Mostrar mensagens com a etiqueta Helena Carvalhão Buescu. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Helena Carvalhão Buescu. Mostrar todas as mensagens

23/09/10

" caem corpos e lugares,/ gente e coisas mais, como estilhaços e pontes."

.
"Sítios, caindo"

O que abisma
é ser capaz de chorar cem vezes,
afastando os braços do corpo
porque, sem ele,
os joelhos caem no chão
e à terra tornam, tornados terra.
Ou ainda encostar os olhos às nuvens,
como estrelas que passassem pelos sentidos despertos.
Caem corpos, pelo medo,
caem mansos fogos no deserto,
caem tributos já perdidos,
caem corpos e lugares,
gente e coisas mais, como estilhaços e pontes.
Caem limos, também ondas,
a maré foi que desce e sobe pela escada
da nossa testa em sonhos.
Caem risos, mesmo gestos,
a noite invade os olhos como esconsos gatos os vãos,
escapando-se em redor, surpreendida,
caem paixões e outros tempos,
mil coisas sobre a terra escura,
as romãs e outras coisas de viver,
o homem em cuja pele adormecemos,
a luz apagada quando é tarde,
a voz quando cansada,
os dedos quando em sangue,
caem mil coisas, em pedaços,
do corpo que fazemos ambulante.
O que abisma é,
tendo fugazes os olhos,
ter olhos fugazes a relembrar as palavras,
sem pô-las de lado como coisas impolutas.
Entender o sol sobre a curva dos ombros,
afagando o que na estrada se cumpre e é imenso:
um grito, uma ruína,
uma unida janela.

Helena Carvalhão Buescu in "De onde nascem os rios", Editorial Presença,
Lisboa, 1998, pp 69 - 70.
.

22/09/10

" O que abisma é ter olhos fugazes/ correndo sobre a terra "

.
"Falando Pela Voz"

O que abisma é ter olhos fugazes
correndo sobre a terra
sem resgatar todos os passos,
sem pô-los de lado como coisas impolutas.
O que abisma
é esse abismo não ser de coisas que dizemos,
o silêncio não gastar o horizonte
e ser tal que a deusa oculta e expõe.

Se vozes possuímos,
porque não falar a gosto do que em viagem escrevemos?
Se olhos, recatados, foi que vimos,
porque não traçar a recta luz com que escutamos?
Se por gestos já imaginámos,
porque não falar de onde os rios bem partimos?

Sempre soubemos, no fundo, e guardámos o que
nem ao tempo fora dado conhecer:
voltar a casa nem sempre,
nem sempre é possível, como estrela.

Helena Carvalhão Buescu in " De onde nascem os rios", Editorial Presença,
Lisboa, 1998, p 25.
.