31/01/10

.
                            "Made in China: um instântaneo de Macau"


Talvez primeiro seja o calor. Para quem gosta dele. Envolve-nos mal pomos o pé fora do jetfoil, como um abraço confortável e húmido que se cola à pele. É um calor denso e pesado, que não dá tréguas, que entra na respiração a parece conseguir chegar até à alma. Claro que há quem não o suporte. Comigo foi o reencontro com uma sensação perseguida, entrevista, de outras terras e lugares com os quais o primeiro embate é físico e só depois racional.
A seguir talvez seja o movimento incessante, qualquer coisa que pulsa duma vitalidade colorida, simultaneamente berrante, suja, kitsch e harmoniosa. Os milhares de néones, a desordem barroca do inexistente ordenamento territorial, os prédios e lojas encavalitados, as ruas labirínticas. As ruas por detrás das ruas principais a levar-nos de imediato para um território obscuro, mais silencioso, mais cinzento. Os rostos inexpressivos, as pessoas que passam por nós lado a lado nem curiosas, nem hostis, que apenas parecem não nos ver. Deambula-se facilmente por esta cidade com essa sensação de estar noutra dimensão, paralela e, como tal, impenetrável. E talvez esse seja o segundo trunfo de Macau - a liberdade de pisar um chão ao mesmo tempo familiar e estranho. Porque a sensação é de familiaridade, não haja equívocos. A calçada portuguesa, da qual só nos apercebemos ao fim de algum tempo, de tão próxima, a toponímia feita de palavras conhecidas e por vezes um pouco deslocadas, como se tivessem deslizado de outro tempo e chegado até aqui ao século vinte e um como ecos dessa errância histórica de centenas de anos que nos está nos genes. Palavras que escorregaram e se instalaram à sua maneira ingénua, desconcertante, arcaica nas tabuletas, nos anúncios, mesmo nos serviços públicos, nos domínios institucionais. Palavras portuguesas.
Talvez ainda sejam os portugueses que aqui vivem, portugueses ilhéus duma pátria idealizada ou mítica. Portugueses que falam em eles e em nós e que não são uma coisa nem outra, conformados à geografia da terra, parecidos com as tais palavras extemporâneas que povoam as ruas. Que comem em restaurantes portuguesíssimos com bandeiras do sporting ou do benfica e ao fim de vinte anos de permanência continuam a detestar a comida local que nunca provaram. Mais uma vez, surpreendentes na sua generosidade, por vezes manhosa, interesseira, mas que está lá. Que fazem questão de acolher, "ensinar" quem chega, avisar sobre as perfídias da terra. Portugueses que dificilmente voltarão a viver em Portugal, que dificilmente serão felizes noutro local, que usam o verbo ir e raramente o verbo voltar.
Podem ser os souvenirs locais, os muito típicos galos de Barcelos e os pastéis de nata egg tarts que constam serem péssimos. O cheiro doce e intenso em algumas ruas, um cheiro indecifrável a coco, os numerosos vãos de escada onde se vendem espetadas com pedaços de comida que oscila à vista entre o vegetal e o animal, tudo cozido no mesmo caldo espesso e intenso. De novo a tentação, a hesitação entre a repulsa e a prova. As pessoas a comerem na rua a toda hora, o exotismo hábil dos pauzinhos, a delicadeza de alguns sabores, a beleza de algumas composições gastronómicas. O luxo dos muitos restaurantes, o típico das barraquinhas de rua.
Ou a luz. A luz que não é luminosa a maior parte das vezes. Baça. Baixa. Uma luz sem horizonte, sem espaço. Qua às vezes pesa, que às vezes oprime amarelamente o peito. Dizem que chega a haver quarenta e cinco dias seguidos sem sol, só este contínuo manto nevoento que às tantas parece um sonho onde tudo flui fantasmagoricamente, silenciosamente e o coração começa a bater mais devagar, como nos contos de fadas em que o tempo se suspende na imobilidade do presente.
Podia ser um caso de amor. Mas Macau é também a proliferação ad nauseam das coisas acessíveis. Coisas. Objectos. Novidades. Brinquedos. Coisas que se coleccionam compulsivamente, que se adquirem, todos os dias, continuamente - porque são acessíveis. Porque são novidade. Que não se usam? Que não se desfrutam? Que não nos fazem falta? Que se têm para estarem à mão, para sabermos que estão ali quando as quisermos? Que se vão juntando até já não sabermos quais, quem, como são, qual a sua individualidade, porque nos aproximamos delas um primeiro lugar? São as compras e o consumo, é a evidência do que fizeram os economistas, os jornais ou as notícias sobre a liderança económica da China no cenário mundial. O que não deixa de ser irónico se pensarmos que o país se chama República Popular da China e tem um regime comunista. Esta insaciedade é histórica, sociológica ou é estrutural, o mundo a caminho de lado nenhum? Talvez Macau seja uma alegoria ou uma metáfora. É de certeza. Vai-se a gongbei, passa-se para a China como se diz por cá e compram-se todos os livros, todos os dvd's, todas as malas, sapatos, relógios, telemóveis de todas as marcas de todos os últimos modelos em todas as cores e tamanhos. Made in China. Igualzinho ao original, se é que o original existe. Volta-se carregado. Volta-se mais vazio?
Macau é uma casca. Penso que é preciso muito tempo para saber o que lá está dentro. Podia ser um caso de amor. Mas o amor deve ter uma profundidade mais profunda que a dos aterros, que a da terra que foi roubada ao rio e sobre a qual se construiu o admirável mundo novo dos casinos - deslumbrantes, imensos, impactantes, mas assentes num chão que não existe.
.
Macau, 23 de Janeiro de 2010.
.
Ana Paula Dias (Inédito)
.
.

29/01/10

FRANCHETTI, Paulo. Escarnho. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. 68 p.

