31/10/10

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"As Sereias"


Atraídas e traídas
atraímos e traímos

Nossa tarefa: fecundar
atraindo
nossa tarefa: ultrapassar
traindo
o acontecer puro
que nos vive.

Nosso crime: a palavra.
Nossa função: seduzir mundos.

Deixando a água original
cantamos
sufocando o espelho
do silêncio.

Orides Fontela in "Poesia Reunida (1969 - 1996) ", Cosac Naify/ 7 Letras,
São Paulo/ Rio de Janeiro, 2006, p 96.
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"Questões"


a)
O
fruto
arquitetado:
como o sermos?

b)
Difícil o real.
O real fruto.
Como, através
da forma
distingui-lo?

c)
Aguda
a
luz
sem forma
do que somos.
Como, sem vacilações
vivê-la?

Orides Fontela in "Poesia Reunida (1969 - 1996)", Cosac Naify/ 7 Letras,
São Paulo/ Rio de Janeiro, 2006, p 59.
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30/10/10

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"Col du Tourmalet"


Desta vez é que é muito embora
não se saiba muito bem porquê
ele vai feroz no alto do Tourmalet
faz lembrar o dia em que te imaginei
e acreditei não querendo a verdade porém

Faz lembrar o dia em que te imaginei
quando digo desta vez é que é
e agora na verdade já nem sei
que piso que vejo e grito é quem
este homem no alto do Tourmalet?

Hugo Milhanas Machado in "As Junções", Ed. Artefacto, Lisboa, 2010, p 15.
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29/10/10

"(...) o destino// não é a rosa dos ventos é um desvio para obras"

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"Ithaca, NY"

a saudade não são flores secas no teu leito
é o velho 2cv atirado para o ferro-velho a insónia

não é o manto de negridão que cobre as vielas
é um despertador que indica as 3:09 o medo

não é o brilho dos punhais ao luar mas homens
disfarçados de elvis atrás das esquinas o destino

não é a rosa dos ventos é um desvio para obras
ítaca não é ítaca é san francisco

Pablo García Casado in "Trípticos Espanhóis - 3º", Relógio D'Água Editores, Lisboa,
2004, p 153 (Seleção e Tradução de Joaquim Manuel Magalhães).
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" nada mais posso oferecer-te apenas tenho o que sou "

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"Código de Bar"

sós ou em companhia todos os príncipes se foram
ficamos os de sempre ou de outras vezes os que já
nos conhecemos vou ser breve proponho-te

um lugar afastado olhar as últimas estrelas
tomar juntos o primeiro café com leite do domingo
nada mais posso oferecer-te apenas tenho o que sou

além de um erre cinco com assentos abatíveis

Pablo García Casado in "Trípticos Espanhóis - 3º", Relógio D'Água Editores, Lisboa,
2004, p 127 (Selecção e Tradução: Joaquim Manuel Magalhães).
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28/10/10

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(Que fez o Autor a um capitão de
infantaria que o acharam fornicando
com uma negra)

"Décimas"


Ontem, senhor Capitão,
vos vi deitar a prancha,
e embarcar-vos numa lancha
de gentil navegação;
a lancha era um galeão,
que joga trinta por banda,
grande popa, alta varanda,
tão grande popa, que dar
podia o cu a beijar
à maior urca de Holanda.

Era tão azevichada,
tão luzente, e tão flamante,
que eu cri, que naquele instante
saiu do porto breada:
estava tão estancada,
que se escusava outra frágua,
e assim tive grande mágoa
da lancha, por ver que quando
a estáveis calafetando,
então fazia mais água.

Vós logo destes à bomba,
com tal pressa, e tal afinco,
que a pusestes como um brinco,
mais lisa, que uma pitomba.
Como a lancha era mazomba,
jogava tanto de quilha,
que tive por maravilha
não comê-la o mar salgado,
mas vós tínheis o cuidado
de lhe ir metendo a cavilha.

Desde então toda esta terra
vos fez por aclamação
capitão de guarnição
não só, mas de mar e guerra.
Eu sei, que o povo não erra,
nem nisso vos faz mercê,
porque sois soldado que
podeis capitanear
as charruas de além-mar,
se são urcas de Guiné.

