30/11/11

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(...)
Em frente,
a igreja parecia de uma brancura nova,
imaculada.
Os ciprestes eram como longos braços erguidos.
Numa única lápide, li um epitáfio com duas rosas.
Um cão ladrou e, como uma dor que se reabrisse,
lembrei-me de ti,
e deixei que voltassem a correr as lágrimas.
Estava só,
estaria sempre só.
O peso do mundo era irremediável.
Por mais que quisesse não podia esquecer-te,
não podia esquecer nada.
Matei o dragão, disseram-me, e ao matá-lo, matei as
minhas tardes de pólen.
Arrefeci tremendamente.
Uma corrente gélida varreu as serras.
As uvas eram amargas.
Não foi isto o que pedi, ao desembocar no túnel,
à entrada da aldeia.
Pedi,
com desmesurada fé,
que nunca partissem aqueles que em mim me
habitavam,
antes de o bolor revestir as paredes,
caíadas por fora.
Pedi que estivesses aqui,
sabendo que nunca mais te sentarias comigo,
junto ao limoeiro,
a ladrar aos frutos que caíam,
depois da geada.
...  ...  ...  ...  ...  ...

 José Agostinho Baptista in " Caminharei pelo Vale da Sombra ", Assírio & Alvim,
Lisboa, 2011, pp 110 - 112.
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28/11/11

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(...)
Escurece,
neste pequeno porto de onde não partirei,
para que a minha vida seja a tua âncora,
quando me procuras.
Quando me procuras, é como acender os candelabros
de prata,
é como dizer-te, sem receio,
embora vacilante,
eu farei o teu abrigo dos abrigos que não tive,
eu serei a árvore,
de cujos ramos, tão saudosos, partem as aves
migratórias.
E se emudecer,
serei como ela,
a que me embalava docemente,
numa paisagem inerte,
apta ao vislumbre das corolas decepadas por uma faca,
oculta nas rendas.
Se te vejo,
vénus estremece no seu terraço com lilases de seda,
convoca-te o oráculo,
enleia-te a serpente, prende-te o amor que renova a seiva
no entardecer da espiga.
Seara fui,
e fui grão e leveza e espessura.
Quem sou hoje, pergunto às estações sucessivas.
Contenho-me.
Conténs-me e guardas-me nos teus lábios semicerrados,
calados, receosos da palavra poderosa,
do poder das sombras que atravessam o vale e têm
pressa de chegar à cruz de onde descerei um dia,
sim,
porque eu sou a carruagem lunar das tuas idas e vindas.
...  ...  ...  ...  ...  ...

  José Agostinho Baptista in " Caminharei Pelo Vale da Sombra ", Assírio & Alvim,
Lisboa, 2011, pp 46 - 48.
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27/11/11

"(...) e louvando retenho o entardecer na lonjura exausta das marés... "

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 " Poema I do Ciclo A Condição do Olhar "

Do que disse um dia me perco agora em redes
de espuma lisa, espera branda de sinal azul de
embaciadas finas recordações de maior dádiva,
esse uso directo. Recortas o aparato redondo da
noite inflexionada em puro reverter, branca aurora
marinha. E a senha. A notação da dor no imponde-
rável acontecer do risco, o traço carregado da pre-
sença, tutela abandonada. Ficada assim na textura
de uma longa toalha branca, suspenso palpitar da
insidiosa hesitação correcta, ó fontes do recurso
deplorável. Em aras deponho pois amável o dis-
curso em tom de fina aceitação e louvando retenho
o entardecer na lonjura exausta das marés, vibra-
ção quente. Se repartes o medo por essa incerteza
do limite, repousado rodeio do movimento, é teu o
verso na mágoa incandescente da manhã, eixo con-
taminado da planície à origem dos meios, ervas
doidas, no solto incandescer do tempo recuado.
Assim os metais se empolgam e impelem o lento
recorrer dos idos na lava dos caminhos. E só os
olhos, latentes, reconhecem.

  Maria Alzira Seixo in " Letra da Terra ", Modo de Ler Editores, Porto, 1983, p 83.
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26/11/11

"(...) Renascem os cabelos/ que o mar noutras paragens destruiu. "

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 " Poema VI - Nave do Ciclo A Catedral "

É cedo ainda. Renascem os cabelos
que o mar noutras paragens destruiu.
Desconheces o poder dos ventos do sul,
as lagoas brandas da meia-luz trémula, ó pescadores.
A ciência que temos é aliás prefixa.
Que sabes da tenra usura que desenvolve o tempo?
Rosa trémula
Os laços marginais, os escolhos pendentes,
a quebra interminável, doentes de minha mágoa.
Há um abismo no prolongamento das manhãs
que percorremos juntos. A falha é ainda
a simulação do berço,
lajes soltas.

 Maria Alzira Seixo in " Letra da Terra ", Modo de Ler Editores, Porto, 1983, p 68.
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25/11/11

" Do irremediável aprendi a tranquilidade. E que a pertença é rigorosamente a grande forma de separação. "

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 " Despedidas de Verão "

Vou sem pensar na bruma fria, toque ansioso
dos momentos comuns, e de seus prolongamentos,
os sulcos mais fortes da imaginada cálida força.
Relembro as datas, essas longas noites de vigília
que bani. Os vestidos negros ou roxos, o lindo
rosto de voz tranquila. Sem tradução de palavra
gasta me aparece, solidão imposta da quieta
noite do outro. Não espero, porque estudei todas
as ficções e vejo em todo o processo narrativo
o momento poético do mais forte ódio ou daquele
encontro que sempre vem, beneplácito acontecer.
Assim te digo que nada é possível a não ser a
forte presença do olhar, que se foge me esqueço.
Do irremediável aprendi a tranquilidade. E que a
pertença é rigorosamente a grande forma de
separação. Aprendo então os signos da desgraça,
essa malévola intendência do bem-querer afixado.
E contemplo da janela os idos sem complacência
nem pena imerecida. Disto te dou conta para te
mostrar a forte eternidade de cada um.