.
Escarnho: a inabalável harmonia do diverso

Elaborar uma totalidade coesa e repleta de sentido sem perder de vista um conjunto de influências distanciadas no tempo e no espaço, conseguir uma unidade subtilmente estruturada que, contendo em si múltiplos registos e procedimentos formais, reafirma que um livro de poesia não é um agrupar aleatório de textos, mas uma totalidade orgânica com intentos bem definidos - eis a mestria alcançada por este novo livro de Paulo Franchetti.
Nesta sua obra o autor usa a sátira como forma de escalpelizar, não determinados tipos naquilo que eles são essencialmente, mas antes para submeter ao ridículo da cidade o que nesses tipos é acidental e vivenciado de modo inautêntico, isto é, não são as velhas gueixas de exacerbadas pulsões que são visadas pelo azorrague do poeta, mas aquilo que nelas é logro e trapaça (p. 44), ou que nelas se disfarça num processo de sublimação e de pacóvia intelectualização (p. 46); não é uma dada orientação sexual, naquilo que ela tem de estrutural, apesar de minoritária ante um conjunto de modelos de comportamento, que a sátira alveja, mas aquilo que nessa minoria é vivenciado enquanto mentira e máscara deliberadamente assumida (pp. 35, 57, 67, 68), aliás, esta apurada distinção que Paulo Franchetti faz entre aquilo que os tipos são em-si e o que neles é exibição gratuita e carnavalesca, é enfatizada mesmo pelo eu-poético: "(...) ó Deus do céu!/ Tende piedade, não deixeis (amém!),/ Que um dia, eu velho e tonto, vá também/ Choutando assim a carne mole ao léu!" (p. 41). O que ele teme, e a escrita poderá explorar como matéria-prima do riso, não é o ser-se velho, nem tão-pouco o ser-se velho e tonto, mas antes um estar que, tentando iludir tudo isso, acaba montando um cenário de estridências e metais falsos - e são essas excrescências comportamentais que a poesia de Paulo Franchetti capta simultaneamente com minúcia jocosa e uma depurada elegância de estilo.
Para além das figuras já referidas acima, outras aparecem igualmente visadas por todo um dardejar poético mesclado de lucidez e coragem: o "escritor muito prolixo e obtuso" (p. 27); as feias azedas e/ou mesquinhas (p. 33); a multidão urbana e estandardizada (p. 41); o "doutorzinho sonolento" e exibicionista (p. 43)... O pavoneio é mesmo um dos alvos preferidos desta sátira.
Não são apenas vários os visados por esta obra, são também diversas as fontes e os procedimentos de intertextualidade que Paulo Franchetti invoca, para, no seu refinado cadinho, conseguir uma obra singular e distanciada de todos aqueles de que demonstra conhecimento.
Inserido numa tradição cujo ponto de partida remonta à poesia greco-latina, não podemos ler este livro sem nos lembrarmos de alguns poemas de Catulo ("Que boa parelha!", "Que injustiça!" e muitos do ciclo "Gélio"); sem chamarmos a nós também Marcial (Livro II, 29, 36, 61; Livro IV, 43...) e sem recordarmos Ovídio ("Arte de amar", Livro II. 665- 745) - Marcial dá mesmo título a um poema de Escarnho ( pp. 48- 49), enquanto Ovídio, no final do excerto acima citado, pede louvores para o seu canto, canto esse referido igualmente por Paulo Franchetti (p. 67). Mas nem só à Antiguidade vai Franchetti buscar temas, personagens e aspectos da sua imagética - o diverso acaba desdobrando-se por outras épocas, movimentos literários e autores: o primeiro verso do soneto "Assim, ó bom glutão..." (p. 62) lembra-nos de imediato Camões, nomeadamente a terceira estância do Canto Primeiro dos Lusíadas (é interessante até fazermos a comparação entre o final da referida estrofe e o final do soneto). Muitas das queixas camonianas (veja-se o soneto "Quanta incerta esperança, quanto engano!", as oitavas sobre o desconcerto do mundo, algumas das canções, sobretudo a quarta, sobre " a instabilidade da Fortuna") aparecem em Escarnho radiografadas: e esse universo causador de lamentos surge agora cruamente, a preto e branco, na sua perversa bizarria, no seu ramerrão de pura matéria de riso. Mas é muito mais nítido o diálogo de Paulo Franchetti com outros poetas, por exemplo com a veemência de Gregório de Matos, que, não apenas virada contra a sociedade da Bahia, visa um social no seu todo ("Eu sou aquele, que passados anos/ Cantei na minha lira maldizente/ Torpezas do Brasil, vícios e enganos") e com duas das vertentes da poesia de Bocage, pois pegando num célebre soneto deste ("Meu ser evaporei na lida insana"), constrói-lhe a contra-argumentação com o seu "Elegia" (p. 23) que nos remete imediatamente para a poesia satírica do árcade e pré-romântico português. O jogo e a verrina são ainda mais refinados em relação à poesia de António Nobre: ao primeiro poema longo de "Só" (excluindo, obviamente, os dois poemas introdutórios) intitulado "António", contrapõe Paulo Franchetti o soneto decassilábico "Nobre" (p. 19), e a todo um universo agrário e piscatório, intocado pela Revolução Industrial, com as suas lanchas, as suas ermidas, os seus rebanhos, que o autor do "livro mais triste que há em Portugal" espraiou pelas suas páginas, o poeta brasileiro responde com um relacionamento de inconformidade ante a moral esperada, acentuando através de diminutivos (ovelhinha, quietinha...) todo o risível da situação. Saliente-se uma minúcia: António Nobre usa com frequência os diminutivos (sãozinho, anjinho, velhinha, etc.), mas não os usa quando se refere a ovelhas por exemplo em poemas com "Lusitânia no Bairro Latino" e "Purinha"... E são todos estes aspectos que realçam o vasto conhecimento que o autor de Escarnho tem da tradição poética luso-brasileira, bem como dos procedimentos necessários para o bom uso do humor em todo um processo de satirização coerente e inexorável.
O vector da multiplicidade para uma inabalável harmonia aplica-se também, nesta obra, quer ao estilo quer aos vários aspectos formais. O primeiro, marcado por alguns dos autores já falados (Gregório de Matos, Bocage, Nobre...) é-o também por um Olavo Bilac, que, na sua "Profissão de Fé", deixa bem claro: "Quero que a estrofe cristalina,/ Dobrada ao jeito/ Do ourives, saia da oficina/ sem um defeito." Paulo Franchetti é, por conseguinte, herdeiro desta inquietação com o rigor e a precisão... Apenas um exemplo das semelhanças entre ambos os autores ao nível do cuidado com a expressão e a palavra poética: "Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada" diz-nos Bilac no seu "Nel mezzo del camin"; "Pasmei, pasmaste, da mentira absconsa" avança Franchetti num processo eufónico do mesmo tipo numa das "oitavas a um seu amigo". É surpreendente o modo como o poeta contemporâneo tudo conhece, assimila e transmuta numa nova escrita: realidade incontaminada apesar da sua génese; recusa de seguidismos grosseiros para que um dizer singular se afirme - o seu. Dizer esse que - e voltamos ao nó deste texto!- engloba e transpõe: a gíria, o registo erudito, os arcaísmos e até esse crioulo com laivos de italianização (p. 37) usado nas escrita de Juó Bananère. É nesta mesma página que Paulo Franchetti - que escreve em oitavas, em sonetos, em quadras, em sonetos com continuidade poemática (p. 44 e p. 46), em sonetos com processo dialéctico de tese e antítese (p. 20 e p. 21) - se socorre de uma forma pouco usada de composição: "o soneto estrambótico", que aqui aparece com três tercetos após as duas quadras.
Podemos, por fim, dizer que este novo livro de Paulo Franchetti prima sobretudo pela forma como o poeta assume toda uma panóplia de informações e conhecimentos literários, para, estabalecendo entre eles um novo paradigma de interconexões plurisignificativas, dar lugar a um estilo singular e irrepreensível nessa finalidade que a si impõe - dissecar um social através de uma harmoniosa palavra, que é simultaneamente apontar certeiro e ousado riso.
.
Victor Oliveira Mateus in "Letras com vida", Nº 1, 1º semestre de 2010, pp 242 - 244.
.
.

28/01/10

.
Quanta incerta esperança, quanto engano!
Quanto viver de falsos pensamentos,
pois todos vão fazer seus fundamentos
só no mesmo em que está seu próprio dano!

Na incerta vida estribam de um humano;
dão crédito a palavras que são ventos;
choram depois as horas e os momentos
que riram com mais gosto em todo o ano.

Não haja em aparências confianças;
entende que o viver é de emprestado;
que o de que vive o mundo são mudanças.

Mudai, pois, o sentido e o cuidado,
somente amando aquelas esperanças
que duram pera sempre com o amado.

Luís de Camões in "Lírica Completa - Vol. II",
Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1980, p 275.

Notas de Maria de Lurdes Saraiva:
"v.5 - Os falsos fundamentos e pensamentos alicerçam-se todos no precário valor que é a vida humana.
v.1o- Segundo a concepção cristã, a vida terrena é um momento transitório, emprestado por Deus.
v.11- que aquilo de que o mundo vive são apenas mudanças, isto é: no mundo não há nada de permanente.
v.14 - amado - o esperado. Na Lírica de Camões, as esperanças ligam-se sempre a um objecto de amor, e são cortadas quando o amor cessa. Isso explica a síntese dos dois últimos versos."
.
.

