30/05/10


                 "Sobre navios e navegantes"


Onde quer que se imagine, em Banguecoque, Dublin, Valparaíso, é sempre tempo de navegar. Parte-se apenas com a roupa do corpo por noites a fio em direção ao mar. Cada aventura tem seu preço. Você paga pela viagem com o seu desespero e segue para o norte, emigrante. Eu pago com a minha fé e vou para o sul, quase náufrago. Você chegará muito cedo e eu talvez tarde de mais. Podemos também estar juntos, debruçados sobre o mesmo convés e, no entanto, eu não vejo o que você vê, o meu destino não é igual ao seu. Há quem navegue só para chegar, oh Senhor, perdoai-os, eles não sabem o que fazem. Uns que vão toda manhã ao porto para ouvir o apito da partida, sem coragem de embarcar. Existem ainda os passageiros clandestinos, que viajam em surdina para jamais serem notados. E os que se deixam socorrer à deriva, abraçados à costela de um bote, e que agora, a bordo de um transatlântico, redescobrem o mapa das águas. E os marujos, como esquecê-los? Esses vivem permanentemente entre dois continentes, guiando-se pelas estrelas, medindo a longitude no vento, surpreendendo em toda nova jornada sua primeira jornada. Algumas distâncias são curtas, mas leva-se uma eternidade para atravessá-las. Outras não exigem mais do que um espírito de ilha, descentrado, selvagem e solitário que as torna memoráveis. As condições de viagem não devem ser ignoradas: mudanças de rota, variações de clima, quão viçosa ou antiga a embarcação se mostra, tudo isso influi no prazer do itinerário. Cruzar o horizonte debaixo de um temporal não será o mesmo que velejar sob o sol. Pode o trajeto ser retilíneo, sem grandes acontecimentos nem sobressaltos, e o navio ser ele mesmo este grande acontecimento, este sobressalto. E pode o navio pretender visitar lugares extraordinários com uma velocidade de 30 nós, abrigando em todo o seu comprimento mais de mil tripulantes, e a meio do caminho o casco se abrir e tudo afundar de um só golpe. Em qualquer canto do mundo eles esperam. Na crista do armário, no estaleiro da gaveta trancada à chave, na vasta esplanada de uma estante, lá estão eles, a postos. Como os anos são breves e como o dia é longo! - até que algum rio venha movê-los, tirá-los da margem. Alguém que, num simples gesto de mãos, será capaz de lhes devolver o oceano.
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Mariana Ianelli in " um rio de contos - Antologia Luso-Brasileira" (Org. Celina Veiga de Oliveira e Victor Oliveira Mateus), Editorial Tágide, Dafundo, 2009, p 178.
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29/05/10

"a indisponibilidade dos bichos colhidos (...) e guardados... "


Os navios são títulos podres nos dentes a mar
gos
e a vigência dos dentes são incorporações e
s
cotilhas pelas small daily things c ya
.
a indisponibilidade dos bichos colhidos no
final das petulâncias e guardados em
pérgulas pela cabotagem dos pomares
oblíquos
deixa as maçãs polpudas
a improvisar brancas de neve insufláveis
em alto teor de vermelho
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Rita Grácio in "Livro de Cabeceira", IV Bienal de Poesia de Silves, 2010.
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27/05/10


" - o contra senso "
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dizem que os poetas
descem as escadas argênteas e sabem.se a par e
passo
com os astros que gravitam
na placidez do afago de uma mão
dizem que
se movem em passos uniformes ditados pela lei da
gravidade
como as estrelas cujas constelações se igualam no
brilho e
se atraem na dança cúmplice do verbo
quais formigas que estabelecem comunicações
utilizando as antenas para conspirar
são pequenas partículas de um campo minado
onde as deusas e os demiurgos gostam de copular
ninguém se divide por zero -
afirmam os matemáticos
- quem sou eu para os desmentir?
um argopoeta que entra na dança para contradizer
os deuses
um contra senso
um arrepio exponencial que
tange a harpa de Thales
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em silentes acordes
concebidos a um ritmo incerto e numa só dimensão
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Gabriela Rocha Martins in "Livro de Cabeceira", IV Bienal de Poesia de Silves, 2010.
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Nota - As minhas desculpas à Gabriela, mas não me foi possível
colocar à direita o 1º e o 6º versos, tal como ela tem no original.
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25/05/10

"Cantaste?! Pois agora dança!"