 Maria Alzira Seixo in " Letra da Terra ", Modo de Ler Editores, Porto, 1983, p 36.
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24/11/11

Inseguranças, vulnerabilidades e comportamentos obsessivos.

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" As técnicas do controlo do corte dos pensamentos (negativos) e do confronto com a realidade "

Começámos a analisar os seus pensamentos. Sandra era uma máquina de fabricar pensamentos negativos e, como temíamos, há anos que o fazia: considerava-se a pior das filhas, a pessoa menos preparada no trabalho, a rapariga mais gorda e feia do seu meio, a menos simpática... e, claro, nada de isto era objectivo.
Quando parecia que avançávamos um pouco, voltava na semana seguinte com novas dúvidas e novos pensamentos negativos. Tivemos de fazer uma paragem no caminho, assinar uma "trégua" e chegar à conclusão de que, nesses momentos, era incapaz de racionalizar dez minutos sem começar a censurar-se por algo; nessas circuntâncias deixámos de trabalhar o "confronto" dos seus diálogos internos e pusemos toda a energia em "parar" e "cortar" os seus pensamentos negativos, que eram a maioria.
É um trabalho pesado e pouco gratificante ao princípio, mas Sandra começou a sentir-se livre quando viu que, ao menos, podia "cortar" com bastante rapidez esses pensamentos que tanto a angustiavam, e além disso, podia fazê-lo tantas vezes quantas eles lhe surgiam. Aprendeu a deixar de ter medo dos próprios pensamentos. Posteriormente, quando já era capaz de cortar esses diálogos internos que tanto a martirizavam, voltámos a tentar que começasse a "racionalizar" os seus pensamentos. Então tivemos mais êxito, ainda que Sandra continuasse a encontrar com muita facilidade argumentos contra ela. Era difícil sentir-se bem se estava sempre a dizer: "Não valho nada" (...) "Toda a minha vida tem sido um desastre", "Sou gorda e feia"... Sandra repetia frases deste estilo desde pequena; nunca gostara de si fisicamente, intelectualmente via-se inapta e lenta (...) Teve de trabalhar muito para poder ultrapassar estes pensamentos irracionais.
Passámos semanas a confrontar, uma a uma, cada frase que proferia interiormente (...).
Não é fácil que alguém tão vulnerável aprenda a deixar de sofrer inutilmente, mas pode-se conseguir, embora o seu cérebro resista, e é lógico que o faça, pois, passou anos a armazenar esses pensamentos contra si. A verdade é que Sandra será sempre um pouco "mais sensível" do que a maioria, mas agora é capaz de desfrutar das coisas positivas que lhe acontecem e, o mais importante, "corta" bastante bem os seus pensamentos irracionais e tem um conceito sobre si própria muito mais adaptado à realidade (...) Por fim, é capaz  de ver-se com objectividade, embora seja demasiado "mole" nas suas apreciações sobre os outros, mas já aprendeu a não justificar o injustificável e, ainda que lhe custe, já exige responsabilidades e pede explicações (...).
A psicologia demonstra-nos que tudo o que se aprende se pode desaprender; tal como nos treinámos para nos sentir mal, podemos treinar-nos para sermos mais realistas e perspectivarmos a vida de forma objectiva.

  María Jesús Álava Reyes in "A inutilidade do sofrimento", A Esfera dos Livros, Lisboa,
2006, pp 120 - 122.
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             " Caçada "


A minha primeira caçada aos gambuzinos aconteceu pelos
tempos em que eu andava ainda na escola. Convidaram-me
e explicaram-me. Até me ofereceram o saco conveniente e
necessário.
Excitado, preparei-me em casa. Treinei devidamente, em-
boscado atrás da porta, a tentar caçar experimentalmente o
meu pai, que subia a escada. Pareceu-me que não gostou.
Os pais, não é... ?
Na noite da caçada, lá fomos. Eu entusiasmado, com a
lanterna e o saco apropriado. E também a moca que estava
atrás da porta, que há noite há ladrões, foi a justificação que
me veio à cabeça no momento. Todos concordaram.
Mas não me venham dizer que não há gambuzinos. Apa-
nhei três. Um deles parece-me que se chamava António André
e ficou coxo. Ainda está, creio. Uma fractura excelente, mesmo
pela rótula.
Tudo me leva a crer que a caça aos gambuzinos é realmente
importante. Temos que apanhá-los. Temos mesmo. Seja lá
como for.