26/01/10

"Uma árvore de pé, serena e bela,/ Inda se ostenta..."

.
.
"Vestígios"

Foram-te os anos consumindo aquela
Beleza outrora viva e hoje perdida...
Porém teu rosto da passada vida
Inda uns vestígios trémulos revela.

Assim, dos rudes furacões batida,
Velha, exposta aos furores da procela,
Uma árvore de pé, serena e bela,
Inda se ostenta, na floresta erguida.

Raivoso o raio a lasca, e a estala, e a fende...
Racha-lhe o tronco anoso... Mas, em cima,
Verde folhagem triunfal se estende.

Mal segura no chão, vacila... Embora!
Inda os ninhos conserva, e se reanima
Ao chilrear dos pássaros de outrora...

Olavo Bilac In "Poesias", Editora Martin Claret,
São Paulo, 2002, p 71.
.
.

25/01/10

"(...) os narcisos/ e o mundo verdejante que os cerca..."

.
A beleza em cada ser é uma alegria eterna"

A beleza em cada ser é uma alegria eterna:
o seu encanto não se extingue, nunca se há-de perder
no nada; reservar-nos-á um refúgio
de paz, onde adormeceremos, habitados por sonhos
suaves, uma íntima plenitude, uma respiração branda.
Comecemos, assim, a tecer em cada manhã
uma grinalda de flores para nos unirmos à terra,
apesar do desalento, da ausência daqueles
cuja nobreza amávamos, dos dias cheios de escuridão,
dos caminhos insalubres e misteriosos,
abertos para os nossos anseios; sim, apesar de tudo,
uma forma de beleza afasta o sudário
das nossas almas sombrias. Assim é o sol, a lua,
as antigas ou recentes árvores que fazem germinar
a sombra sobre os humildes rebanhos; os narcisos
e o mundo verdejante que os cerca; e os límpidos rios
que criam para si mesmos um docel de frescura
durante as estações ardentes; os silvados do bosque
enriquecidos pelo belo, nascente esplendor das rosas;
e, também, a magnificência do destino
que imaginamos para os mortos poderosos;
e as histórias encantadoras que lemos ou escutamos:
fonte inesgotável duma imortal bebida,
que vem do céu e para nós se derrama.
E não é apenas durante algumas horas breves
que ficamos presos a estas essências; assim as árvores
murmurando à volta dum templo logo se tornam
tão amadas como o próprio templo; assim a lua
e a paixão da poesia, glórias infinitas, tantas vezes
nos assombram, até serem uma luz vivificadora
para a alma, e tão estreitamente nos cingem
que, fique a brilhar o sol ou se apaguem os céus,
para sempre hão-de existir em nós, ou morreremos.

John Keats In "Poesia Romântica Inglesa (Byron, Shelley, Keats)",
Editorial Inova, Porto, 1977, pp 79-80 (Tradução de Fernando Guimarães).
.
.

"Awake for ever in a sweet unrest"

John Keats (31/10/1795 - 23/2/ 1821)

"Bright Star"

Bright star, would I were stedfast as thou art -
Not in lone splendour hung aloft the night
And watching, with eternal lids apart,
Like nature's patient, sleepless Eremite,
The moving waters at their priestlike task
Of pure ablution round earth's human shores,
Or gazing on the new soft-fallen mask
Of snow upon the mountains and the moors -
No - yet still stedfast, still unchangeable,
Pillow'd upon my fair love's ripening breast,
To feel for ever in a sweet unrest,
Still, still to hear her tender-taken breath,
And so live ever - or else swoon to death.

John Keats

24/01/10

" Que me cubra/ Num manto espesso de solidão"

.
"Noite de chuva e alguma tristeza"

Não quero ouvir mais vozes
E são tantas as que me falam

Onde está o silêncio?
Esse túnel de ar fresco
Em queda livre

Que ele caia sobre mim
Que me cubra
Num manto espesso de solidão
Que organize a fuga de mim mesmo
Para que não volte mais

Aprisiono a quietude
No meu corpo de mármore branco
Talhado a golpes de picareta

Vem, tu não sabes
Mas eu já calei
Todas as vozes

Maico In "As Primeiras Horas", Chiado Editora, s/c, 2009, p 13.
.
.

17/01/10

.
.
- Que esquisito, esqueci-me do sonho, agora lembrei-me, só que não era um sonho - disse Harvey, embaraçado. Sentiu uma curiosa força eléctrica que de alguma forma entrava no seu corpo e dele se apoderava. "Claro que estou bêbado, até me sinto um bocado tonto", pensou. Sefton olhou para os livros, depois para a janela onde o sol ainda não brilhava, em seguida de novo para Harvey. A mão de Sefton, em que se apoiava, estava no chão ao lado dele. Ele pôs a mão sobre a dela. A mão dela mexeu-se como um animalzinho cativo, agarrou a dele por um momento, depois retirou-se. Olharam outra vez um para o outro. Harvey estendeu o braço por cima da superfície resistente da coberta da cama e tocou com a mão os ombros de Sefton, sentindo através da camisa de algodão o calor das suas costas, os seus ossos. Continuaram a fitar-se mutuamente, com um olhar intenso e inquiridor que se dissolvia numa espécie de deslumbramento cego. Harvey deixou os joelhos deslizarem para o lado e ergueu-se um pouco para a frente apoiado no outro braço. Inclinou-se e os seus lábios tocaram muito levemente a face de Sefton. Viu-a fechar os olhos. Ele fechou os olhos. Os lábios de ambos, movendo-se rapidamente, mas com uma precisão tranquila, como pássaros na noite, encontraram-se por um segundo.
Afastaram-se e entreolharam-se com espanto e perplexidade, com medo, quase com terror. Estavam a tremer, arrepiados. Era como se um enorme golpe os tivesse paralisado.(...) Harvey disse, por fim, quase segredando:
- Isto pode realmente acontecer desta maneira? É evidente que sim.
Sefton, sem olhar para ele, disse com uma voz angustiada, quase impertinente:
- Mas que aconteceu? Não faço ideia.(...)
-Sefton, não estejas zangada comigo. Eu amo-te.
Passado um momento, Sefton disse:
- Sim. Aconteceu alguma coisa. Mas acho que é uma loucura (...) Harvey, não. Não sabemos quem somos, nunca me senti tão estranha... tornámo-nos monstros, de repente ficámos uns... monstros.
- Não estejas com medo, minha querida Sefton.
-Não estou... com medo... creio eu... só admirada, espantada.
-Somos monstros bonitos, monstros bons (...)
- Pensa como são estranhas as tuas palavras. Ouve, Harvey, ouve, isto, seja o que for, aconteceu connosco por acaso, aconteceu aos dois...
- Graças a Deus que aconteceu aos dois (...).
- Escuta, Harvey, sou mais velha que tu, sou milhares e milhares de anos mais velha que tu (...)
- Queres tempo para te recompores e me dizeres para ir para o inferno.
- Não. Acredito que isto é tudo real. Faz o que te peço. E, por favor, agora vai-te embora (...)
Harvey acenou com a mão e saiu. A porta fechou-se. Caminhou pela rua a sorrir como um homem louco.
Sefton deitou-se de costas sobre o tapete (...) Pensou:" Agora estou num vácuo, em nenhum lado, entre o ser e o não-ser, onde se pode escolher não ser. Estou dissolvida por medo e violência numa paz intemporal. Não esperava nada esta perturbação, esta súbita e terrível presença do deus. Talvez o melhor, afinal de contas, fosse não ter nascido. Como deve estar perto do nada a alma humana, para ser assim tão facilmente abalada."
.
.
Iris Murdoch In "O Cavaleiro Verde", Publicações Europa-América,
Mem Martins, 1993, pp 371 - 375 (Tradução de Luís Serrão).
.
.
----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

16/01/10

" Après un silence..."

