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21/10/13



          " Todas são ridículas "

  Joaquina escrevia cartas de amor, quase todos os
dias, ao seu "adorado" António. Acabava com "tua para
sempre" na sua letra redonda e miúda. Dobrava
cuidadosamente a folha, de linhas azuladas e
introduzia-a no envelope, que tinha forro violeta.
Depois de escrito o endereço postal, metia a carta por
uns segundos no decote, como para lhe transmitir
algo da própria pele. Sandra recebeu um sms do Hugo.
Guardou nas mensagens recebidas para reler de novo.
Era do rapaz que tinha conhecido na véspera. Trazia
muitos sinais redondos a enviar sorrisos e muitas
abreviaturas de palavras, como por exemplo: Bjs.
tinha armazenado na pasta respectiva do pequeno
celular, várias mensagens daquelas, do Tiago, do
Rodrigo, do Diogo, do Afonso... Só ainda não tinham
descoberto a abreviatura da palavra "amor". Ignora-se
porque certas palavras resistem à queda das letras,
por muito tempo...


  Lourenço, Inês. Ephemeras. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2012, p 27.
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   " Ranho  Baba  Merda "

 - Mas isso é um verso?
 - É.
 - Mas esse gajo não é um que fala de gaivotas, e
tretas de sol e gatos?
 - Pois, fala de todas as tretas que há no mundo e de
outras por haver. Já estou a notar que és daqueles que
acham que a poesia ou tem asinhas ou tesão. A
metafísica e o tesão ou a sua falta, podem dispensar-
se. Há tanta outra coisa para olhar, não?
 - Mas esses tipos, os tais poetas, não fazem uns
livros merdosos, fininhos, só com um bocado da
página escrita?
 - Piadola pouco original, essa. Estás farto de saber
que uma frase pode dizer mais coisas do que meia
dúzia de best-sellers digestivos e imbecis.
 - Mas esses é que interessam à maralha e têm capas
porreiras. Não achas que a vida é imbecil e temos de
procurar digeri-la com capas porreiras?
 - É uma maneira de ver a coisa. Se calhar, há fases
assim...
 - Bem, pensando melhor, "merda" e "gaivotas" têm
muito a ver, porque na minha rua os tejadilhos dos
carros fartam-se de apanhar lostras desses poéticos
bichos.
 - Não ajavardes...
 - Afinal, quais é que são os bons poetas?
 - Não há um poetómetro, claro, apesar dos esforços
de fazedores de cânones. A boa poesia tem tudo: uma
coisa e o seu contrário.
 - Como assim?
 - Olha para este outro verso de mesmo gajo, dos
gatos e do sol, como dizes, mas também da baba, ranho
e merda:
 Não colecciones dejectos o teu destino és tu.


  Lourenço, Inês. Ephemeras. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2012, pp 40 - 41.
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06/03/12

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  " Vírus "

 
Há uma tristeza inerme nos feriados,
uma entrega do pulso das cidades
a um vírus insidioso
habitante das janelas onde
nada está para chegar
ou para partir. Lá dentro cumpre-se o decálogo
dos cansaços. Cá fora perdemo-nos
no planetário do asfalto, na vã arritmia
dos semáforos acesos. As fachadas
transbordam de umbrais vazios
e as frontarias bancárias da Baixa
semelham basílicas fechadas ao culto. À beira-mar
grupos de catalépticos auditores da Bola
oriundos de algum centro comercial
passeiam filhos, esposas e animais de companhia
até às esplanadas da outra margem,
para regressos na fila de escapes do crepúsculo.

  Lourenço, Inês. Câmara Escura, Uma Antologia. S/c.: Língua Morta, 2012, p 16.
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 " Arte Poética III "


O poeta disse: a inspiração
não existe. De há muito, as musas
ficaram desempregadas. E desvendou
algum método de trabalho
à parca assistência, altivo e contemporâneo,
enquanto lá fora o mar e as altas palmeiras
resistindo ao tráfego do fim de tarde,
pouco se interessavam
pela carpintaria dos versos.

