Mostrar mensagens com a etiqueta Sophia de Mello Breyner Andresen. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Sophia de Mello Breyner Andresen. Mostrar todas as mensagens

06/05/13

 
 
Nestes últimos tempos é certo a esquerda fez erros
Caiu em desmandos confusões praticou injustiças
 
Mas que diremos da longa tenebrosa e perita
Degradação das coisas que a direita pratica?
 
Que diremos do lixo do seu luxo - de seu
Viscoso gozo da nata da vida - que diremos
De sua feroz ganância e fria possessão?
 
Que diremos de sua sábia e tácita injustiça
Que diremos de seus conluios e negócios
E do utilitário uso dos seus ócios?
 
Que diremos de suas máscaras álibis e pretextos
De suas fintas labirintos e contextos?
 
Nestes últimos tempos é certo a esquerda muita vez
Desfigurou as linhas do seu rosto
 
Mas que diremos da meticulosa eficaz expedita
Degradação da vida que a direita pratica?
 
 
     Andresen, Sophia de Mello Breyner (poema datado de 1977).
.

14/09/12



 " Musa "


Musa ensina-me o canto
Venerável e antigo
O canto para todos
Por todos entendido

Musa ensina-me o canto
O justo irmão das coisas
Incendiador da noite
E na tarde secreto

Musa ensina-me o canto
Em que eu mesma regresso
Sem demora e sem pressa
Tornada planta ou pedra

Ou tornada parede
Da casa primitiva
Ou tornada o murmúrio
Do mar que a cercava

(Eu me lembro do chão
De madeira lavada
E do seu perfume
Que me atravessava)

Musa ensina-me o canto
Onde o mar respira
Coberto de brilhos
Musa ensina-me o canto
Da janela quadrada
E do quarto branco

Que eu possa dizer como
A tarde ali tocava
Na mesa e na porta
No espelho e no copo
E como os rodeava

Pois o tempo me corta
O tempo me divide
O tempo me atravessa
E me separa viva
Do chão e da parede
Da casa primitiva

Musa ensina-me o canto
Venerável e antigo
Para prender o brilho
Dessa manhã polida

Que poisava na duna
Docemente os seus dedos
E caiava as paredes
Da casa limpa e branca

Musa ensina-me o canto
Que me corta a garganta

  Andresen, Sophia de Mello Breyner. Antologia. Lisboa: Moraes Editores, 1975, pp 173 - 174.

.

22/11/09

.
.
"Antínoo"

Sob o peso nocturno dos cabelos
Ou sob a lua diurna do teu ombro
Procurei a ordem intacta do mundo
A palavra não ouvida

Longamente sob o fogo ou sob o vidro
Procurei no teu rosto
A revelação dos deuses que não sei

Porém passaste através de mim
Como passamos através da sombra

Sophia de Mello Breyner Andresen In "Obra Poética - Vol III",
Editorial Caminho, s/c, 1999, 4ª edição, p 67.
.
.
.
.
" O Anjo"

O Anjo que em meu redor passa e me espia
E cruel me combate, nesse dia
Veio sentar-se ao lado do meu leito
E embalou-me, cantando, no seu peito.

Ele que indiferente olha e me escuta
Sofrer, ou que, feroz comigo luta,
Ele que me entrega à solidão,
Poisava a sua mão na minha mão.

E foi como se tudo se extinguisse,
Como se o mundo inteiro se calasse,
E o meu ser liberto enfim florisse,
E um perfeito silêncio me embalasse.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética Vol. I, Editorial Caminho,
s/c, 6ª edição, 2001, p 103.
.
.
.

18/01/09


"As pessoas sensíveis"


As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra

"Ganharás o pão com o suor do teu rosto"
Assim nos foi imposto
E não:
" Com o suor dos outros ganharás o pão."

Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito

Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.

Sophia de Mello Breyner Andresen In "Antologia", Moraes Editores,
Lisboa, 1975, p 195.

(Nota - este poema faz parte de "Livro Sexto", 1962).
.