.
.
Après un silence, William et Lavinia se regardèrent, se livrant visiblement à de rapides calculs. Edith qui n'avait pas une brillant réputation de femme d'affaires se montrait toutefois très perspicace. Elle lisait directement dans les pensées des gens et donnait régulièrement son avis avec une franchise plutôt déconcertante. Elle sentit donc ce que William allait dire mais, pour une fois, elle se tut, se retenant même de sourire quand il prit la parole
-"Herbert, je suppose que Père n'a fait aucune allusion aux bijoux?
- Mais si! Vous savez qu'ils représentaient une partie non négligeable de ses biens. Ils lui appartenaient et il a estimé juste de les léguer en totalité à Mére."
Quelle gifle pour Herbert et Mabel! pensa Edith. Ils s'attendaient sans doute à ce que Père les laisse en héritage à son fils aîné. Mais le calme affiché par Mabel lui fit toutefois comprendre qu'elle se trompait. Herbert avait sans doute déjà prévenu sa femme.(...)
- Mais il y a plus important que la question des bijoux ou des revenu", coupa Herbert. "Où Mère va-t-elle vivre? Elle ne peut rester seule. En tout cas, pas ici. La maison sera vendue. Où va-t-elle aller? Il est de notre devoir de nous occuper d'elle. Mère doit vivre parmi nous. "On aurait dit qu'il avait préparé son discours (...)
Enfin nous y voilà! pensa Edith: que vont dire les gens? Ils ne se préoccupent que de l'opinion d'autrui et de l'argent qu'ils vont soutirer à notre pauvre Mère... Chicanes... Chicanes... Elle avait déjà connu ce genre de dispute familiale. Ils vont se déchirer autour de mère comme des chiens le font autour d'un très vieil os. (...) Chaque fois que lady Slane pénétrait dans le salon, les conversations cessaient, tout le monde se levait et l'on s'empressait de l'aider à s'asseoir. Chacun la tratait un peu comme si elle venait d'échapper à un accident, ou avait provisoirement perdu la tête. Edith était certaine que sa mère ne souhaitait pas être guidée ainsi vers un fauteuil (...)
"Mère chèrie. Nous avons discuté entre nous... Vous pensez bien que nous nous sommes préoccupés de votre sort. Nous savons combien vous étiez dévouée envers Père, et réalisons ce que cette perte représente dans votre vie(...) nous nous sommes inquiétés de savoir où, et comment, vous alliez vivre?
- Je suppose que vous avez déjà décidè pour moi, Herbert", commenta lady Slane d'un ton d'une indicible douceur.
Gêné, Herbert passa à nouveau un doigt dans son col. Edith avait l'impression qu'il allait s'étrangler.(...) Lady Slane ne disait toujours rien. Son regard allait de l'un à l'autre, étrangement ironique pour une personne si effacée. (...) - Non, répondit lady Slane en souriant. Je sais à quel point vous pouvez vous montrer prévenants mais je n'entends pas vivre avec aucun de vous. Pas avec vous, Herbert, ni avec vous, Carrie, ni avec vous, William, ni avec vous Charles. Je vais vivre seule. (...) En fait, je me suis trop lontemps préoccupée de l'opinion des autres, j'ai droit à des vacances. Si on ne se fait plaisir à mon àge, quand le fera-t-on?(...) Voyez-vous, Carrie, j'entends devenir complètement égoiste, comment dire, m'immerger dans mon grand àge. Pas de petits-enfants! Ils sont trop jeunes. Aucun n'a la quarantaine. Pas d'arrière-petits-enfants non plus! Ce sarait pire. Je ne veux pas de cette jeunesse qui non seulement s'agite mais cherche toujours, en plus, à savoir pourquoi. Je ne souhaite pas qu'on m'amène d'enfants. Ces malheureux me feraient trop penser à la longue route qu'ils ont à parcourir avant d'arriver au port.
.
.
Vita Sackville-West In "Toute passion abolie", SalvY Éditeur, Paris,
1991, pp 23 - 51 (Tradução do inglês por Micha Venaille).
.
.

Inéditos - VIII

.

.

"Miragem"



para Olga Savary



Chegou, impressentida e silenciosa,
com uma saudade eslava nos cabelos
e um ritmo de crepúsculo ou de rosa.


Os olhos eram suaves, e eis que ao vê-los,
outra paisagem, fluida, na distância,
sugeria doçuras e desvelos.


No coração, agora já sem ânsia,
paira a serenidade comovida
que lembra os puros cânticos da infância.


Logo depois se foi, mas refletida
nesse espelho interior, onde as imagens
se libertam do tempo, além da vida,


Olenka permanece, entre miragens.


(Rio de Janeiro, 1955)



Carlos Drummond de Andrade (Inédito)


Nota - em quatro linhas de rodapé, escritas pelo próprio punho,
Olga Savary esclarece-me alguns aspectos deste texto, dos quais
apenas um interessa agora: Olenka é um diminutivo eslavo; alusão
ao facto dos avós da poeta serem de origem russa.
.
.

15/01/10

Inéditos - VII

.
.
"Canastrinha de Odeleite"

O cesteiro de Odeleite estava a acabar
uma cestinha de cana:
fiquei à espera
que a rematasse
a contemplar seus gestos precisos
firmes e eficazes
Quem me dera fazer assim
os meus versos!
Decidi: "É para a fruta
respirar bem". E comprei.
A cana ainda está meia
verde
quase ressuma seiva
e eu
trago para casa não só a vasilha para
os pêssegos que vou apanhar na minha
horta
mas também a tépida frescura da ribeira de Odeleite
suas densas águas mansas
leite de rãs e aloendros
e também o ramalhar
do canavial ainda verde
a dar de vaia
a algumas cobrinhas de água que por ali estejam
na conversa.

Cacela, 7/9/2000.

Teresa Rita Lopes (Inédito)


Nota - não consegui, informaticamente, manter o espacejamento
tal como a Professora Teresa Rita Lopes tem no seu manuscrito,
mesmo assim resolvi correr o risco... Há escritas às quais não resisto!
Aconselho também o delicioso conto de Teresa Rita Lopes na Antologia
"um rio de contos"... soberbo!
.
.

14/01/10

Inéditos - VI

.
.
"Branco"

Não queiras saber o que é o branco para
além do branco, a ilusão de que o mar
se prolonga nesse mar que o branco
levou, com os lábios do vento; nem
interrogues o rosto que se esconde
no horizonte do branco, onde só o
silêncio te dá a resposta que ignoras.

No entanto, se o olhar que esse
horizonte te devolve tem a luz do
rosto que só no branco entrevês,
quando o vento empurra as cortinas
do mar, talvez reconheças no seu
fundo o corpo que habita o céu
em que o branco coincide com o mar.

E nos olhos fechados de um rosto
preso à cama da madrugada, o branco
do horizonte submerge o mar que
avança por dentro do branco, como se
a luz do dia que o vento te abre
não fosse branca, como esse branco
lençol que esconde o corpo sob o mar.

E em cada nuvem que cresce no branco
do céu, um rosto revela o branco
para além do horizonte que o branco descobre.

(Porto, 20/10/2004)

Nuno Júdice (Inédito)
.
.

13/01/10

.
.
"Intermezzo"


Do cais, partiram os navios
onde eu quis ir sempre,
e nunca fui...

