30/05/12

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  " Argonauta "

Perdi a última e doce amarra
que me ligava ao cais terreno

argonauta voei no espaço
em eternidade de luz

ao regressar ao azul
um gaivota só
tremia de saudade à beira-mar


   Evónio, Joaquim. Viola Delta, Volume XXV. Lisboa: Edições Mic, 1998, p 31.
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  " Terra Húmida "

No húmus do verbo
escrevem-se fantasias.
Sexos entrelaçados
germinam infinito.
Ao ouvir o nada
a paixão nasce do silêncio
em ambiente de luz.
O arco-íris faz-se aurora
e a raíz da flor
bebe a lágrima fria
do espaço sideral.


  Evónio, Joaquim. Viola Delta, volume XXV. Lisboa: Edições Mic, 1998, p 30.
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24/05/12

" mais ce qu' il préfère encore c' est se taire et prier. "

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   " Un homme ulcéré "
       ( extrait )

Il connaît le nom de tous les fleuves du pays, les rivières et les
lacs jusqu'au plus minuscule poisson, les nombreux affluents, le
dernier des méandres et la composition des sols, il sait manier
l'abaque, l'équerre et le compas, qunad il fait la dictée le timbre
de sa voix s' infléchit légèrement, couteau traînant dans l'air, il
marche sur les pas des grands explorateurs, la cendre des aztèques,
tout le sang partout sur les terres et les mains de chacun, il conte
l'Antiquité avec les fous de première, Claude, Néron, Caigula et
les gorges aux cigues, mais ce qu'il préfère encore c'est se taire et
prier.

Des cheveux sombres noyés de bleu, lourds et brillantinés. Un
regard noir, intense, brillant comme un bout d'anthracite. Le
nez aigu de l'aigle et de la buse, signe d'avarice, d' accord, mais
ne dénotant pas sur son joli visage. Puis une bouche délicate ne
s'ouvrant que pour l' essentiel: manger le pain, les rondelles de
bananes et celles de pommes de terre, lire les psaumes et le matin,
à midi et encore tard le soir, faire ses oraisons dans sa chambre au
premier. Un homme d'une grande beauté.

    Wauters, Antoine. Trois Poètes Belges. Neuilly-lès-Dijon: Éditions du Murmure, 2010, p 100.
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" Ce que nous avons à nous dire n'est pas/ sous nos yeux... "


 "Debout sur la langue "
( extraits du Bookleg paru aux Éditions Maelstrom, 2008)

(...   ...   ...  )
Là où je crois dire, je ne dis rien encore.
Et là où je crois parler, ce sont les mots qui
me parlent, m' éventrent et très doux, très
doucement me soufflent, au sens où l'on dit
de quelqu'un qu'il nous prend quelque chose.
Soufflé, vidé de moelle et sel, d'autres voix me
passent, dansent en rond, me faufilent.

(...  ...  ... )

Ce que nous avons à nous dire n'est pas
sous nos yeux, de même, ce que nous avons
à entendre n'est pas dans ce qui, jour et nuit
et jour, nous crève les oreilles, les rendant
balourdes, marteaux. La parole est à retrouver
dans la parole, loin sous le vide soufflé, sous le
vite et mort dit.

Parce qu'elle ouvre sur un espace plus vaste,
bouillant de sang trouble, d'inoui, une terre
de souffle et de sel, l'écriture rend possible ce
miracle: donner voix, vie au corps, fibres et
foins, petits os. Sans la langue, vivre est une
abstraction..

   Wauters, Antoine. Trois Poètes Belges. Neuilly-lès-Dijon: Éditions du Murmure, 2010, pp 96 - 97.
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23/05/12

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Tenho um búzio por dentro iluminado onde, junto à
fenda branca e estriada de seus lábios, levemente re-
curvado, foi pintado um coqueiro, perto das ondas
de uma baía que jazia sob eterno poente alaranjado...

quando com os dedos acendo o colar de luzes dessa
baía, pedaço e alma da cidade, intuo que entre mim e
ela não há nem havia, na verdade, a distância que tan-
tas vezes julgo ver com algum recuo...

mas há ainda decerto o mar alto da saudade, um céu
de astros deserto, um lastro de melancolia e um es-
tranho apelo cuja origem e significado ainda não situo...