   Mário-Henrique Leiria in " Novos Contos do Gin ", Editorial Estampa, Lisboa, 1973, p 75.
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23/11/11

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 " Rifão Quotidiano "


Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia

chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a

é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece

  Mário-Henrique Leiria in " Novos Contos do Gin ", Editorial Estampa, Lisboa, 1973, p 27.
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 " Nascerá de um Mestre "

 
para o peixe pouco importa o simbolismo das flautas

peixe negro dentro de um mestre

a árvore compreende o nome dentro da sombra o homem dentro

disse

não há caminho no meio do nome posso aventurar-me a perguntar as
flautas da terra as flautas do céu o que nada significa disso o grande
labrego explode no ar e seu nome é vento ainda não emergido da minha
fonte onde as oliveiras choram amanhã nos espinhos oram e não sabem
meus pés descalços os lírios sem a tristeza dos campos onde ninguém
compreenderá os cantos escritos nas quedas da paisagem desse corpo
dilacerado que estremece o silêncio contínuo

  Felipe Stefani in " verso para outro sentido ", Escrituras Editora, São Paulo, 2010, p 54.
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22/11/11

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             " Dança Primordial "


Quantas vezes vi a loucura me percorrer cegamente as entranhas?
Lavrando do fundo de um corpo sua flor brutal,
libertando
a dança desregrada que atravessa a voz,
recompondo
na noite o ouro intenso onde a luz faz ressaca.

Estou completo em minhas paisagens.

De uma vida inteira absorvo a marcha,
canto as estações abertamente,
tocando com o esquecimento as margens,
que se distanciam
e evocam
toda a pureza de uma arte.

Quantas vezes essa loucura corrompeu o último enlace
do medo que se abre ao fim de cada feixe de encanto
no alimento obscuro,
colhido do apuro
das visões imensas?

Toda a obra é terrível e sangra
na memória a sua imagem.

No auge insondável desse estrondo,
canto
em volta de uma dor,
o dorso se contorce,
no centro,
multiplicando o gesto,
um eco indefinido devora em travessia
centenas de mundos construídos
e sonhados.

Pois a música se apossa da ébria lentidão do meu engano.

  Felipe Stefani in " verso para outro sentido ", Escrituras Editora, São Paulo, 2010, p 34.
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21/11/11

" tornou-se minúsculo./ sentou-se lá no fundo "

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à medida que envelheceu
o poeta foi cortando versos:
achava que o silêncio
dizia de melhor maneira.
a certa altura saiu do
texto, caminhou
por uma ampla álea.
tornou-se minúsculo.
sentou-se lá no fundo
precisamente aí onde
o último verso ainda
estava para terminar.

 Rui Tinoco in " O Segundo Aceno ", Edições Sempre-Em-Pé, Águas Santas, 2011, p 58.
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20/11/11

"mas fica sabendo: os meus defeitos/ estão a ver televisão no sofá do escritório."

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peço que as desculpas
me perdoem. mastigo o meu
pão. mastigo o meu pão
para somar gestos. sabes bem
que os gestos me servem
de escudo, que a pose
se tornou uma amiga
fiel. não é com ela
que queres falar? compreendo.
sabes bem que desde que partiste
recomecei a contar tudo
desde o zero, colecionei
monólogos como o mais
excêntrico magnata. sabes bem
que tenho ficado até de madrugada
preso ao não sei quê das
palavras... beijaste-me
e é claro que podes entrar,
mas fica sabendo: os meus defeitos
estão a ver televisão no sofá do escritório.
sentamo-nos a seu lado?

  Rui Tinoco in " O Segundo Aceno ", Edições Sempre-Em-Pé, Águas Santas, 2011, p 44.
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19/11/11

" e não havia nada nas sombras/ que se conseguisse tocar. "

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virei o aceno do avesso:
não existia o mais ténue
vestígio de esperança.
o adeus era somente adeus
e não havia nada nas sombras
que se conseguisse tocar.
resta o pequeno prazer da escrita
ao lado do café pousado
sobre a eternidade.

 Rui Tinoco in " O Segundo Aceno ", Edições Sempre-Em-Pé, Águas Santas, 2011, p 19.
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17/11/11

Acerca de...(VIII)

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Reseñas de libros: " Voces actuales de la poesía portuguesa... "