No jardim, morreram as flores
que o meu olhar só beijou
através das grades brancas...

E pelos caminhos,
passaram por mim,
sem olharem para trás uma só vez,
todos os que tinham pressa de chegar...

Só eu fui devagar...
cada vez mais devagar
quanto mais perto estava.

A desejar, as flores que morriam
por detrás das grades brancas...
os navios que partiam
envolvidos na bruma,
e os caminhos, nunca percorridos...

Só eu fui devagar...

(Lisboa, 1948)

Alda Lara In "Poemas", Vertente, Porto, s/d, p 69.
.
.

12/01/10

.
.
"Mors"-Amor


Esse negro corcel, cujas passadas,
Escuto em sonhos, quando a sombra desce,
E, passando a galope, me aparece
De noite nas fantásticas estradas.

Donde vem ele? Que regiões sagradas
E terríveis cruzou, que assim parece
Tenebroso e sublime, e lhe estremece
Não sei que horror nas crinas agitadas?

Um cavaleiro de expressão potente,
Formidável, mas plácido, no porte,
Vestido de armadura reluzente,

Cavalga a fera estranha sem temor:
E o corcel negro diz: "Eu sou a Morte!"
Responde o cavaleiro: "Eu sou o Amor!"

Antero de Quental In "Sonetos Completos", Publicações
Europa-América, Mem Martins, s/d., 108.
.
.
.
.
"O Palácio da Ventura"


Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busca anelante
O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos portas d'ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d'ouro, com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão - e nada mais!

Antero de Quental In "Sonetos Completos", Publicações
Europa-América, Mem Martins, s/d., p 70.
.
.

11/01/10

.
.
"Taciturno"


Há oiro marchetado em mim, a pedras raras,
Oiro sinistro em sons de bronzes medievais -
Jóia profunda a minha alma a luzes caras,
Cibório triangular de ritos infernais.

No meu mundo interior cerraram-se armaduras,
Capacetes de ferro esmagaram Princesas.
Toda uma estirpe real de heróis d'Outras bravuras
Em Mim se despojou dos seus brasões e presas.

Heráldicas-luar sobre ímpetos de rubro,
Humilhações a lis, desforços de brocado;
Basílicas de tédio, arneses de crispado,
Insígnias de Ilusão, troféus de jaspe e Outubro...

A ponte levadiça e baça de Eu-ter-sido
Enferrujou - embalde a tentarão descer...
Sobre fossos de Vago, ameias de inda-querer -
Manhãs de armas ainda em arraiais de olvido...

Percorro-me em salões sem janelas nem portas,
Longas salas de trono a espessas densidades,
Onde os panos de Arrás são esgarçadas saudades,
E os divans, em redor, ânsias lassas, absortas...

Há roxos fins d'Império em meu renunciar -
Caprichos de cetim do meu desdém Astral...
Há exéquias de heróis na minha dor feudal -
E os meus remorsos são terraços sobre o Mar ...

Mário de Sá-Carneiro In "Poemas Completos", Assírio & Alvim,
Lisboa, 2005, pp 80 - 81.
.
.

10/01/10

.
.
Olhou para Mr. Borenius, que tinha perdido completamente o controle dos acontecimentos. Alec tinha-o desnorteado completamente.(...)De um modo directo e um pouco tolo, interrogava-se sobre o que poderia ter acontecido ao jovem Scudder, e depois retirou-se para visitar uns amigos em Southampton. Maurice chamou-o, gritando - Mr. Borenius, olhe bem para o céu... está todo em fogo -, mas um céu em fogo não era de proveito para o pároco, e desapareceu.
No meio da excitação sentia Alec perto de si. Ele não estava, não podia estar, estava algures naquele esplendor e tinha de ser encontrado, e sem hesitar um momento partiu para a Casa do Lago, Penge. Aquelas palavras tinham-lhe entrado no sangue, faziam parte dos desejos e das chantagens de Alec, e da sua própria promessa naquele último e desesperado abraço(...)Deixou Southampton tal como tinha lá chegado - por instinto - e sentia que não só as coisas não iriam correr mal desta vez, como também que não ousariam, e que o universo tinha voltado ao seu lugar. Um pequeno comboio local cumpriu o seu dever(...) Entrou na propriedade pela parte sul, através de uma abertura na cerca, e mais uma vez sentiu como aquilo estava quase ao abandono, quão inadequado para servir de modelo ou controlar o futuro. A noite aproximava-se, um pássaro chamava, animais corriam, seguiu em frente até ver o lago brilhar, e a silhueta escura do local do encontro, e ouvir o barulho da água.
Tinha chegado, ou quase. Confiante ainda, levantou a voz e chamou Alec.
Não houve resposta.
Chamou novamente.
O silêncio e a noite avançava. Tinha-se enganado.
"É o mais provável" pensou, e imediatamente controlou-se. Acontecesse o que acontecesse, não podia ir-se abaixo. Isso já tinha acontecido vezes demais por causa de Clive, e em vão, e ir-se abaixo neste lugar despovoado e cinzento poderia levá-lo à loucura. Manter-se forte, manter-se calmo, e confiar - eram ainda a única esperança. Mas o súbito desapontamento fê-lo ver como estava fisicamente exausto. Desde manhã cedo que não tinha parado, assolado por todo o tipo de emoções, e estava prestes a deixar-se cair. Dentro em pouco dicidiria o que fazer, mas a sua cabeça estava agora a estalar, doía-lhe o corpo todo e precisava de descansar.
A casa do lago serviria bem este propósito. Entrou e encontrou o seu amante a dormir. Alec estava deitado sobre umas almofadas, quase invisível na derradeira luz do dia. Quando acordou não pareceu excitado ou perturbado, e antes de falar acariciou o braço de Maurice.
- Recebeste então o telegrama -, disse.
- Que telegrama?
- O telegrama que te mandei para casa esta manhã, dizendo... - Bocejou - desculpa, estou um pouco cansado, tanta coisa... dizendo para vires cá ter sem falta. - E como Maurice não disse nada, nem poderia, acrescentou: - E agora já não nos vamos separar mais, e isso está decidido.
.
.
E. M. Forster In "Maurice", Edições Cotovia, Lisboa, 1989,
pp 277 - 279 (Tradução de Jorge Ayres Roza de Oliveira).
.
.

09/01/10

.
.

.
.
"Cintilações"
.
Um dia espreitei Alexandre o Grande. Ele sabia do seu posto de vigia
que mundos eu espreitava e que ele unira como uma tribo que em
comum afinal possuía a religiosidade.

Um dia espreitei Alexandre o Grande e senti o quanto ele se separou
dos seres intermédios na busca do significado armilar dos mundos
com vocação de abraço.

Um dia espreitei Alexandre o Grande e entendi um especial
significado sagrado e simbólico de matar para entreabrir portas
como quem oferece o beijo quente do êxtase inaugural de um conhecer.

Um dia espreitei Alexandre o Grande e toquei o início dos caminhos
dos grandes sistemas que explicam o que se prescreve e se permite e o
quanto a história nos fala também num tom piedoso e repreensivo
como quem nos diz que afinal, um dia, não se pode evitar fazer de
outra maneira e só na caça cumprimos os vestígiosdo nascimento do
homem, sempre que o homem não mate apenas para obter a presa.

Um dia espreitei Alexandre o Grande e ciumei o seu perceptor
Aristóteles e a sua Macedónia e o seu ímpeto de unir impérios e
fundar Alexandria onde hoje procuro uma vez mais o Livro.