  Gil, António. Obra ao Rubro. Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim Editora, 2012, p 37.
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Aprender o alfabeto da luz, a pronúncia sussurrada da
folhagem, estudar apaixonadamente as conjugações
estelares, aprofundar o léxico galáctico, mergulhar na
semântica universal...

... e apesar disso, bastar-me o pensamento de contigo
me cruzar para logo emudecer...

    Gil, António. Obra ao Rubro. Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim Editora, 2012, p 34.
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21/05/12

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 " O Prazo de Nero "


Não se preocupou Nero quando ouviu
o vaticínio do oráculo de Delfos.
" Teme os setenta e três anos ".
Tinha ainda tempo para gozar.
Tem trinta anos. Mais do que bastante
é o prazo que o deus lhe dá
para tratar dos perigos futuros.

Agora vai regressar a Roma cansado um pouco,
mas excelsamente cansado desta viagem,
que foi toda dias de deleite -
nos teatros, nos jardins, nos ginásios...
Os entardeceres das cidades da Acaia...
Ah dos corpos nus o prazer antes de tudo...

Assim Nero. E na Espanha Galba
às ocultas reune as suas tropas e exercita-as,
o ancião de setenta e três anos.

  Kavafis, Konstandinos. Os Poemas. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2005, p 153 ( Tradução: Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis).
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20/05/12


  " As coisas perigosas "



Disse Myrtias ( estudante sírio
em Alexandria; sendo reis
augustus Constans e augustus Constantius;
em parte gentio, e em parte cristianizante );
" Fortalecido com teoria e estudo,
eu as minhas paixões não vou temer como cobarde.
O meu corpo aos prazeres vou dar,
aos deleites sonhados,
aos desejos eróticos mais audazes,
aos ímpetos lascivos do meus sangue, sem
medo nenhum, pois sempre que queira -
e terei vontade, fortalecido
como estarei com teoria e estudo -
nos momentos críticos hei-de encontrar
o meu espírito, como dantes, ascético. "

    Kavafis, Konstandinos. Os Poemas. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2005, p 105 ( Tradução: Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis ).
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19/05/12


 " ÍTACA "



Quando saíres a caminho da ida para Ítaca,
faz votos para que seja longo o caminho,
cheio de aventuras, cheio de conhecimentos.
Os Lestrígones e os Ciclopes,
o zangado Poséidon não temas,
coisas assim no teu caminho não acharás nunca,
se o teu pensamento permanecer elevado, se emoção
requintada o teu espírito e o teu corpo tocar.
Os Lestrígones e os Ciclopes,
o selvagem Poséidon não encontrarás,
se com eles não carregares na tua alma,
se a tua alma não os colocar à tua frente.

Faz votos para que seja longo o caminho.
Para que sejam muitas as manhãs de verão
nas quais com que contentamento, com que alegria
entrarás em portos vistos pela primeira vez;
para que páres em feitorias fenícias,
e para que adquiras as boas compras
coisas de nácar e coral, de âmbar e de ébano,
e essências de prazer de qualquer espécie,
quanto mais abundantes puderes essências de prazer;
para que vás a muitas cidades egípcias,
para que aprendas e aprendas com os letrados.

Deves ter sempre Ítaca na tua mente.
A chegada ali é o teu destino.
Mas não apresses em nada a tua viagem.
É melhor durar muitos anos;
e já velho fundeares na ilha,
rico do que ganhaste no caminho,
sem esperares que te dê Ítaca riquezas.

Ítaca deu-te a bela viagem.
Sem Ítaca não terias saído ao caminho.
Mas já não tem para te dar.

E se um tanto pobre a encontrares, Ítaca não te enganou.
Sábio como te tornaste, com tanta experiência,
já hás-de compreender o que significam Ítacas.

  Kavafis, Konstandinos. Os Poemas. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2005, pp 63-65 ( Tradução: Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis).
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17/05/12

" mas fresco ribeiro se tenho sede; "

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  " Maravilhamo-nos com a vida "

Quando sorri, é pura estrela o sorriso,
mas fresco ribeiro se tenho sede;
pode a minha querida aos céus abrir-se,
que beijá-la só a mim se concede.