En varias ocasiones, he comprobado que el mejor indicio de la repercusión que una literatura determinada tiene en la sociedad es la variedad de títulos que podemos encontrar en los estantes de una librería. Así de cotidiano y de fiable. En el caso de la poesía portuguesa, tan cercana geográficamente a nosotros, casi gemela, esta ecuación puede aplicarse y llegaremos a un resultado nada sorprendente: una presencia tímida y segura en sus títulos. La poesía portuguesa se encuentra en España amparada casi siempre por la perpetuidad exitosa de los clásicos: Camões, las obras completas de Pessoa, algunos hermosos vestigios de Eugénio de Andrade, mínimos latidos del saudosista Teixeira de Pascoaes y de la delicadeza herida de Florbela Espanca. Muy poco de Manuel Alegre, al igual que muy poco de Sophia de Mello y Jorge de Sena. Siempre existe alguma sorpresa, pero ese sentimiento siempre será una excepción.
Tan lejos y tan cerca, a la vez. Y esa lejanía entristece, porque Portugal posee voces que embellecen la poesía, su existencia. Más allá del magnífico y enigmático Fernando Pessoa, más allá de su fantasma múltiple y perfecto, hay poetas que siguen dignificando la poesía en portugués.
En mis numerosas viajes a Lisboa he tenido la oportunidad de acercarme al latido tranquilo y rítmico de la poesía portuguesa contemporánea. Durante mis paseos por librerías lisboetas como la hermosa y culturalmente activa "Fabula Urbis" de la rua Augusto Rosa - regentada por un hombre sabio y agradable como es João Pimentel -, la lebrería "Portugal" del Chiado o las más comerciales - pero no peores - como "Bulhosa" de Campo Grande, he podido encontrar poetas de peso, de verso redondo, poéticamente habitables: la silenciosa voz de Cristovam Pavia, la cristalina presencia de Albano Martins, el sobrecogedor abandono trascendente y melancólico de Ruy Belo o el ritmo hilado de Manuel Gusmão, entre otros. Esta lista podría alargar-se infinitamente. Por ello, me centraré en dos libros que vieron la luz en Portugal en la editorial Labirinto en 2010 y 2011: Regresso (2010), de Victor Oliveira Mateus y A incidência da luz, de Graça Pires.
El libro de Oliveira Mateus ya dice mucho en su título. En él acontece un regresso, un regresso a sí mismo. Pero no debemos quedarnos ahí. Late en él ese regreso de Novalis hacia el alma como quien regresa al origen: " Volver atrás/ para encontrar el principio: y a mí través de él." dice en su poema "Alucinación". Este poemario tiene la belleza de los viajes, pero los verdaderos viajes son los parten de la soledad, desde la otredad de quien contempla el mundo como si la memoria ungiera con sus aguas la pureza de la primera existencia. Es un libro puro en cuanto desposesión asume la voz poética: "Cuando partí estaban/ todos atareados viajando, pero de otro modo". La pérdida llega desde esa diferencia del que se contempla en la distancia para regresar, para fundirse con su origen, como místicamente lo hizo Plotino.
Oliveira Mateus se reconstruye a través de la poesía, se encuentra en ella como en diversas fotografias de sí mismo. Creo que no hay maior nostalgia que aquella que surge de contemplar a quien se fue en una fotografia. Mirar-se a los ojos, a través del velo del tiempo, es recortar una ausencia. Oliveira Mateus se recorta en imágenes de Turin o del río Po desembocando en Venecia, aunque quién sabe si también recuerda a Virgilio su desembocadura en el Hades.
Todo en este libro es una presencia dashabitada enmarcada en una ciudad. En esa misma cuidad donde se dan encuentros que pudieron ser y no fueron. Nadie como la memoria tiene la habilidad de llevar al acontecimiento aquello que nunca fue. Quizá por eso el recuerdo salve. Quizá por eso hiera también: "Grito dentro del paisage. Grito y la convulsión/ del verde arrasa las colinas enfrente (...)". La voz poética sabe que de ninguna reconstrucción se sale indemne. Siempre asusta ese pequeño desplazamiento del color, esa variante tímida de la tonalidad que hace que no reconozcamos el lugar. Quién o qué ha provocado ese cambio? Tal vez el triste vacío que siempre queda al regresar, el envejecimiento que emana de las cosas perdidas: "Y está también tu rostro, casi sin contornos:/ sombra disolviéndose en la sombra". La sombra, ese camino que nos hace regresar, siempre hace el recuerdo más inhóspito, a veces fingido: "Donde ese Parque de memoria y fingimiento?". Lo que se enmascara siempre produce inquietud, pero también busca proteger una verdad, el recuerdo puro, perdido, de sí mismo.

   Marta López Vilar in "Ojos de Papel", Madrid, Julio 2011.
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13/11/11

Acerca de...(VII)

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" Pelo deserto as minhas mãos: a poesia de Victor Oliveira Mateus"

Na literatura do Ocidente, tornou-se um verdadeiro leitmotiv a figura emblemática do estrangeiro. André Gide revelará, em seu "O Imoralista", uma personagem em constante errância, em permanente busca por um lugar indefinido, sempre distante. Em "A montanha mágica", Hans Castorp encontrará nos Alpes um recanto onde aprofundará suas reflexões sobre o existir humano. Aliás, Thomas Mann será o exímio autor das personagens exiladas. Também em "Morte em Veneza", a sua personagem central, Gustav Von Aschenbach, torna-se, na famosa cidade italiana, o estrangeiro por excelência. Outros autores, como Paul Bowles, farão do deserto o refúgio dos outsiders, dos excluídos. Esse leitmotiv se tornará, para os escritores, símbolo de uma resistência ao mundo reificado, consumista, universo no qual o objecto toma o espaço do ser.
Indo ao encontro dessa tendência, o poeta português Victor Oliveira Mateus, em seu "Pelo deserto as minhas mãos", plasma todo um cenário estranho, distante do mundo das metrópoles. No deserto de Mateus, o assombro aflora, com intensidade, perante os encontros e despedidas amorosos, marcando, dessa forma, o destino de um eu lírico em errância, em peregrinação não pelos espaços físicos, mas pelos desvãos dos seus sentimentos.
Em sua escrita, o deserto torna-se região das especulações filosóficas, dos encontros e desencontros com o outro. Aliás, o deserto de Victor possui uma ambiguidade importante. É nesse espaço que o eu lírico vivenciará tanto a solidão quanto a total entrega ao outro-amado. Para Victor, somente o mergulho no exílio do mundo e do outro, poderia gestar o arrebatamento dos encontros fecundos. Nessa ascese, é preciso, antes, ouvir a verdade da própria existência, para, a partir daí tramar, com harmonia, os amores.Anti-baudelairiano, o poeta de "Pelo deserto as minhas mãos" rejeita os paraísos artificiais, a fim de buscar, na aridez desértica, uma forma de existência mais plena. Essa recusa ao mundo capitalizado pode ser encontrada, por exemplo, no seguinte texto:

Nas cidades de onde venho
secam as árvores ao som das sirenes
e os pássaros, alucinados, buscam direções
nas pupilas das crianças.
Nessas cidades tudo é pressa e desassossego,
enquanto os homens, improvidentes, desaprendem
a sublime auscultação da terra;
nem sequer o coração dos outros podem ler
ou o rumor inconsolável das águas
- para eles aquilo que apenas vêem!
E com um nó no peito desatado
pintam de harmonia um novo Caos.