Gregório de Matos in "Melhores Poemas" (Seleção e fixação de texto: Darcy Damasceno),
Global Editora, São Paulo, 2000, pp 141 - 142.
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27/10/10

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(Ao mesmo padre, por querer saber
todas as ciências)


"Soneto"


Este padre Frisão, este sandeu,
tudo o demo lhe deu e lhe outorgou,
não sabe Musa, musae que estudou,
mas sabe as ciências que não aprendeu.

Entre catervas de asnos se meteu,
entre corjas de bestas se aclamou:
aquela Salamanca o doutorou,
e nesta Salacega floreceu.

Que é um grande alquimista, isso não nego,
que alquimistas de esterco tiram ouro,
se cremos seus apócrifos conselhos,

e o Frisão as irmãs pondo ao pespego (1),
era força tirar grande tésouro,
pois soube em ouro converter pentelhos.

Gregório de Matos in "Melhores Poemas" (Seleção e fixação de texto: Darcy Damasceno),
Global Editora, São Paulo, 2000, p 20.

- (1) Pondo ao pespego - prostituindo.
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26/10/10

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             "Erinias"


Los deseos tenaces como un perro
que se obstina en negar el abandono.
Cuántos impulsos fieles
gimen si abro la puerta. Sus hocicos humean
con aliento nublado en el pasillo.
A los pies de la cama laten, desencarnadas,
sus vísceras calientes, tumorales.
Metástasis inmensas
desfiguran el cuerpo de la noche.
Mis erinias - criaturas malcriadas,
panteras en la alfombra -
piden, muerden despojos.

Las furias, oh, las furias,
sus aullidos carnales...

Aurora Luque in "Carpe Amorem - Antologia ", Editorial Renacimiento, Sevilla,
2007, p 155.
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"Tínhamos bebido e o álcool/ não se tinha estancado, girava docemente/ como única chave que muitas portas abre."

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"Homossexualidade"
(Segunda versão)

Falamos até tarde no terraço.
Os grilos repetiam
a pulsação da noite, como se nos dissessem:
este é o tempo.
Tínhamos bebido e o álcool
não se tinha estancado, girava docemente
como única chave que muitas portas abre.
Torneámos o tema do amor,
com empenho, sem o mencionar nunca,
como a um leão adormecido,
mas agarrou os corpos a seu modo.

Ao amanhecer, fechamos as persianas,
para assim a noite ainda durar.

Preparava um café e pensei no impossível,
como se tudo então se tivesse detido
- um corredor vazio, uma luz indagadora
e relevo no liso -,
e em amar só aquilo que for com o possível.

Luis Muñoz in "Trípticos Espanhóis - 3º", Relógio D'Água Editores, Lisboa,
2004, p 115 (Selecção e Tradução de Joaquim Manuel Magalhães).
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25/10/10

" Ficaram apenas entre os dois/ as armas do desejo e as da falta. "

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"Armas"

Demoraram até falar-se.
A escuridão actuava como um eco,
espelhos de um oceano,
e no tumulto do recinto,
primeiro um sorriso, onde foste,
pôde quebrar a lâmina de gelo.

Há quase um mês e cada um
pensou vinte maneiras de o outro voltar.
Mas sempre se impôs um temor vago,
de asfixia e voltas de espiral.
A não saber dizê-lo,
a que falhar já fosse para sempre.

Por isso ao primeiro gesto se fundiram
as armas que esboçou a resistência deles.

Ficaram apenas entre os dois
as armas do desejo e as da falta.

Luis Muñoz in "Trípticos Espanhóis", Relógio D'Água Editores, Lisboa,
2004, p 79 (Selecção e Tradução de Joaquim Manuel Magalhães).
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" grande pedra de saudade/ de olhos hirtos. "

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No dia em que te foste embora,
longos navios de silêncio
encheram a casa,
tão grande, tão vasta!
Todos os gatos da vizinhança
comiam cogumelos
e varriam as cascatas dos cemitérios
com agudas lâminas de tédio.
No cais das horas
fiquei a esperar-te:
grande pedra de saudade
de olhos hirtos.
Paira sobre mim a presença
de uma mão pálida
e sempre uma ave parte:
nunca sei para onde.