São seus cabelos ouro junto com breu,
bosques orvalhados seus olhos: frente
à sua porta deitar-me-ia eu
qual tapete, mas ela não consente.

Num canto das vozes o beijo se sela
e para as irmãs discorre, furtiva...
Pode o prado sonhar muita coisa bela -
é coração das ervas minha qu'rida.

Connosco à noite os beijos se vão embora
e pelo espaço do mundo em corrida
estendemo-nos os dois sob o céu da aurora
e só nos maravilhamos com a vida.

  Attila, József. Antologia da Poesia Húngara. Lisboa: Âncora Editora, 2002, p 187 (tradução de Ernesto Rodrigues).
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" sozinho como a noite em calafrios "

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  " Espero-te "

Espero-te sempre. A relva está orvalhada,
esperam também as grandes árvores de orgulhosas copas.
Rígido estou e tremo também às vezes,
sozinho como a noite em calafrios.
O prado, se viesses, tornava-se corredor liso
e silêncio seria. Um grande silêncio.
Mas música ouviríamos, misteriosa,
cantariam nos lábios nossos corações
e lentos, corados, nos fundíríamos
em altar cheiroso ardendo
para o infinito.

    Attila, József. Antologia da Poesia Húngara. Lisboa: Âncora Editores, 2002, p 183 (tradução de Ernesto Rodrigues).
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16/05/12


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   " Ruínas "


Por onde quer que tenha começado,
pelo corpo ou pelo sentido,
ficou tudo por fazer, o feito e o não feito,
como num sono agitado interrompido.

O teu nome tinha alturas inacessíveis
e lugares mal iluminados onde
se escondiam animais tímidos que só à noite se mostravam
e deveria talvez ter começado por aí.

Agora é tarde, do que podia
ter sido restam ruínas;
sobre elas construirei a minha igreja
como quem, ao fim do dia, volta a uma casa.

  Pina, Manuel António. Como se desenha uma casa. Lisboa: Assírio & Alvim, 2011, p 31.
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15/05/12


  " O quarto "


Quem te pôs a mão no ombro,
a faca que te atravessou o coração,
são feridas alheias, talvez algo que leste;
entretanto partiste

para lugares menos iluminados
e corações menos vulneráveis,
pode perguntar-se é o que fazes ainda aqui
se já cá não estás.

A hora havia de chegar em que
nos perderíamos um do outro.
E acabaríamos necessariamente assim,
mortos inventariando mortos.

Morrer, porém, não é fácil,
ficam sombras nem sequer as nossas,
e a nossa voz fala-nos
numa língua estrangeira.

Apaga a luz e vira-te para o outro lado
e acorda amanhã como novo,
barba impecavelmente feita,
o dia um sonho sólido onde a noite se limpa e se deita.

   Pina, Manuel António. Como se desenha uma casa. Lisboa: Assírio & Alvim, 2011, pp 18 - 19.
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14/05/12

Apresentação...

( Texto de apresentação do livro "Obra ao Rubro" de António Gil. Lido no dia 12 de maio no Auditório do Campo Grande, 56.)

Obra ao Rubro, de António Gil, numa primeira aproximação, alerta-nos para a especificidade do seu próprio título. Plurisignificativo, ele contém em si uma dedicatória a um dado processo ígneo e incandescente, mas também uma oferenda e um tributo a um caminho no desvelamento de algo. Parece-me, pois, podermos estabelecer uma contraposição entre o livro de que nos ocupamos aqui e a célebre Obra ao Negro de Marguerite Yourcenar. Assim, se esta última mostra (e denuncia) um estar-aqui marcado pelo obscurantismo e pela negritude, em Obra ao Rubro é outro o itinerário que se pretende traçar.
António Gil, num texto preambular ao nó central da obra, traça um paralelísmo entre um processo organizativo alquímico-fisicista:

" Matérias primordiais, a inconjunta mole dos tecidos minerais (...) num cadinho de sais reagente..." (p 7)

com um outro que mais não é do que a própria experiência poética:

"(...) o poema e sua gema em conjunto, escolhem indigentes seu caminho, seu tempo, seus referentes, seu assunto..." (p 7)