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"A cigarra e a formiga"

Tendo a cigarra em cantigas
Folgado todo o verão,
Achou-se em penúria extrema
Na tormentosa estação.

Não lhe restando migalha
Que trincasse, a tagarela
Foi valer-se da formiga,
Que morava perto dela.

Rogou-lhe que lhe emprestasse,
Pois tinha riqueza e brio,
Algum grão com que manter-se
Té voltar o aceso estio.

"Amiga" - diz a cigarra -
"Prometo, à fé de animal.
Pagar-vos antes de agosto
Os juros e o principal."

A formiga nunca empresta
Nunca dá, por isso junta:
"No verão em que lidavas?"
À pedinte ela pergunta.

Responde a outra: " eu cantava
Noite e dia, a toda a hora."
"Oh! Bravo! - torna a formiga -
"Cantavas? Pois dança agora!"

Jean de La Fontaine (Tradução de Bocage), Editora Brasil América,
Rio de Janeiro, 1985.
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24/05/10

"Y, sin embargo, qué perseverancia "


"Oficio de ebanista"
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El furor de escribir tarde tras tarde,
esa tarea vana
que nadie te encomienda,
y que nadie le importa demasiado.
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Y, sin embargo, qué perseverancia
sostiene el andamiaje de tus letras,
cuántas veces te has dicho entre los labios
los versos que querrías componer.
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Francisco José Martínez Morán in "Tras la puerta tapiada", Ediciones Hiperión,
Madrid, 2009, p 21.
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21/05/10

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"Emaranhado"


Muitas vezes
Já se sabe
Que se joga na inanidade do Jogo
O que não nos abriga de todas as aflições.
Por vezes,
Procuram-se as forças iniciais
Julgando-as como não aprisionadas
E o consciente segreda-nos (prudentemente)
A não gritar
Alto
O desamparo.

Teresa Vieira in "De Nada Novo", Dinalivro, Lisboa, 1996, p 40.
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20/05/10

" quem fui quando passei/ aqui tão longe (...)? "

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"Quem"

quem me habita provisória
nesta paisagem súbita
onde sou?

quem chora pranto antigo
nos meus olhos contemporâneos
desta viagem?

quem fui quando passei
aqui tão longe
de onde sou agora?

Helena Parente Cunha in "Além de estar", Imago Edª Lda,
Rio de Janeiro, 2000, p 169.
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19/05/10

"De que, nos gostos seus, que são de vento, "


" Do desejo "

Onde porei meus olhos que não veja
A causa, donde nasce meu tormento?
A que parte irei co pensamento
Que pera descansar parte me seja?

Já sei como s'engana quem deseja,
Em vão amor firme contentamento,
De que, nos gostos seus, que são de vento,
Sempre falta seu bem, seu mal sobeja.

Mas inda, sobre claro desengano,
Assim me traz est'alma sosigada,
Que dele está pendendo o meu desejo;

E vou de dia em dia, de ano em ano,
Após um não sei quê, após um nada,
Que, quanto mais me chego, menos vejo.

Diogo Bernardes (1520 ou 1530? - 1605)
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18/05/10

"Quiero volver a tierras niñas;/ Llévenme a un blando país de águas."

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"Agua"

Hay países que yo recuerdo
como recuerdo mis infancias.
Son países de mar o río,
de pastales, de vegas y aguas.
Aldea mía sobre el Ródano,
rendida en río y en cigarras;
Antilla en palmas verdi-negras
que a medio mar está y me llama;
roca lígure de Portofino,
mar italiana, mar italiana!

Me han traído a país sin río,
tierras-Agar, tierras sin agua;
Saras blancas y Saras rojas,
donde pecaron otras razas,
de pecado rojo de atridas
que cuentan gredas tajeadas;
que no nacieron como un niño
con unas carnazones grasas,
cuando las oigo, sin un silbo,
cuando las cruzo, sin mirada.

Quiero volver a tierras niñas;
llévenme a un blando país de aguas.
En grandes pastos envejezca
y haga al río fábula y fábula.
Tenga una fuente por mi madre
y en la siesta salga a buscarla,
y en jarras baje de una peña
un agua dulce, aguda y áspera.