Manuela Margarido, Poema XXI de "Alto como o silêncio" in "Polifonias
Insulares - Cultura e Literatura de São Tomé e Príncipe" de Inocência Mata,
Edições Colibri, Lisboa, 2010, p 180.
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24/10/10

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            "Pentesilea"


Las crines empapadas como algas
blanquecinas se alejan: el hermoso caballo,
desnuda ya la muerte por los campos,
huye despavorido entre despojos.
En el alba, la curva delicada
de un pecho frente a un turbio destino de guerrero.

- Qué dulcemente amargo el sabor insensible
de la noche contigo, oh Amazona.
La fruta de tu aliento, tibia y dulce,
no pude ya morder: un dios cambió los dados, y la muerte
anticipó su turno en la escalera
de la vida perfecta de los héroes.
El prólogo, los himnos, los presagios,
la gloria de la red, la humedad de los ojos,
la carnación, el iris, el fulgor, el asombro
con que la diosa engaña sin piedad a los seres
me fueron evitados; sólo al darte la muerte
me devolvió tu cuerpo su perfume de sombra
y sólo he alcanzado, del amor, la belleza
altiva de su cumbre en brazos de la nada.

Aurora Luque in "Carpe Amorem - Antologia", Editorial Renacimiento,
Sevilla, 2007, p 75.
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23/10/10

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              "Terraza"

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 De acuerdo: ya no existen visionarios,
el excesso de amor no está de moda
- tampoco el adjectivo de color -
y es ridículo hablar de las sirenas.
El poeta se ausenta del poema; entretanto,
toma café o el sol con los amigos,
baja un taxi hasta el mar y la metáfora
se desnuda delgada entre las olas.
- Prefieres la piscina? El poema no sufre
descarnado de ti. Toma un vaso y ginebra,
sumerge tu inocencia, paladea
la tarde sin noticia,
sin mito, sin pasado, en la indolente
hamaca del silencio. De regresso,
tu poema te aguarda suicidado.

Aurora Luque in "Carpe Amorem - Antologia", Editorial Renacimiento,
Sevilla, 2007, p 47.
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22/10/10

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"Que fazes aqui?"


Julgava que te tinha dito adeus,
um adeus contundente, ao deitar-me,
quando pude por fim fechar os olhos,
esquecer-me de ti, dessas argúcias,
dessa tua insistência, teu mau génio,
tua capacidade de anular-me.
Julgava que te tinha dito adeus
de todo e para sempre, mas acordo,
encontro-te de novo junto a mim,
dentro de mim, rodeias-me, a meu lado,
invades-me, afogas-me, diante
dos meus olhos, em frente à minha vida,
por sob a minha sombra, nas entranhas,
em cada golpe do meu sangue, entras
por meu nariz quando respiro, vês
pelas minhas pupilas, lanças fogo
nas palavras que minha boca diz.
E agora que faço?, como posso
desterrar-te de mim ou adaptar-me
a conviver contigo? Principie-se
por demonstrar maneiras impecáveis.
Bom dia, tristeza.

Amalia Bautista in "Trípticos Espanhóis - 3º ", Relógio D'Água Editores, Lisboa,
2004, p 53 (Selecção e Tradução de Joaquim Manuel Magalhães).
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21/10/10

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" A Vida Responsável"


Conduzir mas sem ter um acidente,
comprar massas e desodorizantes
e cortar as unhas às minhas filhas.
Madrugar outra vez e ter cuidado
em não dizer inconveniências,
esmerar-me na prosa de umas folhas
e estou-me nas tintas para elas,
retocar de vermelho cada face.
Lembrar-me da consulta ao pediatra,
responder ao correio, estender roupa,
declarar rendimentos, ler uns livros,
fazer umas chamadas telefónicas.
Bem gostaria de me dar ao luxo
de ter o tempo todo que quisesse
para só fazer coisas esquisitas,
coisas desnecessárias, prescindíveis
e, sobretudo, inúteis e patetas.
Por exemplo, amar-te com loucura.