Ao auscultar essa terra árida, o seu silêncio, o homem torna-se capaz de ler o coração do outro. Ou seja, é preciso isolar-se, de forma serena, para ter a sabedoria de oferendar-se, em plenitude, ao amor. A solidão, nesse caso, é salutar, ela representa a busca de uma sabedoria, de uma compreensão do existir. Perambular pelas rotas do deserto é palmilhar o próprio âmago, o íntimo da subjectividade. Há qualquer coisa de sacrifício espiritual nessa poesia, de aprendizado da alma, capazes de levar o eu lírico à agudeza da vida e das relações amorosas. Assim, a voz do deserto é, na verdade, o clamor de um outro perdido, quase esquecido:

Que voz chora por mim
no outro lado das grandes pedras? Que lamento? Que murmúrio
por entre a sombra rala dos arbustos? Talvez seja o vento: o zurzir
de um estranho vento oceânico no meu rosto enquanto durmo. Ou
talvez seja o sol, que esgarçando as longas nuvens, cai depois
a pique sobre o meu corpo. Ou ainda - quem sabe? - talvez nenhuma
dessas coisas seja, mas apenas o esquivo sibilar de um réptil no
seu ardil para me tentar

Mas não, nada disso poderá por mim chorar no outro lado
das grandes pedras. Nada, a não ser o eco dos teus olhos; o azul
desmaiado desses olhos, onde o meu sonho era um barco impossível
e as palavras soçobravam na raíz do meu desejo

Todo o deserto, toda a infinita secura das planícies de areia, são transmutadas, nesse poema, no corpo amado, nesses olhos em estado de alumbramento. A entrega acontece como uma descoberta mágica, encantada, da pulsação e da vida do outro. Tal amor precisa ser palmilhado, como se palmilha as areias do deserto. É preciso descer às profundezas do corpo amado, para alcançar a ascese final, a revelação absoluta do gozo:

Descer-te o corpo palmo a palmo
Descer-to como quem sobe ao cume do mais alto monte, como
quem encontra a firmeza de um espaço, para o qual nenhuma língua tem nome
Descê-lo ou moldá-lo, nem eu sei bem: o rosto jovem, o sedoso
peito, as coxas; descê-lo e construir o murmúrio sibilante do vento,
ou de uma boca entreaberta no rumor ofegante da tarde

Descer-te o corpo palmo a palmo
Não o corpo fardo, prisão, informe desejo que a si se basta
numa infindável corrosão de tudo, mas um corpo luz, amigo,
que, sorrindo, aquilo que o excede a mim entrega

Nesse poema, o autor consegue transformar o corpo em um terreno acidentado, no qual o eu lírico terá de descer, percorrer, caminhar, a fim de ascender às matrizes do seu próprio espírito. Dar-se ao outro é entregar-se à serenidade de si. O poeta, nesse texto, de forma sublime, traça, com uma fome de escultor, cada traço físico desse ser mágico, talhando-o com leveza e ardor: "rosto jovem", "peito sedoso", "coxas"... Uma metonímia fecha esse poema com esmerada beleza: todo o riso é o corpo amado; toda a pele, todos os poros, são um rir calmo, repleto de alumbramento. O mistério desse outro é um adentrar na noite, na falta de compreensão do mundo e do milagre de amar:

À noite as tuas palavras
não são as tuas palavras, aquelas que de dia usas, quando nem
nos conhecemos e o disfarce é um regato de água fétida por entre
os refugiados
À noite as tuas palavras são tão diferentes:
trazem-me o silêncio das coisas raras
ensinam-me a sedução dos horizontes ávidos de luz
desvelam-me o teu corpo, tão esplendorosamente branco,
no cadenciado ritmo das antigas deserções
O mesmo com os teus olhos também à noite tão diferentes:
ardem como ilhas num vasto oceano de ondas paradas,
nossa imensidão que nem nostraga nem nos salva
Enfim, à noite nada de ti coincide contigo
mas isso ninguém sabe, nem sequer tu... apenas eu que aqui
o escrevo, enquanto espero um outro anoitecer

O texto, como um pêndulo, risca o dia, delimita as luzes e as trevas e revela, no ser amado, a existência de dois seres distintos. Durante o dia, o outro amante é previsível, sereno. Somente a tormenta das trevas é capaz de acender nesse outro o mistério, a sedução fatalizante, a sina dos naufrágios e perigos. Estamos no domínio da paixão, daquele sentir terrível capaz de arrebatar nossa vida por completo, de nos levar ao estado de possessão febril, de loucura delirante, de gozo supremo. As metáforas e as comparações, tão bem talhadas, revelam a hábil artesania do poeta. Aliás, essa é uma grande virtude de Victor, a de tramar metáforas e comparações de forte poder encantatório. Dessa forma, os olhos são como ilhas de imenso oceano, águas profundas a tragar por completo o eu lírico. Os horizontes são tomados pela fome de arrebatamento, eles têm sede de luz. Essas imagens, assim como muitas outras (todo o livro é um pontilhado de metáforas vivas, repletas de uma imagética de pura inventividade), tornam o livro uma raridade preciosa.
Os poemas, conduzidos por um ritmo muito semelhante ao do poema em prosa, possui versos longos, extensos. Tal ritmo imprime lentidão ao discurso. Esse efeito é de suma importância, pois ele funciona como uma espécie de câmara lenta, com a qual o leitor vai captando as minúcias desse mundo repleto de areias, de beduínos, de cavaleiros, de pedras preciosas. O ritmo casa-se perfeitamente com o forte apelo pictórico do livro:

