30/05/10


                 "Sobre navios e navegantes"


Onde quer que se imagine, em Banguecoque, Dublin, Valparaíso, é sempre tempo de navegar. Parte-se apenas com a roupa do corpo por noites a fio em direção ao mar. Cada aventura tem seu preço. Você paga pela viagem com o seu desespero e segue para o norte, emigrante. Eu pago com a minha fé e vou para o sul, quase náufrago. Você chegará muito cedo e eu talvez tarde de mais. Podemos também estar juntos, debruçados sobre o mesmo convés e, no entanto, eu não vejo o que você vê, o meu destino não é igual ao seu. Há quem navegue só para chegar, oh Senhor, perdoai-os, eles não sabem o que fazem. Uns que vão toda manhã ao porto para ouvir o apito da partida, sem coragem de embarcar. Existem ainda os passageiros clandestinos, que viajam em surdina para jamais serem notados. E os que se deixam socorrer à deriva, abraçados à costela de um bote, e que agora, a bordo de um transatlântico, redescobrem o mapa das águas. E os marujos, como esquecê-los? Esses vivem permanentemente entre dois continentes, guiando-se pelas estrelas, medindo a longitude no vento, surpreendendo em toda nova jornada sua primeira jornada. Algumas distâncias são curtas, mas leva-se uma eternidade para atravessá-las. Outras não exigem mais do que um espírito de ilha, descentrado, selvagem e solitário que as torna memoráveis. As condições de viagem não devem ser ignoradas: mudanças de rota, variações de clima, quão viçosa ou antiga a embarcação se mostra, tudo isso influi no prazer do itinerário. Cruzar o horizonte debaixo de um temporal não será o mesmo que velejar sob o sol. Pode o trajeto ser retilíneo, sem grandes acontecimentos nem sobressaltos, e o navio ser ele mesmo este grande acontecimento, este sobressalto. E pode o navio pretender visitar lugares extraordinários com uma velocidade de 30 nós, abrigando em todo o seu comprimento mais de mil tripulantes, e a meio do caminho o casco se abrir e tudo afundar de um só golpe. Em qualquer canto do mundo eles esperam. Na crista do armário, no estaleiro da gaveta trancada à chave, na vasta esplanada de uma estante, lá estão eles, a postos. Como os anos são breves e como o dia é longo! - até que algum rio venha movê-los, tirá-los da margem. Alguém que, num simples gesto de mãos, será capaz de lhes devolver o oceano.
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Mariana Ianelli in " um rio de contos - Antologia Luso-Brasileira" (Org. Celina Veiga de Oliveira e Victor Oliveira Mateus), Editorial Tágide, Dafundo, 2009, p 178.
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