Me venza y pare los alientos
el agua acérrima y helada.
Rompa mi vaso y al beberla
me vuelva niñas las entrañas!

Gabriela Mistral in "Antología Poética" (org. Hugo Montes Brunet),
Editorial Castalia, 1997, p 101.
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16/05/10

"La tierra a la que vine no tienne primavera:/ tienne su noche larga que cual madre me esconde."

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"Desolación"

La bruma espesa, eterna, para que olvide dónde
me ha arrojado la mar en su ola de salmuera.
La tierra a la que vine no tiene primavera:
tienne su noche larga que cual madre me esconde.

El viento hace a mi casa su ronda de sollozos
y de alarido, y quiebra, como un cristal, mi grito.
Y en la llanurra blanca, de horizonte infinito,
miro morir inmensos ocasos dolorosos.

A quién podrá llamar la que hasta aquí ha venido
si más lejos que ella sólo fueron los muertos?
Tan sólo ellos contemplan un mar callado y yerto
crecer entre sus brazos y los brazos queridos!

Los barcos cuyas velan blanquean en el puerto
vienen de tierras donde no están los que no son míos;
sus hombres de ojos claros que no conocen mis ríos
y traen frutos pálidos, sin la luz de mis huertos.

Y la interrogación que sube a mi garganta
al mirarlos pasar, me desciende, vencida:
hablan extrañas lenguas y no la conmovida
lengua que en tierras de oro mi podre madre canta.

Miro bajar la nieve como el polvo en la huesa;
miro crecer la niebla como el agonizante,
y por no enloquecer no cuento los instantes,
porque la noche larga ahora tan sólo empieza.

Miro el llano extasiado y recojo su duelo,
que viene para ver los paisajes mortales.
La nieve es el semblante que asoma a mis cristales:
siempre será sul albura bajando de los cielos!

Siempre ella, silenciosa, como la gran mirada
de Dios sobre mí; siempre su azahar sobre mi casa;
siempre, como el destino que ni mengua ni pasa,
descenderá a cubrirme, terrible y extasiada.

Gabriela Mistral in "Antología Poética" (Org. Hugo Montes Brunet),
Editorial Castalia S. A., Madrid, 1997, pp 55 - 56.
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14/05/10

"Era mais fácil se o que resta fosse/ inesgotável e não um resto"

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"Depois de Tudo"

Mas era provavelmente
errado desde início o fim

esperado Amor inteiramente
consagrado à dor de querer

explicar o inexplicável sentido
do que não faz sentido

palavras ou actos tanto faz
Era provavelmente absurdo

pensar as razões e não razões
com que digamos sobra sempre

uma razão visível ou perdurável
para a dor da memória ainda quente

Era mais fácil se o que resta fosse
inesgotável e não um resto

para provarmos a única verdade
saber que tudo acaba quando se começa

depois de tudo ser já depois do mundo
Sobra a manifesta verdade

da ternura que quer intermitente
mentir e obedecer à memória cansada

rebentando na escrita
No poema um eco surdo
traz a permanente certeza

o fim da estrada, a certeza errada

António Carlos Cortez in "Depois de Dezembro", Editora Licorne, s/c, 2010, pp 49 - 50.
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13/05/10

Ainda o lançamento do Nº 2 da "Revista Inútil"...

