós divagais.
(...)

Ariadne:

Como consigo ouvi-lo e nada me doer?
A Teseu ouço, mas não escuto nada.
E ainda tenho escondidas neste bolso
as jardas que sobraram do meu fio.
(...)
Dizei-me, Mãe, que usaste também fios
e mais do que eu sabeis.
O que farei com elas,
as jardas que sobraram do meu fio?

Penélope:

Eu, sobre o bastidor
bordei o fio da espera,
e perdi o olhar ao longo de navios
e horizontes.

Esse que amei foi meu,
voltou, mesmo ensombrado por sereias,
iluminado pela luz das ondas.
E foi tão longa a espera,
tremiam tantas noites os meus olhos,
e eu temia por ele.
Esperar - que ofício outro?

Era forte o meu fio, possante e longo,
capaz de ser depois desembrulhado,
desfeito e relançado novamente.

Não te sei responder:
o que farás com elas, as jardas
que sobraram do teu fio?
Só tu o saberás dentro de ti.

Mas sabe, minha filha, do risco que é amar:
Morte e amor: vizinhos tantas vezes,
tantas vezes amantes.
E a vida é o assombro que assombra
e amedronta.

Não te sei responder. Mas tem cautela,
que é o teu fio mais fino,
mais frágil, transparente.
O meu atravessava mares e continentes,
e ele queria voltar,
e eu queria que voltasse.
Esperar - que ofício outro me restava?
Mas eu amava aquele e mais nenhum

E tu, não sei...

  Ana Luísa Amaral in " Próspero Morreu ( Poema em Acto) ", Editorial Caminho,
Alfragide, 2011, pp 22 - 26.
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12/12/09

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"Disposições ( em sílaba qualquer)"

Faço rimar o sol quando quiser,
e desenho bigodes nesta fotografia de jornal,
decoro-a de cabelo
e um ar adolescente

Quando eu quiser,
o ar encher-se-á de gente imaginada
dançando para mim,
e a fotografia há-de saltar
a meio de um arabesco
ou de uma rima

Assim: gesto de Salomé,
os véus tombados,
a cabela inclinada em direcção ao rei,
que rimará com lei (a que desobedeço),
ou com as regras todas
que eu quiser

Sem lei os criarei,
motores obedientes do meu espaço

E a fotografia há-de sorrir,
o rei dirá "eu faço, porque faço",
e Salomé há-de dizer
"eu danço, em troca de"

Gostava, já agora, de te
fazer rimar aqui, quando quisesse,
agora, por exemplo,
ou numa hora. Ou já

Como não posso, rimo o sol
com tudo - a ti, sei lá
com quê -

Ana Luísa Amaral In "Se fosse um intervalo", Publicações D. Quixote, Lisboa,
2009, pp 69 - 70.
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09/12/09

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"As raízes do voo"

São as cores?
Ou declarar-me assim a esta árvore?
Num sobressalto, desassossego
lento - as colmeias de ramos e de folhas,
o corpo em curvas densas,
as raízes,
e, delicadamente, o coração

Apaixonar-me e outra vez,
agora por um tempo de nervura
acesa, o fogo - e sem palavra que chegasse
para habitar o mundo:
são as cores, dir-lhe-ia,
ou os meus olhos?

E se faltar olhar, ouvido, cheiro, mãos,
ver-te sem ver, sentir-te sem sentir:
neste musgo e por dentro
poder perder-me, fingir-me distraída
pelo puro prazer de me fingir,
sem sossego nenhum
- aprender a voar -
pelo desassossego de um dedo
preso à terra

Mas se as asas faltarem,
serão sempre as cores,
uma leve impressão de nervos, digital,
de qualquer coisa

Há-de ser isto assim:
luz para além de azul,
paz muito além do verde a respirar
- ou eu, igual ao sol,
comovendo-me em ar e
por raízes -

Ana Luísa Amaral In "Se fosse um intervalo", Publicações D. Quixote,
Lisboa, 2009, 41 - 42.
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27/04/09




"Salomé após o crime"

Quantas vezes te vi
e me surprendi porque te olhava?
Sentindo a tentação de te espiar
e o desejo de amar
o que não tinha

Como saber
pelos sonhos mais nus
que me assaltavam
que eu não era paisagem
para ti?

Dizem luxúria só
onde houve amor
e um crime tão enorme de luxúria
mas eu quis-te indefeso
como festa
os teus lábios a festa para mim

Quantas vezes me vi
pensando no meu crime
e na história dos homens
a julgar-me!

Mas o que eu li
na bandeja do crime
foram os olhos com que tu
me olhavas
(finalmente eu paisagem)

e a luxúria
que há sempre
no amor


Ana Luísa Amaral In "Às Vezes o Paraíso", Quetzal Editores,
Lisboa, 1998, pp 100-101.
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