Amalia Bautista in "Trípticos Espanhóis - 3º", Relógio D' Água Editores, Lisboa,
2004, p 31 (Selecção e Tradução: Joaquim Manuel Magalhães).
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17/10/10

" Queremos lembrar./ E o que lembramos/ é mar. "

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"Ela vive em mim"

Veja este braço que em volta do corpo dela.
Mal pode avançar nas conchas do banco.
Se outro homem esteve aqui,
arrancou areia,
seixos e o lodo colorido que
pomos rente às pedras
pra divertir os videntes.
O último
foi um forasteiro que prometeu mundos e fundos
e fugiu com outro na noite de Ano Bom.

Agora queremos aprender.
Ela me disse primeiro pelas mãos.
Então fiquei ali dentro da palma esperando
a hora de me mover sem luta.
( Pare um pouco de pensar
para não se perder com o que é banal.)

A gente sempre pensa
não é preciso mais nada,
pode parar tudo.
Mas é assim que é,
não pára de acontecer,
e mal podemos acompanhar a boca, as coxas,
avançando sempre sem fé.
Pensávamos que era aquele lábio, aquele dente,
ou ainda os rios descompostos
que elegêramos para o pálido janeiro.
Depois fomos descobrindo -
não era isso, não era eu, nem ela, nem nenhuma
parte dos beijos, por mais que voltemos.
Antes do mundo já sonhávamos.
Era um mundo estranho que queríamos.
Estivemos lá. Mas esquecemos o que ele era.
Queremos lembrar.
E o que lembramos
é mar.

Sérgio Nazar in "O prisma das muitas cores - Poesia de Amor Portuguesa e Brasileira"
(Organização: Victor Oliveira Mateus, Prefácio: António Carlos Cortez), Editora Labirinto,
Fafe, 2010, pp 179 - 180.
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16/10/10

"La poésie comme la vie/ n'admet pas de réponse "

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Il y aura toujours cette question
à quoi ça sert

Non comme un chant de sirènes
mais une pensée sincère

Le poème meurt devant l'enfant qui meurt

La poésie comme la vie
n'admet pas de réponse

La quête est objet de la quête
qui s'arrête quelquefois

devant un visage

Azadée Nichapour in "Parfois la Beauté", Seghers, Paris, 2008, p 90.
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15/10/10

"Mais la mélancolie de mes yeux/(...) dans la pierre "

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Je regarde le silence
où ses doigts infinis
osculptent mon visage

Mais la mélancolie de mes yeux
comment va-t-il faire
pour l'écrire dans la pierre

Azadée Nichapour in "Parfois la Beauté", Seghers, Paris, 2008, p 58.
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14/10/10

" À présent je marche en moi-même"

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On se croit arrivé depuis longtemps
mais la route continue

À présente je marche en moi-même
épuisée du chemin qui me sépare de moi

Azadée Nichapour in "Parfois la Beauté", Seghers, Paris, 2008, p 14.

(Nota - esta poeta iraniana, vivendo hoje em Paris, escreve directamente em francês, daí a inexistência de tradutor na referência bibliográfica.)
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13/10/10

"(...) os dois estamos/ cheios de buracos - e nem é grave/ se soubermos flutuar. "

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"Chat"

Em Mercúrio, Sexta-feira, a sonda
detectou duas crateras de auréolas
sombrias. Apresentam ambas bordos
quase intactos e muros de socalcos

segundo especifica o endereço
http://messenger.jhuapl.edu/
( anoto e espero que o poema
seja eterno e o link não). Cliquei

para ampliar a imagem, e dentro
vi pequeninas covas circulares
como as que na areia faz a chuva
ou nas fontes as moedas dos desejos.

Também por via Messenger te encontro
e troco novidades, mais veloz
do que a luz, mais ágil o gracejo
do que o próprio pensamento, faísca

o espaço - onde chegamos, sem risco
já de nos tocarmos; os dois estamos
cheios de buracos - e nem é grave
se soubermos flutuar. Em tudo isto

ainda há algo como um halo fundo
e um radar que é como água gotejando
por degraus, que inquieta mas seduz
e nos deixa sombrios intactos sós.