Acabei de encontrar, na net, uma crítica do José do Carmo Francisco, bem como os rostos de alguns amigos. Infelizmente não me foi possível estar presente neste lançamento, mas o ver agora o meu nome no artigo do "Zé", faz-me postar todo este material. Na foto, e da esquerda para a direita: Ana Lacerda, Maria Quintans, Filomena Cautela e João Concha. Já agora aproveito para duas inconfidências: a Maria Quintans participa numa Antologia de Poesia que organizei e que sairá nas próximas duas/três semanas e o João aceitou o meu pedido para fazer a capa do meu próximo livro. Duas "dádivas" de peso!!!
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"Críticas & Opiniões
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O título desta Revista nasce na frase de Oscar Wilde: "Podemos perdoar um homem que faça uma coisa útil desde que não a admire. A única desculpa para fazer uma coisa inútil é ser objecto de intensa admiração.
São três os directores (Maria Quintans, Ana Lacerda e João Concha) e este número de Abril de 2010 foi lançado na "nova" Buchholz na Duque de Palmela.
Está tudo diferente menos o piano.
Não é uma revista só de jovens poetas; há um equilíbrio entre novíssimos e veteranos. Por exemplo lemos aqui poemas de Amadeu Baptista, Victor Oliveira Mateus, Nuno Júdice, Joaquim Cardoso Dias, Casimiro de Brito e José Luís Peixoto.
Dois excertos dos novos como convite à leitura do todo da Revista.
De Catarina Nunes de Almeida: "Passei toda a manhã debruçada sobre a moldura/ agora tem um pequeno terreiro e cresce por lá de toda a fruta/ até aves e o teu cabelo está mais tenro mansinho/ dentro da luxúria do vidro./ O sol mastigou-te como as estátuas."
De Rui Almeida: "Os dedos, as coisas/ As ruas e tudo o que nelas passa/ As paredes dos quartos/ Os animais, as árvores/ São quase tempo./ Os segredos e os minutos de espera/ Ocupam espaço./ Vou dormir em vez de falar do tempo/ Dizer dos barcos o contorno no/Breve oceano onde se movem. Vou/ Respeitar os mortos enquanto me doer.
Além do interesse dos poemas há um evidente bom gosto gráfico nesta nova Revista."
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José do Carmo Francisco in "Blogue Aspirina B".
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12/05/10

"Confundo-me quando percorro/ do esquecimento o mar// em que mergulhei um dia "

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"Maré Vazia"

É mais o que esqueço quando lembro
Ninguém dá nome a este tempo
imerso em dúvidas
Às perdas sobrevém

(de tanto me esquecer) a tenebrosa
sensação de que invento
a verdade inflamável a odiosa
matéria da mentira em movimento

de palavras até tudo s'esgotar
Confundo-me quando percorro
do esquecimento o mar

em que mergulhei um dia
(o fingimento é a água cujo corpo
sorvo resgatando-me à maré vazia)

António Carlos Cortez in "Depois de Dezembro", Editora Licorne,
s/c., 2010, p 26.
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11/05/10

Herbert Haag, padre dominicano suiço, teólogo católico com um excepcional conhecimento da Bíblia, Professor Emérito da Universidade de Tubinga, nasceu em 1915. Na década de 60 o seu livro "Despedida do Diabo" defende não haver fundamento bíblico para a crença no diabo. Haag foi também um grande defensor do diálogo ecuménico e inter-religioso. As suas posições progressistas levaram a que a Conferência Episcopal Suiça lhe retirasse a confiança, o que não impediu Haag de deixar escrito que morria como católico. Morreu com 86 anos em Lucerna e uma cerimónia de homenagem foi-lhe prestada então, tendo sido presidida pelo próprio Hans Kung.
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"No mundo, não existe nenhuma pessoa investida com semelhantes poderes. Contra uma decisão do Papa não existe qualquer espécie de recurso.
A seguir ao Papa, o segundo órgão constitutivo da Constituição da Igreja "é o bispo que, em comunhão com o presbitério, tem a tarefa de pastorear o rebanho de Deus". Também desta formulação do Concílio Vaticano II é deduzido que "os bispos não podem ser encarados como meros delegados do Papa nas suas dioceses, por estarem investidos num poder directo". Por mais correcta que seja esta interpretação do concílio, no entanto, o que acontece é precisamente o contrário. Hoje, os bispos são cada vez mais funcionários públicos do Vaticano. Não é, por isso, por acaso que o Concílio Vaticano II repete inúmeras vezes serem os bispos sucessores dos apóstolos."
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Herbert Haag in "A Igreja Católica ainda tem futuro?", Notícias Editorial, Lisboa,
2001, p 83.
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"A resposta dá-se rapidamente: a Igreja Católica tem futuro se tiver a coragem e a força de promulgar uma nova Constituição. Ora a nova Constituição, tendo presente o fracasso das anteriores, deverá corresponder a estes três critérios: 1- O princípio de "respeitar a Igreja universal" não poderá ser critério determinante. Os bispos não poderão, assim, ir sempre adiando as reformas urgentes. Cada conferência episcopal é que deve livremente determinar quais são as necessidades prementes da sua região. (...)2- Não deverá existir mais uma Igreja de duas classes sociais: essa estrutura foi criada pela Igreja e, por mais que ela em tempos antigos tivesse razão de ser, actualmente não se justifica a título nenhum. A Igreja já não poderá continuar a ser uma Igreja do clero, terá de se transformar numa comunidade de discípulas e discípulos de Jesus com igualdade de direitos para todos. Não haverá privilégios para homens "consagrados", enquanto os restantes não tiverem os mesmos direitos. Deverá, também, reconhecer igualdade de direitos para homens e mulheres. 3 - A igreja não poderá continuar a ser uma monarquia absoluta, em que uma só pessoa governa a totalidade do mundo católico. Deverá existir um colégio composto de bispos, de homens e de mulheres, representativos de todos os continentes.(...) Estes três critérios levam-nos a concluir pela necessidade inadiável de criar um novo Diireito Canónico orientado pelo Evangelho."
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Herbert Haag, in op. cit., pp 103 - 104.
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10/05/10