Na terceira secção deste primeiro texto o poeta mapeia o que irá ser o solo fundamental (e fundante) deste seu livro ao falar do que se ergue das "trevas da matéria", isto é, dos "ribeiros de luz, regatos de fascínio, cascata de deslumbre", que são voz que circum-navega o eu-poético. António Gil, nesta minha leitura, pretende encaminhar-nos para um périplo simultaneamente poético-existencial, cosmológico e metapoético. Périplo este que ele cinde em cinco estádios - de que mais à frente falaremos -: Magmas, Irrupções, Aras, Fluxos, Auras.
Dos vários procedimentos estilísticos utilizados pelo poeta, podemos já referir um que surge como liame encaminhador de estádio para estádio: após discorrer, poeticamente, sobre cada uma destas etapas, António Gil vai lançando expressões e imagens que permitem a transposição para a temática seguinte sem que tal se faça com hiatos ou passagens abruptas. Estamos, por conseguinte, ante um livro de poesia que, sem pôr em causa a autonomia de cada poema, finca como cunho último a organicidade do todo. E chamo-lhe livro de poesia porque a sua não homogeneidade formal ( veja-se logo os primeiros textos: uma quadra, dois textos aparentemente prosaicos, um poema formado por dois tercetos...) jamais põe em causa a poeticidade da obra, bem como o solo matricial do qual ela irrompe e que a torna una e estruturada. Relativamente a esses textos que não assumem a forma (tradicional) de poema, direi tão-só que pode existir poesia sem que haja verso (vejam-se obras de Rimbaud, Christian Bobin, André Velter, Bernard Noel...), mas também podem existir outras, que, apesar de serem em verso, não o são de poesia, atenda-se, por exemplo, a Uma Viagem à Índia de Gonçalo M. Tavares. Portanto, e superado este aparente obstáculo, penso que Obra ao Rubro é um livro todo ele enformado por textos poéticos, mesmo consderando os que se inscrevem numa linearidade e narratividade com configuração de prosa, estes, por sua vez, apresentam-se como fragmentos de discurso trespassados por ritmo e compasso, que, regra geral, são enfatizados por dados esquemas rimáticos e por recorrentes figuras de estilo, que lhes vincam uma musicalidade bem próxima da existente nas estrofes tradicionais

Exemplo 1 ( texto de Magmas, p 16, a partir da 6ª linha ):
"(...) no céu frio petrifica, alta vaga marítima que avança, de fogo a ponta de sua lança (...) então falo e sinto que para dentro grito..."

Vemos aqui elementos cujo uso tem por fim a assunção do poético pelo fragmento, elementos como:
. o predomínio de uma pontuação prosódica
. rimas internas (fugindo, contudo, à definição estatuida deste conceito!) de carácter soante ou consonante: lança/ balança; rebate/ bate; relance/ lance; calo/ falo...

Exemplo 2 (texto de Irrupções, p 39, da 1ª à 9ª linha):
" É verdade que desenraizado andei de cidade em cidade (...) o desfalecido traço não avivo nem refaço."

Também neste excerto podem ser detetados diversos procedimentos que inserem toda esta produção textual na área da poesia. Eis, por exemplo, as mesmas rimas internas soantes, ou consoantes ( aliás, António Gil raramente utiliza rimas toantes): verdade/ cidade; balsa/ valsa; falso/ valso, etc.
Para além destes dois exemplos à guisa de breve fundamentação do carácter rítmico-poético deste livro de António Gil e, especificamente, deste tipo de textos, encontramos ainda outros procedimentos estilísticos que sedimentam (e ajudam a caracterizar) esta escrita:

Exemplo 3 ( texto de Irrupções, p 30):
" O solo em fuga decolando das minhas solas decoladas, o cabelo despenteando o vento (...) por força da sugestão e da palavra, acima, bem acima, muito acima...

