Mostrar mensagens com a etiqueta Rosa Alice Branco. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Rosa Alice Branco. Mostrar todas as mensagens

07/12/11

.
  " Seu a seu dono "

 
A pele espera nas coisas a carícia do uso
como o cão anseia pelo dono.
O bordo do copo, os dentes do garfo.
Usurpar os lábios entrabertos
com a alma útil e desinteressada.
Um gole de. Faz-se tarde.
O vinho faz esquecer a pele do copo.
Porque tocar ( pensa ela )
é uma confidência nocturna.
Lá fora as flores. As sebes.
O ressumar de amantes no cálice.
Toco-te com mãos alheias:
eis toda a confidência de que sou capaz.
Um vestido de seda a abrir na minha perna:
um osso para te fazer correr:
um ganido de amor à porta do prédio.

  Rosa Alice Branco in " Gado do Senhor ", &etc., Lisboa, 2011, p 38.
.



06/12/11

.
  " Prova de existência da alma "


Deixaste a ressurreição a meio.
Não me lembro de nada tão incompleto como ela.
O meu director fala de objectivos, fazemos mapas
e somos despedidos se. Ou temos prémios
e corrupção. Haja alguma arte em tudo isto.
Senhor, o teu corpo está seco na gaveta.
Estás no meio de nós coberto de bolor.
Nas palavras de São Paulo a criação teve parto e dores
em relação. Um prelúdio, sabemos hoje, prelúdio
sem mais nada. Os animais não aspiram à eternidade.
Nisto devia consistir a alma que lhes foi negada.
Por menos despediria eu um empregado.
O meu cão brinca a que eu sou o cão dele.
Atira-me um osso e corro atrás, todos corremos atrás.
Mas é assim que se sobe na vida porque aspiramos.
Prova provada de que temos alma.

  Rosa Alice Branco in " Gado do Senhor ", &etc, Lisboa, 2011, p 33.
.

04/08/09




"Condomínio Fechado"


Ficou o cedro enorme, disseste, o que guarda
os nossos afectos e as conversas avulsas dos outros:
o lugar de todas as passagens é agora o centro
do vazio que sobe das raízes até ao horizonte
se houvesse horizonte, ao menos um pouco de ar.
O cedro e os segredos antes de corrermos para o forte,
de combinarmos as guerras maninho,
de sabermos que tudo ia ruir, menos o cedro, dizes.
Que adiantaram as nossas vitórias? As derrotas dos outros
deixaram-nos a memória ruidosa de um cedro, o ouvido
disperso pelas folhas e o silêncio magoado a toda à volta.
Combinávamos a vida, o alvoroço da folhagem.
Agora o telefone toca por engano - não mora aqui ninguém
com esse nome, todos moramos num ecrã de televisão
com vista para o mar. Eu só lembro o tufão que te arrancou:
nós torciamos o bibe com mãos nervosas e as mãos
dos homens refaziam os alicerces agasalhando-te
na terra fértil. Cheirava a estrume e nós sabíamos
que a vida voltava - na folhagem luziam os afectos
que limpam o tempo depois da tempestade. Guardião
do templo, para quem guardas as nossas vozes
se nós mesmos perdemos os ouvidos e as mensagens
não chegam até nós? Pelo sim, pelo não
maninho, deixa ligado o telemóvel.

Rosa Alice Branco In "Da Alma e dos Espíritos Animais", Campo das Letras Ed.,
Porto, 2001, pp 37-38.
.
.
.