Um dia espreitei Alexandre o Grande aquele que expandiu o
helenismo também rumo ao Oriente, aquele que erigiu Bucéfala no
actual Paquistão, em memória do seu fidelíssimo cavalo que se
assustava com a própria sombra e se deixou domar contra o Sol:
cintilações.

Um dia espreitei e escutei Alexandre o Grande através do Somewhere
in Time, disco da banda inglesa Iron Maiden e creio ter intuído o
Helesponto, a actual Dardanelos, estreito na vida de cada um com o
grande passo por dar.

Um dia, eu quero espreitar cada um a desembainhar a espada com a
qual cortará o nó górdio que impede a revelação das múltiplas
verdades, esse que impede a alma do ofício do entendimento, e sem
nunca revelar o mistério completo, eu quero espreitar a grande
nobreza a prometer-se de novo no Ano que chega, a despedir-se do
ano que finda e a cumprir-se na notícia do tempo que todos os seres
vivos têm a mudança.

Um dia espreitei Alexandre o Grande e soube disso na caça de uma
palavra explicativa do... Que sabias realmente?

Teresa Vieira (Inédito, 27/12/2009)
.
.

08/01/10

Inéditos - IV

.
Nota - Os inéditos que tenho vindo a postar neste ciclo são provenientes de mails recebidos, de aquisições feitas junto de causas em que recentemente militei, de projectos que ainda aguardam concretização, etc. Os textos serão imediatamente retirados se os respectivos autores ( ou alguma editora) me disserem para o fazer. De qualquer modo continuo a pensar que não devo ficar (só eu!) com todo este material no fundo das minhas gavetas. O texto que se segue tem para mim um enorme valor simbólico, pois marca um momento em que a Rosa Lobato de Faria foi para comigo de uma grande solidariedade: várias vezes a importunei e sempre a autora, de modo gracioso e generoso, respondeu aos meus pedidos. Os gestos foram de tal modo abnegados que talvez a escritora nem sequer tenha ficado com uma cópia deste conto, razão acrescida para que o leiamos e nos saciemos...
.
.
"Café"
.
Ela falou que ele vinha e perturbava toda a casa. Vinha muitas vezes, quando o patrão não estava, assombrava os corredores e os quartos à procura dela, gelava o ar, acendia a escuridão.
Disseram-lhe que ele se matara de desgosto quando a levaram para a casa grande, para ser mucama. Ao princípio. Porque quando a senhora morreu de desamparo, o patrão pô-la no lugar da defunta e fez dela senhora. Com os pés que não cabiam nos sapatos e a cintura que não aceitava roupas finas. Só queria nudez e liberdade apesar de ser escrava e parecia-lhe que as senhoras ricas e brancas eram mais escravas do que ela, cheias de calor, apertadas em vestidos abotoados e justos, e depois, nas mãos, um abanico a que chamavam leque, que ela deixava cair, que se lhe atrapalhava nos dedos, nascera para escrava e havia de ser escrava até ao fim dos seus dias.
O fantasma vinha e voltava a vir, e até os pássaros se encolhiam no voo, os gatos fugiam e o macaquinho tapava os olhos para que o não vissem. O fantasma do homem que amava, a quem jurara "para sempre" e "haja o que houver". Ele tinha posto os olhos naquela moreninha linda lá no cafézal, um corpo de deusa, a carinha risonha, os olhos claros na cara preta por um erro de genética, e ali mesmo se apaixonara por ela, enquanto colhia os frutos que haviam de resultar numa bebida quente e perfumada que jamais vira nem provara nem ouvira falar. Escravo no corpo mas livre na alma, vais ser minha, e nem a ameaça do tronco o faria mudar de ideias.
Vinha cobrar os "para sempre" depois de morto e, por mais que pensassem que o filho era do patrão, ela jurou ao meu pai que era do fantasma, que a possuía como patrão nenhum, dono nenhum, senhor nenhum.
Sim, senhor. O meu pai era esse filho das sombras, eu sou neto de assombração.
.
Rosa Lobato de Faria (Inédito, 23.06.08)
.
.

Inéditos - III

.
.
Siempre que a mí regressas indefenso te recibo y, sin temor
ni artíficio, indefenso me disipo en la tentación por nosotros
construida. Pero hay tentaciones así... Que nos devoran.
Que nos devoran y purifican de la ferocidad diaria,
de los mitos que nos anuncian y no compramos,

porque tentación más vil que la nuestra. Siempre que a mí
regresas - como rosa o zanga o herida abierta - una marea
de alegría me retoma, me sumerge y vuelve más pequeño sin saber
cómo ni por qué. Grandes son los alrededores entre los instantes
de tus llegadas y la eternidad que en ellas inscribimos.

Grande la felicidad si tardas y yo más allá
de las trampas de la noche, más allá del estruendo de las olas
contra las rocas, de los estallidos del suelo bajo nuestros
pies desnudos, del jadear de nuestros cuerpos ya saciados, olvido
mi boca pegada a tu piel, como joya deslumbrante recogiendo
el manto de la más bella reina del Mediterráneo.

Victor Oliveira Mateus In "A Irresistível Voz de Ionatos", Editora Labirinto,
Fafe, 2009, p 17. Tradução da Professora e Poeta espanhola Marta López Vilar.
.
Aqui: www.laberintodepapel.blogspot.com
.
.

07/01/10

Inéditos - II

.
.
"Retrato Final"

a inconstância do mundo apavora
o corpo que se move lento
respira sem profundidade
numa desordem possível
: os cálculos imperfeitos

retalhos de uma vida deserta
espalhados na colcha da cama fria
combinação exata com a falta de leveza
das cores prediletas
vermelhas, amarelas, culpadas

Leila Andrade (Inédito)
.
.

Inéditos - I

.
.
"De Deserto e Sombras"

Uma pedra íntima desvia
o meu grito de desgosto
interpretado sob medida
em um coração deveras
largo

e não se ajusta
à calma:

meus cantos todos calados
uma homenagem ao silêncio
senhor de todo caminho
deserto.
.
.
Leila Andrade (Inédito)
.
.
Nota - Leila Andrade é graduada em Letras Vernáculas (UFBA)
e em Comunicação Social (Faculdade Hélio Rocha - Salvadador, BA).
É fotógrafa, poetisa e, juntamente com Fabrício Brandão, vem dirigindo
a Revista Cultural Electrónica "Diversos Afins".
.
.

06/01/10

"Se quisermos que tudo fique como está, é preciso que mude tudo."

Giuseppe Tomasi Di Lampedusa, Duque de Palma e Príncipe de Lampedusa, (Palermo, 1896 - Roma, 1957). A sua obra-prima, "O Leopardo", publicada um ano e meio depois da sua morte, permaneceu inédita durante muito tempo, recusada por muitos editores, mas quando por fim foi publicada, foi imediatamente reconhecida como uma das grandes obras literárias do século XX.
.
.