Apenas alguns recursos estilísticos para reforçar a tese da riqueza desta tecedura poética:
. prosopopéias: "o solo em fuga"... esta figura aparece também noutros textos: "a fome das águas" (p 22)
. comparações: " os braços adejando como flâmulas"
. repetições intensificadores (gradações): " acima, bem acima, muito acima..."
. metáforas: "esta ave de rapina que já então no pulso me saía "

Finalmente o Exemplo 4 (texto da secção Irrupções, p 27):

Neste caso temos um poema constituído por quatro estrofes (quadras) que se apresenta:
. com rima externa interpolada ( António Gil nunca usa a rima emparelhada nem a alternada) e, de novo, a predominância das rimas soantes
. um deliberado desrespeito pela métrica do verso
. certos procedimentos estilísticos que raramente aparecem nos outros poemas, tais como:
----- jogos de paronímia: pareceria/ parceria (3ª estrofe); tacto/ tato (4ª estrofe)
----- o encavalgamento (processo que levanta, hoje, alguma polémica entre os poetas): veja-se o que surge na passagem da 1ª para a 2ª estrofe.

Como corolário deste breve olhar para o último livro de António Gil, e apenas no que diz respeito aos seus aspectos formais, não me ficaram quaisquer dúvidas que o poeta domina este seu fazer, mas sem dele se sentir prisioneiro, antes pelo contrário, a urdidura dos textos aparece-nos subordinada ao sentido dos mesmos. Por conseguinte, António Gil dota a sua escrita não só de fluidez, mas de um intencional acicate como forma de envolver o leitor com o corpo do texto; como forma de o comprometer com um percurso que, apesar de polissémico, parece-me subrepticiamente apontar para uma finalidade que o eu-poético pretende, com alguns laivos de normatividade, endossar àquele que o está lendo e, em certa medida, completando.
Este percurso inicia-se com uma primeira secção denominada Magmas. Para a leitura que temos vindo a fazer é importante esta opção pelo plural da palavra! Esta matéria ( ou matérias?) ardente surge-me associada a uma negatividade que se encontra esparsa por todas as vertentes dessa massa heteróclita e fervente:
. " Logo que as trevas jorravam dentro do quarto" (p 12)
. " Chorei no asfalto espargido" (p 14)
. " O ruído da metrópole desprende-se da ponta desta hora..." (p 15)
. " Assim como os níveis do ruído se podem elevar até à dor " (p 16)
. " Tanto nos habituámos a viver à superfície das coisas" (p 19)

E será depois, no texto da página 20, que, enfaticamente, nos surgirá a associação já referida entre o mundo físico e o mundo do poema:

" Embora haja quem o considere extinto ou de flor rara o repute, o poema é animal vivo e portanto repercute a respiração, a circulação e do voo o instinto: o seu magma particular é a vontade de voar nos dedos acesos como asas... "

A confirmação deste paralelismo mundo físico/ universo do poema poderá também ser inferida do final da página 22 , à medida que se anuncia o final desta secção e se adivinha a "divina irrupção" (p 23).
Em Irrupções ( e António Gil opta de novo pelo plural!) o magma incandescente, revolto e inundante do Todo encontra a sua porta de saída:

" O poema então irrompia
na língua viva do tacto
escrito na pele com o tato
do contacto que o escrevia "   (p 27)

Estas irrupções, tal como o entrevisto, e apesar do continuum do trajecto que atravessa todos os territórios do aqui abordado, são plurais, e mantém-se nelas uma interconexão em todos os sentidos. Dito de outro modo: se as irrupções ocorrem nos planos cosmológico e antropológico (veja-se texto da página 30), logo, elas se repercutem também no plano da criação poética:

" Se acaso para escrever aqui me sento
logo em voo uma ave se levanta
e é ainda em voo que ela canta
a imensidão do mútuo amor ao vento "  ( p 31 )