Às vezes também os homens
espreitam na margem do oásis, vageiam com desespero no tosco
emaranhado das dunas. Às vezes também eles, por entre os cedros,
em mim desenham um estranho mistério: falam alto, gesticulam...
São suas vozes uma ave inusitada no azulado entardecer do deserto.
Mas eu finjo nem perceber

É no longe o que procuro
bem no centro dessa paisagem, no macio regaço dos povos nómadas,
onde as caravanas se balanceiam sem nunca se deterem
O meu lugar é um minúsculo e límpido poço, todo rodeado
de seixos, para lá do ocre de tantos palácios antigos - é o lugar onde
não sou, um estilhaçado vitral que ninguém vê, mas que liberta

O não ser, no livro de Victor, tangencia a totalidade das paixões. É preciso, portanto, ao modo de Pessoa, perder-se para encontrar-se, fugir para cair no próprio ser. Roteiro pontilhado de oásis, repleto de paixões e mistérios, "Pelo deserto as minhas mãos" é uma aventura pelos escaninhos da própria palavra, pela poesia, enfim, feita de magnitude e sublime encontro com o outro, esse ser a fervilhar nossos desejos.

    Alexandre Bonafim in " O Silêncio de Orfeu ", Biblioteca 24 Horas, São Paulo, 2011, pp 94 - 99.
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11/11/11

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"Máximas de Francisco VI, Duque de La Rochefoucauld"
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(...)
68. Il est difficile de définir l'amour. Ce qu'on  en peu dire est que dans l'âme c'est une passion de régner, dans les esprits c'est une sympathie, et dans le corps ce n'est qu'une envie cachée et délicate de posséder ce que l'on aime après beaucoup de mystères.

69. S'il y a un amour pur et exempt du mélange de nos autres passions, c'est celui qui est caché au fond du coeur, et que nous ignorons nous-mêmes.

70. Il n'y a point de déguisement qui puisse longtemps cacher l'amour où il est, ni le feindre où il n'est pas.

71. Il n'y a guère de gens qui ne soient honteux de s'être aimés quand ils ne s'aiment plus.

72. Si on juge de l'amour par la plupart de ses effets, il ressemble plus à la haine qu'à l'amitié.
(...)
74. Il n'y a que d'une sorte d'amour, mais il y a mille différentes copies.

75. L'amour aussi bien que le feu ne peut subsister sans un mouvement continuel; et il cesse de vivre dès qu'il cesse d'espérer ou de caindre.

76. Il est du véritable amour comme de l'apparition des esprits: tout le monde en parle, mais peu de gens en ont vu.

 La Rochefoucauld in "Maximes, Réflexions, Lettres, précédées de L'Homme Mis en Scène par
Tzvetan Todorov", Hachette, Paris, 1999, pp 96 - 97.
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09/11/11


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        " Em ti "


Em ti o chão exausto de meu desejo. A flor aberta
dos sentidos. A calidez do lume. A água. O vinho.
O sangue a estuar em fúria. O grito do sol
que em transe de labareda fulge e irradia.
A extensão de tantos vales
e colinas. Fragrantes. Infinitas.
Os pomos saborosos, repartidos.
Os gomos. Os sumos ardorosos.
Os bosques impregnados de maresia.
A placidez molhada das ervas.
O luzir loiro das searas pelo vento devastadas.
O estio. O seu zénite. A sua vertigem.

Em ti a inclinação dos ramos. A tranlucidez do verde.
O derrame da seiva. O estremecer das raízes.
O musgo despontando. O aveludado dos troncos.
Os álamos. Os plátanos. E outras núbeis melodias.
O espreguiçar incandescente dos rios.
O êxtase das aves altas anunciando o fervor
de um beijo. De um afago. De uma carícia.
O hálito das corolas. As sépalas. Os estames.
O brilho e o odor silvestre da resina. A relva sedosa.
A primavera inebriada com sua própria brisa.

Em ti o menear da terra. As eiras. O feno flamante.
O irromper dos brotos. O despertar dos cálices.
A embriaguez do nardo. E da acácia, festiva.
O matiz das cores na várzea repercutido.
O som dos mananciais posto a descoberto.
O manar das fontes em euforia.
Os céus azuis a derramarem hinos.
O trinado agudo da andorinha.
O acenar obstinado dos choupos.
As centelhas rubras do crepúsculo.
O perfume juvenil das vinhas.

Em ti o delírio das ondas. Das espumas.
As fogueiras ateadas. Os aromas fulvos.
O sopro das chamas. O pão aceso. As espigas.
Os campos de lilases que se estendem
numa queimadura de aurora.
As pétalas humedecidas.
O incêndio azul do orvalho.
A alvura da açucena na manhã florida.

Em ti, amada, celebro a memória de todas as coisas vivas.

