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23/01/13

 
    " Qual o Voo Do  Poeta? "
 
 
Aqui chegados a esta catedral aberta
logo nos disseram que nós, poetas,
espécie zoológica de antenas cegas,
nada tinhamos que ver
com uma missa de defuntos.
 
Houve um pescador afogado. Fraca coisa
para poetas alheios a trivialidades
e a fait-divers. Alguém nos alertou:
"É ver como o afogado se vai erguer
do seu catafalco de bambus
e voar nas asas
do seu ventre inchado de balão".
 
E mais: "Todos os que andaram
com ele neste mar de tufões,
mas ainda vivos, hão-de um dia voar do mesmo modo,
o trajecto em V das aves
que para onde uma vai todas vão."
 
Vimo-las já sobre a praia de Cheoc Van,
praia nem sempre de esperanças.
 
Eu e tu entrelaçamos os dedos.
Pertencíamos, poetas, também a um mundo de asas,
mas as nossas não eram para a força daquele voo.
 
 
  Torres, Alexandre Pinheiro. Trocar de Século. Macau: Fundação Oriente, 1995, p 79.
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22/01/13



  " As Vidas Todas Numa Só "


Abaixei-me para apertar os cordões dos sapatos
e então desabou toda a cidade em cima de mim:
arranha-céus muito mais precários
que a filigrana de São Paulo,
a ponte da Taipa,
e até a Universidade do Saber Nenhum.

Pessoas desconhecidas cujas vidas só adivinhando,
nenhuma sem nada a ter de ver comigo,
arrancaram-me dos escombros.

Sorriram, olhos quase fechados (uma pequena janela?)

E, de súbito, soube das suas vidas:
a filigrana de São Paulo na estrada de Damasco.

Foi este o incêncio sem palavras.

Por isso tais vidas só de olhá-las tão alheias
não me deixam em paz.
Persigo-as desde o Beco das Três Noras
até ao dos Fogões ou das Latrinas
ou à seca Fonte da Inveja.

Tais vidas vivo-as:
são também minhas.
Estão-me junto aos olhos como óculos.


  Torres, Alexandre Pinheiro. Trocar de Século. Macau: Fundação Oriente, 1995, p 21.
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