"Depois, pelo contrário, teremos a liberdade, a segurança, impostos mais leves, a facilidade, o comércio. Todos estaremos melhor: só os padres perderão alguma coisa. O Senhor protege os pobres como eu, não a eles." Dom Fabriizio sorria (...)"Vai haver dias de tiroteio e de confusão, mas a Villa Salina será segura como uma fortaleza; Vossa Excelência é o nossos pai, e eu tenho aqui muitos amigos. Os piemonteses só entrarão de chapéu na mão para cumprimentar Vossas Excelências. E ainda por cima o tio e tutor de Dom Tancredi!" O príncipe sentiu-se humilhado: agora via-se degradado à categoria de protegido dos amigos de Russo; o seu único mérito, ao que parecia, era ser tio daquele ranhoso do Tancredi.(...) "Tudo será melhor, acredite, Excelência. Que se apresentem os homens hábeis e honestos. O resto será como antes." Esta gente, estes liberalzecos de aldeia só queriam arranjar maneira de se aproveitarem. Ponto final.(...)"Talvez sejas tu quem tem razão. Quem sabe?" Agora é que penetrara em todos os sentidos secretos: as palavras enigmáticas de Tancredi(...).Iriam acontecer muitas coisas, mas seria tudo uma comédia, uma ruidosa e romântica comédia com uma ou outra mancha de sangue no traje do bobo. Esta era a terra dos acomodamentos, não tinha a fúria francesa(...) Apeteceu-lhe dizê-lo a Russo, mas reteve-o a sua inata cortesia: "Entendi muito bem: vós não quereis destruiri-nos a nós, os vossos "pais"; só quereis ocupar o nosso lugar. Com doçura, com boas maneiras, se calhar metendo ao bolso uns milhares de ducados? Não é? O teu neto, caro Russo, acreditará sinceramente que é barão, e tu transformar-te-ás, sei lá, no descendente de um boiardo de Moscóvia.."(...) Quando voltou lá para cima, Dom Fabrizio encontrou Paolo, o primogénito, Duque de Querceta, que o esperava no gabinete em cujo divã vermelho ele costumava fazer a sesta. O jovem reunira toda a sua coragem e desejava falar-lhe. Baixo, franzino, cor de azeitona, parecia mais velho que ele. "Paizinho, queria perguntar-te como devemos comportar-nos com o Tancredi quando o virmos." O pai percebeu logo e começou a irritar-se." O que pretendes dizer? O que foi que mudou?" "Ora, paizinho, decerto não podes aprovar: foi juntar-se àqueles bandidos que puseram em tumulto a Sicília; isto é coisa que não se faz."(...) Fabrizio indignou-se tanto, que nem deixou sentar o filho: "Mais vale fazer disparates do que passar o dia inteiro a olhar para a caca dos cavalos! O Tancredi é-me mais querido que antes. E depois não são disparates."(...) Abriu o jornal. "Consumou-se um acto de pirataria flagrante a 11 de Maio com o desembarque de gente armada na doca de Marsala. Posteriores relatos esclareceram que o bando desembarcado contava cerca de oitocentos homens, e era comandado por Garibaldi(...) Meteu o jornal numa gaveta. Eram quase horas do rosário, mas o salão ainda estava vazio. Sentou-se num divã e enquanto esperava reparou que o Vulcano do tecto se parecia um pouco com as litografias de Garibaldi que vira em Turim. Sorriu. "Um cornudo." A família ia-se reunindo. A seda das saias não parava de roçagar.(...) Ajoelhou-se: "Salve, Regina, Mater misericordiae..."
............
Tancredi tinha demasiado tacto para preceder o Príncipe na chegada à terra; pôs o seu cavalo a passo e prosseguiu, reservadíssimo. ao lado da primeira carruagem(...) primeiro extravagante mas terno cumprimento que desde há uns anos Donnafugata apresentava ao seu Príncipe (...) "Graças a Deus, parece-me que está tudo como de costume", pensou o Príncipe descendo da carruagem.(...) Os sinos continuavam a repicar, e nas paredes das casas as inscrições de "Viva Garibaldi" "Viva o Rei Vittorio" e "Morte ó reu Bourbon", que um pincel inexperiente traçara dois meses antes, desbotavam-se e pareciam querer meter-se pela parede dentro. Os morteiros estralejavam enquanto se subia a escadaria (...)
O Príncipe fizera sempre questão de dar um carácter solene à primeira refeição em Donnafugata: os filhos abaixo dos quinze anos estavam excluídos da mesa (...) Dom Calogero avançava de mão estendida e enluvada para a Princesa: "A minha filha pede desculpa: ainda não estava arranjada. Vossa Excelência sabe como são as fêmeas nestas ocasiões"(...)"Mas estará aqui num instante; da nossa casa até cá são dois passos, como sabeis."
O instante durou cinco minutos; depois a porta abriu-se e entrou Angelica. A primeira impressão foi de deslumbrada surpresa. Os Salina ficaram de respiração suspensa; Tancredi sentiu inclusivamente latejarem-lhe as veias das têmporas.
.
.
"Giuseppe Tomasi di Lampedusa In "O Leopardo", Editorial Teorema, Lisboa,
2007, pp 30 - 66 (Tradução de José Colaço Barreiros).
.
.

05/01/10




Lembrei-me de ti, logo de manhã, frente aos semáforos.
Via-te na contenção das palavras; vestígios da culpa
que te ofertavas, enquanto outros eram - desacatos,
folguedo... Via-te a crescer pra dentro como a mais
desamparada corola abrindo-se ao contrário ou o fulgor
de um astro, que, desgarrado, ansiava uma qualquer
órbita a dar-lhe sentido. Desenhei-te na montra do cubículo

onde tomei o café. Desenhei-te e eras angústia ao crepúsculo:
incapaz de decisão num país onde o rei preferia assaltos,
rixas, as pegas para esconder suas ejaculações precoces
e a quem António Cicati montava como a potro manco
e desvairado. Lembrei-me de ti assustado, com a cabeça
a prémio, os esbirros metidos na própria casa - infante
atravessado no caminho daqueles pra quem o poder não é

mais do que pesca de arrasto e a paz não passa de noção
vaga a enfeitar a terra, os corações, os livros pretensamente
morais e edificantes. Lembrei-me de ti, logo de manhã,
quando as rotinas se agigantaram e o meu regresso ao cismar
das palavras era coisa distinta dos golpes (extemporâneos)
com que outros tantas vezes as vestem. Adivinhei-te como
reforço de mim: aprendizagem em que me lanço, me perco

e recupero - seta a visar um fim que creio início, pois gémeos
nem sempre são de tempo ou de parto, mas de elos
que aproximam as mais inférteis distâncias; refinadas tramas
que unem, sem sabermos como nem porquê. Frente ao rio,
nesta manhã que é já outono, observando os cacilheiros
no seu vaivém afadigado, imaginei-te naquele momento
em que ela, vinda de França com instruções, pretendia

estancar o festim e suas mazelas. Fizeste-lhe uma vénia,
cujo acentuar ela impediu. A sua mão no teu braço. E o olhar.
Vocês não falavam a língua um do outro. Falavam com o olhar,
e era tudo... com ele se escapavam, às vezes, para Salvaterra,
onde se encontravam, onde se entregavam. Dizem os historiadores
que não há provas, mas eu, que tudo sei do amor que confunde
e não deixa rasto, tenho a certeza que vocês se beijavam,

se possuíam, se amavam num qualquer casebre no meio
da charneca, tal como eu, hoje aqui à espera, ou melhor,
como todos: particulares estórias a expressar coisa que sempre
foi - esperas, ambições, amores, traições... Tu, Pedro, o segundo
que serias de teu nome; ela, a de Sabóia, lúcido peão de si própria;
e eu, inseguro, olhando ansiosamente o relógio. Não resta qualquer
dúvida: aqui todas as faces são o mesmo prisma! E todos os homens

são igualmente o mesmo, sem refúgio nem diferença. Assim
o rio em mansa correnteza - por mais que nas suas águas
me banhasse pra sempre ficaria seu ser de rio. Do que Estrabão
escreveu acerca dele ao paredão onde espero, uns breves séculos.
Pois nada é o tempo e seus rodeios - nada, ante a imensidão
que nos circunda!... As gaivotas, tresloucadas, encenam
a sua habitual coreografia, esgravatam o jardim, o molhe -

procuram (elas também) mas de outro modo. Um cargueiro,
no centro da paisagem, ignora ostensivamente as outras
embarcações, que, ufanas, cumprem a sua glória de unir margens.
Frente ao quiosque há quem leia títulos, compre jornais,
ou simplesmente pare por parar, mas logo retomam todos
o seu rumo, porque nisto de esperas - e ao contrário
do muito dito - também se atende caminhando. Só o conhecido