Acerca da síndrome da morte súbita.

O livro acima indicado foi traduzido para português em 2002. São mais de 500 páginas de jornalismo de investigação. Ele remete-nos igualmente para obras a não perder, como por exemplo o "Em nome de Deus" de David Yallop (reeditado recentemente em Portugal), onde se aborda a estranha morte de João Paulo I, e ainda para outros livros como "Wojtyla, el ultimo cruzado - Un papado medieval en el fin del milenio" (não sei se existe em português, pois só o consegui encontrar em castelhano).
Robert Hutchison, nasceu no Canadá, estudou na Universidade de McGill em Montreal. Foi correspondente do Sunday e do Daily Telegraph e escreveu vários livros de investigação em torno de diversas áreas. Os seus trabalhos mereceram-lhe alguns prémios. Retirou-se para a Suiça onde vive há trinta anos.
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"Escrivá de Balaguer, acerca de quem os acessores nas Causas dos Santos afirmariam "ter sobressaído na história da espiritualidade ao nível dos tradicionalmente notáveis", propôs munir Pio XII com um corpo de Guerreiros Frios capazes de exercer uma influência católica discreta nos sectores económicos chave e ministérios por todo o mundo livre. Isto representava uma nova fase no desenvolvimento do Opus Dei, exigindo uma mudança no tipo de pessoas recrutadas para a Obra. A perspectiva original transferia-se assim do letrado universitário para o banqueiro, director de companhia e administrador público(...). O Opus Dei, portanto, não estava interessado em varredores de rua e sugerir o contrário seria hipocrisia(...) a única forma de estabelecer um marco na sociedade, estado ou instituição é dominando o seu cume, conselho que Escrivá de Balaguer seguiu assiduamente. Mas Escrivá de Balaguer foi mais longe do que Herrera, subordinando a sua agenda política a um culto de discrição(...).
Para melhor desempenhar o seu apostolado, a procura de influência pelo Opus Dei tinha de ser discreta para que os seus "inimigos" - e já tinha um considerável número - fossem mantidos na escuridão quanto às suas reais intenções. Para proteger a Igreja o Opus Dei tinha de controlar o poder eclesiástico. Com esta finalidade, Escrivá de balaguer antecipou a sua promoção a bispo. Mas para o consumo público, o seu culto de discrição exigia uma atitude contrária de humildade."
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Robert Hutchison in "O Mundo Secreto do Opus Dei", Prefácio- Edição, Lda., Lisboa,
2002, pp 137 - 138.
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" Depois de adoptar o nome de João Paulo I, Luciani anunciou que preferia ser Pastor em vez de Pontífice, e que aquela pompa não era para ele. Disse à gente de Roma que tencionava empenhar o seu Pontificado na aplicação dos ensinamentos do Segundo Concílio Vaticano. Isso por si mesmo, obervou mais tarde Calvi, era uma coisa perigosa para se dizer. Havia uma comunidade dentro da Igreja, fundamentalista até ao âmago, que estava a tentar rever - entenda-se corrigir -as conclusões do Vaticano II.(...) Embora Luciani não o soubesse, os quatro prelados que ele pretendia remover da Cúria eram essenciais para (...) Durante essa noite, após trinta e nove dias no lugar, João Paulo I morreu."
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Robert Hutchison, op. cit., pp 305 - 311.
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"Na sexta-feira 22 de Outubro de 1982, o oponente mais implacável do (...) o arcebispo Benelli de Florença, sofreu um violento ataque cardíaco - infarto miocardico acuto, dizia o boletim médico. Mas Benelli, de sessenta e dois anos de idade - um toscano cordial e "bon vivant" - tinha desfrutado de uma saúde de ferro, afirmava o seu secretário pessoal. Trabalhava durante longas horas e raramente dormia mais de quatro horas por noite. Os primeiros sinais de problemas de coração começaram apenas dois dias antes e morreu a 26 de Outubro de 1982. (...) Benelli tinha vindo a preparar-se para se opor a que o Opus Dei se transformasse numa Prelatura Pessoal na reunião dos cardeais."
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Robert Hutchison, op. cit., pp 370 - 371.
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09/05/10

