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16/04/11

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e começou por ser sal. apenas. que se vai polindo no abraço como
estalos ou uivos. emudecido e túrgido. o mesmo sal que se deita à
terra para desfazer o gelo. o mesmo saber do branco sem mácula.
já não digo porcelana nem altar. não entenderias o excesso nem a
dança dos breves momentos em que a diferença é colheita e logo
lagar. não disse lago. de noite as casas são de cal e mudam de lugar.
digo agora mudam de lago. para unir o ofício de cerzir páginas e
janelas. portas e insónias. que o branco é enchente. e da ironia da
forma reflexiva digo que sou antes do profano. tu dirias do sagrado.
mas sou infecunda e múltipla. oculta e breve na instância das evi-
dências. __________________ arcanjo matinal moura e oceano.
e se fores vendaval faz-me maçã. ampara-me este sal. delito de ser
casa sem lugar.

 Isabel Mendes Ferreira in "As Lágrimas Estão Todas na Garganta do Mar",
Arcádia, Lisboa, 2010, p 392.
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14/04/11


e de entre todas as ilhas escolho a dos segredos. que é de todas a
mais indócil e porém mais amável de cuidar. amadureço ao norte o
vendaval e a sul vigio a casa branca onde o jasmim me é laço. dispo
as árvores e solto os animais. sou cativa da porta que dá para lugar
nenhum. desidealizo-nos. mais tarde virá quem nos seja perto.

já não tenho o que dizer. nem do ovo da serpente nem das asas nem
da terra muito menos do ouro nem da previsível doença do fogo.
fechei a narrativa. afinal curso e discurso feito a sós na prova do nu
e na sombra a pique. fui legente sem sinais nem folhas de pensar ou
exaltar. abri o vapor que era silêncio e timbre abismático. coração de
um dia apenas. rosário desfiado como dedos cruzados sobre uma
aresta fria. aranha sem teia e teia sem fios parto à procura dos meus
mortos. um a um que são muitos e muito devagar porque já não
tenho o que dizer.

  Isabel Mendes Ferreira in "As Lágrimas Estão Todas na Garganta do Mar", Arcádia,
Lisboa, 2010, p 387.
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14/09/10


algures por aí deve existir um deus disfarçado de deslumbre. uma força a tremer por entre ravinas e vales objectos e neves. como se imóvel na contemplação dos raios e das tempestades fosse mais que um invisível olhar sobre a luz e a sombra. algo ou alguém que nos respira e cativa como música ou água debaixo deste céu onde somos batentes de uma janela devassada.
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algures no fim dos dias alguém nos segura. seja fio de prumo ou acerto com o sol. um corpo a comandar fulgurâncias e desvelos. espelhos vagabundos a serem mais diversos que os gestos.
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e se no intervalo o eterno é raso arraso-me. faço-me um pouco mais ao dia. que alguém não me quer ainda de cinzas. como se as palavras por dizer ainda estivessem anoitecidas. ainda.
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. que assim entenda a errante subversão de uma alegria. que assim seja o corpo dilacerado de luz e espanto na curva do fogo mais puro. que assim nos falem sem feridas nem dissipação. que assim e ainda nos acrescentem
a inesquecível incandescência do luminoso. ainda existe o original momento de ser outra vez a vez do fulgor. ainda.
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Isabel Mendes Ferreira in "As Lágrimas Estão Todas na Garganta do Mar", Arcádia,
Lisboa, 2010, p 153.
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29/08/10

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há em cada pastor a influência do deslumbre do pasto. como se o
encanto fosse a flor e o rio um afluente a correr ao contrário da sede
que é sempre mais seda que o fio que nos estala.

somos de tanta água que te faço fonte para sempre. acolhe-me.
escolhe-me. resguardo-te. sem a alquimia dos milagres. com a prata
que é o meu sangue.

Isabel Mendes Ferreira in "As Lágrimas Estão Todas na Garganta do Mar,
Arcádia, Lisboa, 2010, p 30.
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29/05/09





desarrumo essa estrela que estala nos teus olhos como alma que se
assopra ao sabor da substância das águas que não sendo lágrimas são a
cal suspensa dos lábios. que sendo casa são delírios que o vento arrasa.

que não sendo corpo é a tua asa sobre um relâmpago que é a nossa chegada.

íngreme o destino do instinto das tuas pupilas, onde me desenhas um
sinal. que sendo recente é antigo. próximo da música longe das estátuas.

que te abrasam como palavras cegas... tão dolorosamento cegas.

e se é ao sul que os animais se estendem ao sol estendo-te a memória.

faz-me um nome. um só que seja. só uma sílaba. tu sabes que a morte é
um grito. sufocado e laço. nó que te desato. para que me sejas o
assombroso movimento de um bicho de seda. distância lenta na tua
pele. sempre adiante.

sempre pálpebra delicada... macio dedilhar onde te cuido a favor do
tempo... taça de espuma selvagem onde te declaro mais puro.
e se disser que te amo? como ilha convulsiva?
e se disser que me és MAIOR na orla das marés e que me invades como um
osso fino... que dirás amanhã... quando o dia te fizer carta ou
pássaro?


Isabel Mendes Ferreira In "Os dias do Amor - Um poema para cada dia
do ano" (Antologia organizada por Inês Ramos e prefaciada por Henrique
Manuel Bento Fialho), Ministério dos Livros Editores, Parede, 2009, p 300.
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03/01/09

"se o pulmão fora pétala e a rosa um campo minado
e a casa o coração da música serias tu o meu sul na volátil geografia do caminho certo. se nada
nos distraísse da miséria e das patas sobre o corpo e dos segredos irredutíveis numa página de
temperatura gelada serias o meu sentido único sobre as cinzas.

mas estamos aquém. como cidade sobre estacas ardidas. e deslizo-te.
como rio ao contrário. reacendo as artérias que te ascendem aos ombros. como matéria assisti-
da de símbolos vibráteis. serpentes e asas. peixes voadores no arvoredo dos teus lábios.
pequenos e dóceis os intervalos sucedem-se na tensa harmonia dos teus olhos de bambu.

lá fora o vento é montanha e águia. aqui sou uma prece. e prendo-te com ganchos de plátanos.
assim fora eu o pulmão da terra interior. da água mais pura que o esforço de mudar-te a foz.
é tão feroz a mão que nos escreve. o fundo.

PRESUNÇÃO DE LÁGRIMA LUMINOSA, IGNORO TODOS OS TEXTOS que não sejam de
prados movediços. pétala a pétala recupero a simetria do in.divino.
e
espero. o outro dia."

Isabel Mendes Ferreira

(Nota - agradeço à poeta Isabel Mendes Ferreira a autorização
que me deu para publicar este seu texto).
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