06/01/10

"Se quisermos que tudo fique como está, é preciso que mude tudo."

Giuseppe Tomasi Di Lampedusa, Duque de Palma e Príncipe de Lampedusa, (Palermo, 1896 - Roma, 1957). A sua obra-prima, "O Leopardo", publicada um ano e meio depois da sua morte, permaneceu inédita durante muito tempo, recusada por muitos editores, mas quando por fim foi publicada, foi imediatamente reconhecida como uma das grandes obras literárias do século XX.
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"Depois, pelo contrário, teremos a liberdade, a segurança, impostos mais leves, a facilidade, o comércio. Todos estaremos melhor: só os padres perderão alguma coisa. O Senhor protege os pobres como eu, não a eles." Dom Fabriizio sorria (...)"Vai haver dias de tiroteio e de confusão, mas a Villa Salina será segura como uma fortaleza; Vossa Excelência é o nossos pai, e eu tenho aqui muitos amigos. Os piemonteses só entrarão de chapéu na mão para cumprimentar Vossas Excelências. E ainda por cima o tio e tutor de Dom Tancredi!" O príncipe sentiu-se humilhado: agora via-se degradado à categoria de protegido dos amigos de Russo; o seu único mérito, ao que parecia, era ser tio daquele ranhoso do Tancredi.(...) "Tudo será melhor, acredite, Excelência. Que se apresentem os homens hábeis e honestos. O resto será como antes." Esta gente, estes liberalzecos de aldeia só queriam arranjar maneira de se aproveitarem. Ponto final.(...)"Talvez sejas tu quem tem razão. Quem sabe?" Agora é que penetrara em todos os sentidos secretos: as palavras enigmáticas de Tancredi(...).Iriam acontecer muitas coisas, mas seria tudo uma comédia, uma ruidosa e romântica comédia com uma ou outra mancha de sangue no traje do bobo. Esta era a terra dos acomodamentos, não tinha a fúria francesa(...) Apeteceu-lhe dizê-lo a Russo, mas reteve-o a sua inata cortesia: "Entendi muito bem: vós não quereis destruiri-nos a nós, os vossos "pais"; só quereis ocupar o nosso lugar. Com doçura, com boas maneiras, se calhar metendo ao bolso uns milhares de ducados? Não é? O teu neto, caro Russo, acreditará sinceramente que é barão, e tu transformar-te-ás, sei lá, no descendente de um boiardo de Moscóvia.."(...) Quando voltou lá para cima, Dom Fabrizio encontrou Paolo, o primogénito, Duque de Querceta, que o esperava no gabinete em cujo divã vermelho ele costumava fazer a sesta. O jovem reunira toda a sua coragem e desejava falar-lhe. Baixo, franzino, cor de azeitona, parecia mais velho que ele. "Paizinho, queria perguntar-te como devemos comportar-nos com o Tancredi quando o virmos." O pai percebeu logo e começou a irritar-se." O que pretendes dizer? O que foi que mudou?" "Ora, paizinho, decerto não podes aprovar: foi juntar-se àqueles bandidos que puseram em tumulto a Sicília; isto é coisa que não se faz."(...) Fabrizio indignou-se tanto, que nem deixou sentar o filho: "Mais vale fazer disparates do que passar o dia inteiro a olhar para a caca dos cavalos! O Tancredi é-me mais querido que antes. E depois não são disparates."(...) Abriu o jornal. "Consumou-se um acto de pirataria flagrante a 11 de Maio com o desembarque de gente armada na doca de Marsala. Posteriores relatos esclareceram que o bando desembarcado contava cerca de oitocentos homens, e era comandado por Garibaldi(...) Meteu o jornal numa gaveta. Eram quase horas do rosário, mas o salão ainda estava vazio. Sentou-se num divã e enquanto esperava reparou que o Vulcano do tecto se parecia um pouco com as litografias de Garibaldi que vira em Turim. Sorriu. "Um cornudo." A família ia-se reunindo. A seda das saias não parava de roçagar.(...) Ajoelhou-se: "Salve, Regina, Mater misericordiae..."
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Tancredi tinha demasiado tacto para preceder o Príncipe na chegada à terra; pôs o seu cavalo a passo e prosseguiu, reservadíssimo. ao lado da primeira carruagem(...) primeiro extravagante mas terno cumprimento que desde há uns anos Donnafugata apresentava ao seu Príncipe (...) "Graças a Deus, parece-me que está tudo como de costume", pensou o Príncipe descendo da carruagem.(...) Os sinos continuavam a repicar, e nas paredes das casas as inscrições de "Viva Garibaldi" "Viva o Rei Vittorio" e "Morte ó reu Bourbon", que um pincel inexperiente traçara dois meses antes, desbotavam-se e pareciam querer meter-se pela parede dentro. Os morteiros estralejavam enquanto se subia a escadaria (...)
O Príncipe fizera sempre questão de dar um carácter solene à primeira refeição em Donnafugata: os filhos abaixo dos quinze anos estavam excluídos da mesa (...) Dom Calogero avançava de mão estendida e enluvada para a Princesa: "A minha filha pede desculpa: ainda não estava arranjada. Vossa Excelência sabe como são as fêmeas nestas ocasiões"(...)"Mas estará aqui num instante; da nossa casa até cá são dois passos, como sabeis."
O instante durou cinco minutos; depois a porta abriu-se e entrou Angelica. A primeira impressão foi de deslumbrada surpresa. Os Salina ficaram de respiração suspensa; Tancredi sentiu inclusivamente latejarem-lhe as veias das têmporas.
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"Giuseppe Tomasi di Lampedusa In "O Leopardo", Editorial Teorema, Lisboa,
2007, pp 30 - 66 (Tradução de José Colaço Barreiros).
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