 Gonçalo Salvado in " Ardentia ", Editorial Tágide, Lisboa, 2011, pp 97 - 100.
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08/11/11

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 " Fulgidez "


Como aves extraviadas
sob o torpor de tanta luz
nossas bocas
unem-se ansiosas,
ardem juntas
num delírio rubro,
ébrias de gemidos,
nuas, alucinadas,
seduzem-se,
perturbam-se,
embriagam-se,
entregam-se ferventes
e enfeitiçadas,
em êxtase bebem
o fragor do lume,
sorvem o ardor
e a cupidez do vinho,
mordem-se
como polpas tenras, sumarentas,
inebriadas,
queimam-se,
ferem-se,
húmidas de tantos beijos,
de fogo tão sequiosas,
chamas convulsas
bruxuleando claras.
E quase morrem calcinadas,
exaustas, loucas, desvairadas,
num frémito de labaredas,
em fogueiras acesas, altas,
transfiguradas -
Serão centelhas vivas, alvoroçadas?
Fúlgidas quimeras abrasadas?

  Gonçalo Salvado in " Ardentia ", Editorial Tágide, 2011, p 15.
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05/11/11

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Vem ver-me numa noite onde não haja luar, escura, escura,
como breu.
Não quero olhar para ti.
Apenas sentir a tua entrada.
Sentir-te sair para saber que te foste.
E tudo ficar tão escuro que não saiba que a noite jamais se apaga.
Com medo que apareças.

Depois, quero que fales nesse escuro das coisas impensáveis
O que guardaste de mim que me faz falta.
E num instante volver a um tempo outro
Que nunca encontro.
E que não chega para anunciar a tua entrada.

Vem ver-me na curva dos sonhos transfigurados
E verás como sou nada.
E de tudo ser capaz para te pedir
Não faltes!
As ledas pálpebras têm estranhos caminhos.
E eu ceguei ao olhar o dentro.
É tudo tão o mesmo breu...!
Que não me vês
Tal qual um deus.
Morto, na espera das viagens.

  Amélia Vieira in " Gabriel ", Cavalo de Ferro Editores, s/c., 2011, p 95.
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04/11/11

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Vamos por vezes andando e descobrindo nos rostos pedaços de
Homo sapiens.
Os troncos são partes frouxas trazendo agarrados as cavernas
ledas e os olhos mochos.

Se olharmos bem, bem, vemos o tio paleolítico, agarrando
mamute à mão, e as asas de um silfo que segreda; venham da
caverna, irmãos!

Está lá dentro a deusa-mãe, gorda, enrolada, ri da noite ter
chegado, para que o troglodítico esposo lhe dê  a carne e o osso
agarrado ao seu pescoço, e malhe na noite, eles, que são antes
do pecado.

São caras, são pescoços, são os dentes poliformes, as narinas
gordas dos olhos, a bruta matéria informe. Que aquela massa
esboça quase um sorriso, parecendo contorcionismo, será que
pensam, tem siso, nascem-lhes apêndices maiores?

Vou para Oeste, para as Beiras, e não vejo "bolhas"
verdadeiras de pré-histórica gente? Não andam, arranham
chãos, zurzem, são informes, microcósmicos, como se caíssem
de um céu, cujo refinamento ainda não se deu.

Peludos, abatanados, maçudos, muito parados, presuntados,
cheiram às caças das carnes, fedem como as feras, mas de tão
feios espantam, não gostam da civilização, pontas limadas com
laser e tudo o que se lhes afigure ser brilhante e nunca ter
conclusão.

Os "regimes" portugueses são organizações pré-históricas, por
mais que se faça, por mais que se ande, a caverna é grande
e farta, a serra, uiva atávica à sua espécie que não pode, não
consegue, dela se dissociar.

Dispa-se; vê, lá está... pêlo, tudo disforme.
Ria; olhe esses dentes são de rasgar carnes...
Respire; tanta cartilagem...
Ande; vê, tem os dois pés no chão na mesma posição!

Mas o que é a Civilização?
É sentir isto tudo e ficar mudo.

É estar eu para aqui, limada, enxuta, a falar destes labregos
Muito pífios, muito ledos, engodam como os godos,

Dão ordens como na caça, matam um veado,
Ficam heróis, matam-nos a todos e foi tudo de graça.

Este o encanto da Pré-História, o homem defende-se, come
quando tem fome, fode quando tem tesão, nascem pré-históricos
aos magotes sem precisar de regras de salão.

Ah! Desculpem, preferia morrer de fome, desmonhecar,
a ter de levar com um osso, ou não me fazerem vibrar com a
vénia dada aos naturais. Uma boa genuflexão levou milhares
de anos a ser executada... E eu sei que herdei esse joelho, e
no meio, fui ficando, depois... veio a dança, o traje, a graça...
Quanto trabalho para meter de pé as estátuas!

Os labirintos são coisas pré-históricas, a gente anda e fica tonta,
por vezes no mesmo sítio, mas como de lá sair? Olhem, eu passei
por cima do Touro, ele correu atrás de mim, partiu um pé e
foi-se logo sentar outra vez no trono... Quero lá saber daquela
porcaria!

Encaracolam-se-lhes as formas e ficam paleoprotásicos...
Depois, os sons são de avatares antes do verbo...

Muita vogal, a u ooooo, é tudo informe, eu sinto-me mal.

Não goste da Ode. E também desta espécie demasiado natural.