Margarida Vale de Gato in "Mulher ao Mar", Mariposa Azual, Lisboa, 2010, p 60.
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11/10/10

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"Emotional Turn"


O nosso embalo vem à direita da letra
e já vem tempo que parece ser fatal
o que no fim do dia arrepende
Temos uma toada emocional, embora fria
Disputamo-la nas pequenas imagens
truques traves e toques
de potentes linguagens que algum dia
até são nossas, e logo se nos espraiam
mas mesmo, reparo Praia e praia
Eu aqui só digo praia
Temos uma toada emocional, tão fria
como o favorito do Pessoa, e isso sim
o amor todo dobrado
também uma grande galeria
de coisas que ainda fazem chorar
como na escola as festas de fim de ano
com grupos de língua inglesa e
tremendamente enamorados
já ninguém diz

Hugo Milhanas Machado in "O prisma das muitas cores - Poesia de Amor Portuguesa e Brasileira" (Organização: Victor Oliveira Mateus, Prefácio: António Carlos Cortez), Editora Labirinto, Fafe, 2010, p 79.
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"O amor aos sessenta"


Isto que é o amor ( como se o amor não fosse
esperar o relâmpago clarear o degredo):
ir-se por tempo abaixo como grama em colina,
preso a cada torrão de minuto e desejo.

Ser contigo, não sendo como as fases da lua,
como os ciclos de chuva ou a alternância dos ventos,
mas como numa rosa as pétalas fechadas,
como os olhos e as pálpebras ou a sombra dos remos

contra o casco do barco que se vai, sem avanço
e sem pressa de ausência, entre o mito e o beijo.
Ser assim quase eterno como o sonho e a roda
que se fecha no espaço deste sol às estrelas

e amar-te sabendo que a velhice descobre
a mais bela beleza no teu rosto de jovem.

Alberto da Costa e Silva in " O prisma das muitas cores - Poesia de Amor Portuguesa e Brasileira" (Organização: Victor Olivieira Mateus, Prefácio: António Carlos Cortez),
Editora Labirinto, Fafe, 2010, p 22.
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Instantâneos do lançamento do dia 9/10 (apenas as imagens sem quaisquer nomes!).






10/10/10

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           "Soneto"


Se alguém batesse à minha porta um dia
E me chamasse à vida que há na rua,
Eu - que não quero ouvir - nada ouviria
Que apenas ouço aquela voz que é tua.

Se alguém de noite abrisse a gelosia
Para que eu pudesse olhar a luz da lua,
Eu - que não posso ver - nada veria
Que a condição de cega continua.

Nem punhal feito em aço de Toledo
Me atinge o coração porque ele somente
No aço dos teus olhos se desfaz.

Pois contra mim lançou este bruxedo
O Amor: de meus sentidos nenhum sente
Senão o sentimento que lhes dás.

Hélia Correia in "O prisma das muitas cores - Poesia de Amor Portuguesa e Brasileira"
(Organização: Victor Oliveira Mateus, Prefácio: António Carlos Cortez), Editora Labirinto,
Fafe, 2010, p 74.
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06/10/10

"Então sobre o poema, o artifício,/ a borra baça, a mim a extrema luz."

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"Declaração de Intenções"

Para aqueles que insistem diluir
isto que escrevo aquilo que eu vivo
é mesmo assim, embora aluda aqui
a requintes que com rigor esquivo.

À língua deito lume, o que invoco
te chama e chama além de ti, mas versos
são uma disciplina que macera
o corpo e exaspera quanto toco.

Fazer poesia é árido cilício,
mesmo que ateie o sangue, apenas pus
se extrai, nem nunca pela escrita

um sólido balança, ou se levita.
Então sobre o poema, o artifício,
a borra baça, a mim a extrema luz.