A Igreja Latina, o conservadorismo, a vida concreta dos homens, aqueles que há muito vão ousando e ...

As classes dominantes em sua estratégia hegemónica procurarão incorporar a Igreja a serviço da ampliação, consolidação e legitimação de sua dominação, especialmente para conseguir a aceitação da hegemonia por todos os indivíduos e grupos sociais. O campo religioso-eclesiástico é fortemente pressionado a se organizar de tal forma que se ajuste aos interesses das classes hegemónicas mediante vários tipos de estratégias econômicas, jurídico-políticas, culturais e até repressivas. A Igreja desempenha então a função conservadora e legitimadora do bloco histórico imperante.
Entretanto não é fatal que a Igreja se componha com o bloco histórico hegemónico. As classes subalternas solicitam, por sua vez, a Igreja em sua estratégia por mais poder e autonomia em face das dominações que sofrem. A Igreja pode secundar e justificar a ruptura do bloco histórico e prestar-se a um serviço revolucionário. Os fiéis estão presentes tanto de um lado quanto do outro; a Igreja á atravessada, inevitavelmente, pelos conflitos de classe e pode assumir uma eventual função revolucionária quanto uma função fortalecedora do bloco hegemônico. Estas duas possibilidades não são objecto de golpes de vontade ou opções que alguém pode ad libitum tomar. Depende do tipo de articulação que no processo histórico-social o campo religioso-eclesiástico estabeleceu com as várias classes. Pode ocorrer que no processo referido a Igreja lentamente reproduziu em seu corpo a estrutura do bloco hegemônico. O campo religioso-eclesiástico se estrutura também de forma dissimétrica, espelhando destarte o campo social hegemônico. Evidentemente não se trata de uma reprodução mecânica, porque fica sempre preservada a autonomia relativa do campo religioso-eclesiástico. Dizendo que é relativamente autônomo, afirmamos que não é totalmente determinado pelo campo social mas nem totalmente independente ; ele, a partir de sua especificidade irredutível (a experiência cristã, sua expressão objectiva em discursos e práticas, seu carácter institucional pelo qual se reproduz, conserva, difunde, particularmente, mediante um corpo de peritos e hierarcas), imediatamente e retrabalha as influências sociais.
Vejamos, rapidamente, como a Igreja se articulou ora com o bloco hegemónico ora com as classes subalternas. Um modo de produção dissimétrico que foi lentamente tomando conta de uma formação social, impondo-se um processo de expropriação dos meios de produção material e simbólica, acabou predominando também dentro da Igreja: criou-se (...) um processo de expropriação dos meios de produção religiosa por parte do clero contra o povo cristão. Primitivamente o povo cristão participava do poder da Igreja, nas decisões, na eleição dos seus ministros; depois começou a ser apenas consultado e por fim, em termos de poder, totalmente marginalizado e expropriado de uma capacidade que detinha (...) Criou-se um corpo de funcionários e peritos encarregados de atender o interesse religioso de todos mediante a produção exclusiva por eles de bens simbólicos a serem consumidos pelo povo agora expropriado.
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Leonardo Boff in "Igreja: Carisma e Poder", Editora Ática, São Paulo, 1994, pp 190 - 191.
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08/05/10

"O que sempre doeu/ ainda dói. "

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"De repente a certeza..."

De repente a certeza
da extrema solidão.
Três amores (são quatro)
a vida e seus compassos
um canário e um cão.