  Lourenço, Inês. Câmara Escura, Uma Antologia. s/c.: Língua Morta, 2012, p 21.
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22/08/10

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"Os Livros"


Os livros duram séculos e
falam da melodia da chuva,
dos rios e dos mares, das fontes,
dos húmidos beijos dos
amantes, mas também

morrem despedaçados num
qualquer temporal que parte
as vidraças e lhes tolhe as páginas
numa brutal invasão líquida.

E falam do fogo
das paixões, de estrelas
a arder no infinito,
mas o convívio das chamas
é-lhes vedado, apesar
da torpe ignorância
a isso os ter condenado
tantas vezes.

Quantos naufrágios e incêncios
os destruiram, para depois
ressurgirem múltiplos,
audazes amigos tão antigos e
tão novos.

Inês Lourenço in "Coisas que nunca", & etc., Lisboa, 2010, pp 34 - 35.
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18/08/10


" Berceuse"
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Canção de embalar é talvez
demasiado melódico e além disso
um desuso. Já ninguém canta a adormecer
os filhos. Coisa imprópria para o crescimento
de criaturas autónomas
e hiper-activas que devem fugir
ao sedentarismo e à obesidade.
O Canal Panda faz isso muito melhor
ou qualquer brinquedo mecânico e perfeito.
.
Também já ninguém canta
nos lavadouros públicos ou nos campos. Os
únicos campos onde se cantam as brumas
da memória são os estádios. Os
pedreiros deixaram de cantar à pedra:
.
Hou! pedra, hou!
Hou! linda pedra, hou!
.

e as canções de trabalho (uma espécie
de berceuses da fadiga) passaram
a matéria etnográfica. Por isso os
estudantes de português já não entendem
.
Descalça vai para a fonte
Lianor pela verdura ou
Sete anos de pastor Jacob servira.
.

Mesmo o Schone Mullerin do Schubert que
se ouve ainda nos concertos clássicos
com vaga subserviência patega
(porque em alemão, não se percebe nada),
só os amantes do lied reconhecem.
.
E se percebessem?
A moleira já não seria schon
e não teria 80 anos, bem bonito rol
como a de Junqueiro,
pela estrada fora toc, toc, toc, mas agora reclusa
numa casa geriátrica, em contagem crescente
da inacção.
.
Muito pouco,
tão pouco, para um mundo
embalado na pesquisa espacial
de água em Marte.
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Inês Lourenço in "Coisas que nunca ", & etc, Lisboa, 2010, pp 23 - 24.
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04/05/09




      "Domingo"


Hoje é o dia dos senhores
e dos sóis em algumas línguas. Noutras
já foi ontem ou será depois, conforme
o cansaço divino sucedeu ou
não ao sétimo dia. Vária
gente irá aos templos ou ao parque
passear o cão. É dia de
visitar o lar de idosos ou de
abastecer a nossa arca
congeladora. Os pais solteiros levam
os filhos a comer pizza e outros
putativos progenitores recuperam
as horas de sono convivialmente
líquidas. O ar das ruas
é mais leve devido à pausa de
domingo. Ao menos hoje acontece
algo de bom em nome de Deus.

Inês Lourenço In " Logros Consentidos", & etc., 2005, p15.
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23/08/08




      "Margem Sul"


Não quero libertar-me
da minha história, dos grandes navios
que ajudei a reparar, pintar, soldar,
equilibrado como um hábil trapezista
a grandes alturas. Exilado
do cais, hoje navego
na luz do fim da tarde. As minhas mãos
voam na perícia que me resta
jogando os trunfos
que verdadeiramente nunca tive.


Inês Lourenço, In "A Enganosa Respiração da Manhã",
Edições Asa, Porto, 2002, p 33.

24/06/08


        "Livros Usados"
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Tudo que se disse depois e
ainda se diz, pode estar num usado
exemplar de Crime e Castigo ou da Utopia.
Os livros usados - mesmo
que se chamem Utopia -
têm aquela terna docilidade
das páginas em que outras
mãos passaram, ao contrário
dos novos, que em rígidas e
intactas páginas são só apenas
papel impresso.
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E para escassos amigos, quando
se fugiu duma livraria de
consumíveis tops,
talvez seja essa
a melhor oferta.
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Inês Lourenço, In "a disfunção lírica"