Margarida Vale de Gato in "Mulher ao Mar", Mariposa Azual, Lisboa, 2010, p 9.
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05/10/10

"o caramanchão onde em muitas tardes/ me sentava com um livro na mão/ morrendo de desvairada alegria; "

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" A Criação do Mundo"

Uma coisa insone, talvez coisa nenhuma,
se agita intranquila
num círculo que invento
como poça no terreiro.
Coloco dentro uma rua
e nela uma casa
com vidraças na varanda.
Trago um endereço na mão
e paro defronte à porta,
mas não posso abri-la.
Não decifro a chave
que é um deserto de família.
Fico olhando o pensamento
para ver se ao menos uma janela
se rompe para a entrada do nada.
Gestos de dor se fecham
e tudo desaparece
em murmúrios e momentos do tempo.
Só me lembro do que é dormido.
Com movimentos de dança
o rio lambe sua cauda de linfa
e incandesce os poetas,
os que cantaram sua ponte
- essa enorme boca -
e os que acarinharam suas costas
de metal polido.
Não há ninguém sentado na margem
em que habitava desarmada
da convulsão de meus deuses.
Como num impossível sonho e lúcido sentido
reconstruo as pedras do jardim,
altas, gordas e redondas,
que abriam um buraco nas begônias;
as lesmas que lambiam
a terra com sua baba;
a crista vermelha
pulsando no andar do galo;
o corpo de seda da lagartixa
em sua imobilidade de gesso;
o caramanchão onde em muitas tardes
me sentava com um livro na mão
morrendo de desvairada alegria;
os ecos de vozes, lágrimas, vultos na escada.
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Desenterro as raízes do medo,
tortas e doendo de fome.
Nada mais germina nesta horta,
este chão transfigurado
em fragmentos de musgo e acalanto.
O pranto é um lenço de linho
cobrindo o rosto como uma capa.
Espero que me dêem um delírio,
uma queimadura, um coração estrelado,
tudo muito colado ao meu rosto,
para que acordem o meu sonho
e retornem, com nomes na memória,
a essa loucura em que, mutilada, me apoio.
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Quem me vê andando entre os muros
e se aproxima abrindo
a parede de chumbo da infância?
Que beijo ganho por ser tão menina?
Ando devagar, afundando as sombras
nos meus passos. Desço a rua do Pomba.
Abro os olhos da filha
e vejo a criação do mundo.
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Lina Tâmega Peixoto in "50 Poemas Escolhidos pelo Autor", Edições Galo Branco,
Rio de Janeiro, 2008, pp 61 - 63.
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03/10/10

" Em ti também eu me procuro./ Neste engano que ninguém percebe "

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" Aula de Desenho"

Longo caminho o espaço em que te sinto.
Procuro rugas, imagens, teu silêncio,
uma cor que envolva tua quietude.
Em ti também eu me procuro.
Neste engano que ninguém percebe
minha mão se cansa e morre na forma da tua.

Antes fosse cinza onde traço teu rosto
apenas uma fina roda de luar.

Lina Tâmega Peixoto in "50 Poemas Escolhidos pelo Autor",
Edições Galo Branco, Rio de Janeiro, 2008, p 20.
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02/10/10

" Luzes de montras. Gente negra, espectral,/ No brilho amarelado que ensopa a rua inteira. "

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" Fim... "

Vítreo, de olhar parado, passos vão-me arrastando
Para espaços mais distantes num compasso sem fim.
Fumega a massa pedregosa de Berlim,
Correm pela noite fora carros tilintando.

Luzes de montras. Gente negra, espectral,
No brilho amarelado que ensopa a rua inteira.
E tudo vai passando, um velho ritual...
Mascando, pensativa, chega gente de feira,

Raparigas com gestos de quem sempre aqui
Esteve, e o eléctrico tocando sem parar...
Toda esta dor, que quer ela de mim?
Não fiz mal a ninguém neste lugar.

Lâmpadas de arco de brilho azul e branco.
Febres frias cortantes. Vastidões congeladas.
Em semicírculo imóvel, o gigantesco banco
das lésbicas de sempre, grandes, marmorizadas.

Ernst Blass in "A Alma e o Caos - 100 poemas expressionistas ",
Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2001, p 51 (tradução de João Barrento ).
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1/10 Inauguração da Exposição de Eduarda Costa Ferraz no "Hotel Inglaterra", Estoril. Trabalhos a não perder...