Nada é meu, nunca foi.
O que sempre doeu
ainda dói.

Renata Pallottini in "Obra Poética", Editora Hucitec, São Paulo, 1995, 284.
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"(...) numa imprecisa/ tensa evocação. "

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A carne solta-se
dos ossos. tudo se dirime
por um abalo

sob as nascentes inguinais
do fogo. elas

vêm por dentro
do tear e do homem

como cutelos numa imprecisa
tensa evocação.

Pedro Gil-Pedro in "Para que ninguém sobreviva ao perdão",
Cosmorama Edições, Maia, 2008, p 35.
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07/05/10

"(...) a crise/ de programada que foi"

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"Veredas de Lúcifer"

Virulenta é a crise
de programada que foi
e orquestrada
para um tempo de expurgo e razia,
uma limpeza nos locais de trabalho.
É como o sexo dos anjos,
a que convém não atribuir sexo,
míngua do espaço nos orfanatos.
Somente carecia-se de bodes
expiatórios, de comadrio no empreendimento
e de novo centro atractor de toda
a riqueza.

Que fazer? com uma entidade angélica
pervertida na sua natural neutralidade,
afinal. Que fazer quando o desejo
colectivo é seguir igual, fingir
que não se chegou à orla do vulcão?...
quando impera a absoluta separação
entre as condições objectivas e as subjectivas,
quando o real se pauta pelos tablóides,
quando o tranbolhão está aí
amortecido. Ver, sentir tudo isto,
ser-se anjo, ser-se um anjo
excedentário, caído.

Paulo da Costa Domingos in " a escrita", &etc., Lisboa, 2010, p 42.
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05/05/10

"... saboreava a felicidade subtil de falar dela sem perigo. "

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Pela primeira vez havia seis meses, os seus pés pisavam o caminho familiar. Desabotoou o sobretudo.
"Caminhei depressa de mais", disse consigo. Recomeçou a andar, parou novamente e, desta vez, o seu olhar visou um ponto preciso: a cinquenta metros, de cabeça descoberta, e de camurça na mão, o porteiro Ernest, o porteiro de Léa, polia os cobres da grade, na frente da moradia de Léa. Chéri pôs-se a trautear enquanto caminhava, mas apercebeu-se, ao ouvir o som da própria voz, de que nunca trauteava, e calou-se.
- Então, Ernest, sempre a trabalhar?
O porteiro regozijou-se com certa reserva.
- O Sr. Peloux! Estou encantado por vê-lo, não está nada mudado.
- O mesmo se passa consigo, Ernest. A senhora está bem?
Falava de perfil, atento às persianas fechadas do primeiro andar.
- Julgo que sim, mas nós só recebemos alguns bilhetes-postais.
- Donde? de Biarritz, não?
- Creio que não.
- Onde está a senhora?
- Não sou capaz de dizer(...)
Chéri tirou a carteira, ao mesmo tempo que olhava Ernest com um ar acariciador.
- Oh, Sr. Peloux, dinheiro entre nós? Decerto não pensa em tal. Mil francos não fariam falar um homem que nada sabe.(...)
Chéri subiu até à praça Victor-Hugo, fazendo rodopiar a bengala. Tropeçou duas vezes e esteve quase a cair(...) Chegado à balaustrada do metropolitano, debruçou-se, inclinado para a sombra negra e rósea do subterrâneo, e sentiu-se esmagado de fadiga.(...)
- E Léa? - perguntou de repente Desmond.
Chéri não tremeu: estava justamente pensando em Léa.
- Léa? Está no Sul. (...) Mas Chéri, ao mesmo tempo circunspecto e aturdido, não parou de falar de Léa. Disse coisas sensatas, impregnadas de um bom senso conjugal. Gabou o casamento, ao mesmo tempo que prestava justiça às virtudes de Léa. Cantou o carácter submisso da jovem esposa, para ter ocasião de criticar o carácter resoluto de Léa (...) E enquanto assim falava, abrigado por trás das palavras imbecis que uma desconfiança de amante perseguido lhe segredava, saboreava a felicidade subtil de falar dela sem perigo.
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Colette in "Chéri", Editorial Presença, Barcarena, 2009, pp 70 - 74 (Tradução de José Saramago).
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