  Amélia Vieira in " Gabriel ", Cavalo de Ferro Editores, s/c., 2011, pp 27 - 29.
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03/11/11

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No seu posto, um Poeta é ainda aquele que vela, que está atento, que ausculta o coração das coisas em redor e se disponibiliza para interpretá-las, daí, por vezes, o seu não encontro no tempo marcado com muitos dos seus contemporâneos. Para que servem poetas em tempo de indigência? Uma pergunta de Holderlin tão válida hoje como o foi há duzentos anos, como o será porventura no futuro, enquanto o Homem for esta Humanidade. Talvez evitem o despenhar nas costas, os naufrágios abruptos, talvez desviem as rotas das tormentas - Faroleiros Vigilantes - e, se evitarem um que seja, a sua participação já é válida.
(...) Na medida em que a religião existe na ordem etimológica do religar, é necessário saber fazer estas pontes comunicantes que serão bem-vindas para que todos se sentem à mesa da concórdia e do debate fraterno.
(...) O século que aí está pede-nos que o Poeta se ocupe desta memória sob pena de ver destituída a sua função em prol de um divertimento linguístico, que, pese embora a utilíssima maneira de trabalhar a palavra, jamais pode, sob risco de aniquilamento, desligar-se. Metamos mãos nem que seja aos antigos mantras, esconjuremos as chacinas, a indiferença e o desastre. Façamos outras cabanas, convoquemos outros pastores (...).
E, com tudo isto, talvez não tivesse sabido explicar o mais simples: ser original equivale a voltar secretamente à origem. Daí emana o futuro e, o futuro, a sê-lo - porque haverá sempre futuro -, só pode ser, terá de ser, Absolutamente Redentor.

  Amélia Vieira in " Gabriel ", Cavalo de Ferro Editores, s/c., 2011, pp 8 - 9.
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02/11/11

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Dêem-me a cor de uma grande noite e eu
aprenderei a mover-me em equinócio. Já não
te sei, por isso sigo a meio dos dias e de
costas voltadas para os fenos e as margens.
Ao fundo, quando reclamo a espessura de
uma outra inquietação, durmo nos sinais de
uma orla sem corpo, campo aberto e
obscuro. Bato a todas as portas, mas de
súbito, recolho-me na invenção de mapas.
Absurda e doce memória esta aragem que
me cobre.

 Cecília Barreira in " a sul da memória ", Europress Editores, Odivelas, 2001, p 55.
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Contemplo-me na infância. Não sei para
onde aguardar a medida das nuvens, nem
em que sinal partir fundo. Surges frágil na
tua felina imprecisão. Janeiro em desalinho.
Dá-me a coloração das luzes que divergem e
redistribui-me em ti.

 Cecília Barreira in " a sul da memória ", Europress Editores, Odivelas, 2001, p 25.
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Agradável surpresa!

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Alguns dos meus poemas, traduzidos para espanhol por Marta López Vilar, passaram a integrar a seguinte Antologia do século XXI:
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www.poetassigloveintiuno.blogspot.com/2011/09/4791-victor-oliveira-mateus.html
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01/11/11

 Ronaldo Cagiano e sua mulher, em Lisboa ( Janeiro 2011).

  " Dia sem nome "


Na estação de trabalho
os colegas cumprimentam-se
com a mesma frieza burocrática
de todos os dias.

Uns respondem
gestos automáticos
fugacidade nos olhares

legitimam a mesmice ritualizada
e endêmica.

Alguns
alimentando o espetáculo
das tarefas desestimulantes
não se espantam
com o mundo besta e sem sal
pesando-lhe as mãos.

Outros, em suas baias,
detidos numa rotineira cumplicidade
com a busca infrene dos resultados
reproduzem acenos
sem nenhuma convicção.

Ah, como dói vê-los tão mecânicos
tão protocolares
tão passivos e sem ênfase

homens de gesso

ferozes parteiros do nada.

A imensa e patagônica sala
um curral de vidro povoado
de marionetes
é mais fria
que a mais glacial das necrópoles.

Papéis e-mails expedientes
processos demandas análises
se encordilheiram nas mesas
como culpas

Carimbos repetitivos e vorazes
soquetes no vazio
apelos que chancelam a existência inútil

A saída para o almoço
é apenas um detalhe
nesse galope das horas e seu inventário de necessidades
o ontem minguado de esperanças
com seu arsenal de ordens que se acomodam
como poeira na mobília

precisamos estar focados
ser pró-activos
verificar a expertise
startar novas ideias
evitar retrabalho
eliminar os gaps e gargalos
racionalizar procedimentos
diminuir custos
otimizar resultados aumentar a produtividade
o envolvimento do grupo é fundamental
a coesão da equipe é salutar para a performance
o feedback é indispensável

Tempo é dinheiro
e na selva da concorrência
e das metas insaciáveis e compulsórias
quem não tem competência, está perdido

Todos os dias ouço
a semântica do lucro
a sintaxe do mercado
discurso plastificado e vazio
a reproduzir os
fetiches de um século tão novo e
já enfermo
dirigindo a vida que já não é mais nossa

Porém, no fundo da seção,
imperceptível como as faxineiras
que todos os dias higienizam o ambiente
com seu macacão de zuarte azul
alguém abre um livro de Kafka
e já não se sente entre paredes.

Em silenciosa perplexidade,
rumina sua dor diante do
tédio e da banalização
de mais uma semana consumida a esmo.

Como uma centrífuga vertical
o elevador nos salva no fim de cada fim de expediente.

A solidão mais torpe é estar cercado de imbecis.

 Ronaldo Cagiano in " O sol nas feridas ", Dobra Editorial, São Paulo, 2011, pp 101 - 104.
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