é já esperado - acaso estaria eu, aqui, num embarcadouro
fluvial, se não soubesse já essa presença que a todos acena,
que ressuma das pedras, das árvores, dos pássaros e de tudo
quanto à vida vem em sua misteriosa transparência? O cais
é também este enormíssimo hall onde se cruzam cafés,
balcões de circunstância, entradas de metro e uma manga
asmática a lançar gente, por sacões, como resíduos pestilentos

e inúteis. Ah, o cais é sobretudo os meus olhos virados para
a foz!, fantasiando a poderosa armada francesa a entrar a barra,
empurrando-te para o golpe de estado, estado de golpe em
que te encontravas - metade desejo, metade medo. Golpe
igual ao meu, esperando o que do sul há muito tarda... comigo
a imaginá-los: Pedro com os cabelos revoltos, a mochila
a descair, as palavras umas atrás das outras; Francisca atenta

na sua dúplice paixão, as sílabas mitigadas, um agradecido
gesto ante a lealdade que continuamente vou tecendo, para lá
de tanta intermitência. Sonho a prontidão de um sonho imenso,
um território onde o verde irrompa e se dissolva numa qualquer
extensão de mim, indissolúvel luz a fincar presença na pavorosa
dissolução dos mapas. E reconstruo - mescla de acenos
e lembranças - a ousadia de que não desisto; coisa vislumbrada

(nem arma nem rasgo de vulcão) que um sopro ainda traz
e a mim acolhe em noites de vendaval e atormentada solidão.
Há uma hera, no lado de fora, a abraçar a estátua, coisa
de ninguém ver na azoada azáfama que têm como vida;
vida a zarpar morte em sua felicidade imitada tão a custo
obtida. O bêbedo da padiola quer também entrar no átrio
do cais. Um segurança não deixa, que segurança não é

pedaços de cartão, vómitos letais... Mas o pregão
da florista já entra sem pedir licença, e, licenciosamente,
mistura-se comigo, com a minha espera, com o bêbedo;
mistura-se com Pedro II a enviar o irmão para Angra,
com a sirene do barco recém-chegado, com ela a acenar-me,
feliz e ele também feliz, mas mudo - grande é o abraço,
forte o reencontro daquilo que permanece - em tudo.

Mateus, Victor Oliveira. Gente Dois Reinos. Fafe: Editora Labirinto, 2013, pp 35 - 38.
.

03/01/10

.
" Humanisme et hermétisme chez Thomas Mann"

L' oeuvre de Thomas Mann se situe dans la catégorie très rare du classique moderne, c'est-à-dire de l'oeuvre encore récente et point du tout indiscutée, mais au contraire sans cesse reprise, rejugée, examinée sur toutes ses faces et à tous ses niveaux, digne de servir à la fois de pierre de touche et d'aliment. De telles oeuvres nous émeuvent, à la cinquième lecture, par des raisons différents de celles qui nous les firent aimer à la première, ou même opposées à celles-ci.(...)Les Buddenbrooks(...) laisse à nu le document humain, le drame de l'homme aux prises avec les forces familiales ou sociales qui l'ont construit et qui peu à peu vont le détruire. L'élément de nouveauté ou de contemporanéité d'un roman comme La Montagne magique, si fortement centré sur la description d'un temps et d'un lieu, ne nous cache plus l'arrière-plan véritablement a-temporel et cosmique du chef-d'oeuvre; la donnée sensuelle, qui troublait naquère dans La Mort è Venise, ne prend plus par surprise le lecteur d'aujourd'hui, lui laissant ainsi toute liberté de méditer à loisir sur une des plus belles allégories de la mort qu'ait produites le génie tragique de l'Allemagne.
OEuvre allemande: allemande par la méthode de l'hallucination mise au service de fait, par la recherche d'une sagesse magique dont les secrets chuchotés ou sous-entendus flottent entre les lignes, destinés, semble-t-il, à rester volontairement le plus inaperçus possible, par la présence de ces grandes entités qui hantent la méditation germanique, l'Esprit de la Terre, les Mères, le Diable et la Mort, une mort plus active, plus virulente qu'ailleurs, mystérieusement mêlée à la vie elle-même et parfois douée des attributs de l'amour. Allemande, cette oeuvre l'est encore par la solide structure symponhique, par le caractère contrapontique de ses parties élaborées au cours de plus d'un demi siècle. Mais cette pâte germanique a, comme l'Allemagne elle-même, été travaillée de ferments étrangers: c'est à la Grèce des Mystères que le héros de La Mort à Venise et celui de La Montagne magique doivent leur suprême révélation; la pensée juive, et talmudique ou cabbalique encore plus que biblique, imprègne les savantes circonvolutions du Joseph, et cela à une époque où l'État allemand décrétait la destruction d'Israel.(...) Enfin, pour l'Allemande typifiée qu'est Mme von Tummler, le fantôme de l'amour est un fantôme anglo-saxon; pour Hans Castorp et pour Gustav von Aschenbach, les fantômes de l'amour sont des fantômes slaves.
Ces matériaux si divers s'élaborent en une masse qui fait penser aux lentes stratifications géologiques plutôt qu'aux constructions précises et délibérées de l'architecture. Le méticuleux réalisme de Mann, ce réalisme obsédé qui caractérise si souvent la vision allemande, sert d'eau mère aux structures cristalines de l'allégorie; il sert aussi de lit à la coulée quasi souterraine du mythe et du songe. La Mort à Venise, qui s'ouvre par le récit réaliste d'une promenade dans la banlieue de Munich, ne nous épargne rien des horaires de trains et de paquebots, des bavardages d'un barbier et des tons voyants d'une cravate(...) tout en dessous coule, inépuisable et brûlante, secrètement issue d'un symbolisme plus antique, la grande rêverie d'un homme en proie à sa propre fin, tirant de son fonds la mort et l'amour. La Montagne magique est la description fort exacte d'un sanatorium en Suisse alémanique vers 1912; ele est aussi une somme médiévale, una allégorie de la Cité du Monde; elle est enfin l'épopée d'un Ulysse du gouffre intérieur, livré aux ogres et aux larves, abordant en soi la sagesse à la façon d'une modeste Ithaque(...) Naphta et Settembrini sont-ils d'authentiques portraits, à peine caricaturaux, d'originaux dont tout est noté, le vêtement, l'état de santé, les moyens de subsistance, les manies intellectuelles et les tics de langage? N'existent-ils plutôt que pour signifier ce qu'ont d'arrogant et de vain la plupart de nos discussions philosophiques; avons-nous avec eux, poussée ad absurdum, une conversation de café sur un glacier?(...) Réalité, allégorie et mythe se fondent les uns dans les autres; par une sorte de circulation constante, tous rentrent continuellement au sein de la vie, d'où ils sont nés.
.
.
Marguerite Yourcenar In "Sous bénéfice d'inventaire", Gallimard, Paris,
1978, pp 265 - 269.
.
.

Nota - O que pode parecer presunção é apenas comodidade: quando saiu a tradução portuguesa deste livro eu já tinha a obra lida, sublinhada e anotada na sua versão original, pelo que não fui, obviamente, duplicar o trabalho.
.
.