Esta irrupção, que é também existencial (leia-se a primeira estrofe do poema da página 35 ou o texto da 39), é acima de tudo o que nos leva dos Magmas ao "aprender o alfabeto da luz, a pronúncia sussurrada da folhagem, estudar apaixonadamente as conjugações estelares " ( p 34 ). Estamos, portanto, no seio de um caminho que é também decifração, onde " raras são as criaturas que aprendem a ler " ( p 41 ) aquilo que realmente É, aquilo que, pela sua sacralidade, não se encontra a todas as horas nem a todas as pessoas se entrega. Chegados a este ponto, e num reforço da coerência desta obra, percebe-se por que o poeta opta por epígrafes de autores como Jakob Boheme e Eckhart.
A terceira secção do livro, Aras, aparece intimamente ligada a uma dimensão sacrificial e a uma dada encenação do rito. Aqui, sobre as aras, é uma etapa fundamental do percurso que se desvela, uma etapa onde " o tempo é círculo " (p 47), como em qualquer ritual de consagração, e, portanto, onde cosmos, homem e poema ressurgem "ao arrepio da morte" (p 47), numa dimensão do sagrado que nada tem a ver com a noção tradicional de Deus, já "que de um deus abstracto e ausente, só necessita quem, pelo tacto, já seu Deus não sente" (p 48). É neste caminho que, por vocação e sentir o eu-poético a si destina... será por aí, por essa estrada, que o seu frio se transformará em brasa e a sua sede em água ( cf. p 51). Após esta apreensão (ou intuição?) António Gil escreve que é nas pelejas da terra, nessa incontornável guerra terrena, que ele ensaia algo:

"(...) onde treino e realizo a promessa antiga de um reino que me preza e que me abriga... " ( p 51 )

São vários, nesta secção, os elementos de uma simbologia iniciática, veja-se, por exemplo, "a rosa": páginas 56, 57, 63, 88, mas são ainda mais as passagens que nos remetem para a ritualização transmutativa de todas essas matérias provenientes dos Magmas originários (homem, poema, cosmos, etc.), que agora, sobre as Aras, vislumbram um território outro, um espaço onde serão plenamente, onde serão na absoluta coincidência do seu em-si essencial com o sagrado de que emanam e participam. A súmula deste itinerário aparece de forma nítida no poema da página 56:

" Ao sonho chegarás seguindo o curso
da rosa pendular da hipnose, do transe
da suspensa pedra que balance
entre dois pontos fixos do percurso

assim tu, auto-sugestionado
subirás ao miradouro do que és
e a paisagem que tiveres a teus pés
é imagem de teu ser distanciado "

Esta minha leitura tem logo outra confirmação na epígrafe de Fluxos, já que aí se diz explicitamente que a luz divina que ilumina todas as coisas e, consequentemente, a transmutação divinizante que recai sobre os entes, não é assimilada da mesma maneira por todos, já que o "coração grosseiro e inferior" devora-a, enquanto que o "coração subtil e superior absorve-a e irradia-a", ou seja, dotado de Aura este último funde-se com o próprio sagrado. É este, penso, o roteiro poético-metafísico apontado pelo o eu-lírico, roteiro que é igualmente ético, antropológico e até mesmo cosmológico. Um roteiro que, proveniente desses Magmas iniciais e através de etapas e transformações - Irrupções, Aras, Fluxos - alcança, em Auras, esse clímax que é simultaneamente plenitude, concretização fundamental e obtenção da verdadeira OBRA: sagrada, divina, RUBRA. Diz o poeta:

"Rubra é a obra que semeia
na carne fria da pedra
o verbo divino que impregna
de sangue quente a ideia "  ( p 87 )

Neste labor poético-existencial a poesia assume-se como um Fluxo privilegiado, mas, nas minha leitura, existem outros igualmente importantes (o Amor, a Palavra... até a Contemplação, como se lê na página 83), no entanto, é na (e pela) poesia que toda a obra humana se vê como transformável, pelo que uma OBRA AO RUBRO será necessariamente POÉTICA e uma OBRA POÉTICA será invariavelmente uma OBRA AO RUBRO. E será, por consequência, nesse território dual ( e dialogal) que o poeta tenderá a manter-se sempre, como António Gil conclui num dos seus poemas:

" Seja o poema abrigo
percurso, rosa acesa
rio, raio de surpresa
aura de rosto amigo

não me ocupa entrar
no poema ou dele sair:
se nele estou deixo-me ir
se dele saio é para voltar "   ( p 88 )
.
.
                     Victor  Oliveira  Mateus

13/05/12

" (...) que em vida/ nos não soubemos dizer "

.  " Um dia quando eu morrer "

Um dia quando eu morrer
isto é um dia quando eu estiver debaixo da terra
não quero que me vão levar flores
mas que as vão lá buscar
Gostava que por cima da minha cova não pusessem
laje nenhuma
só terra por mim estrumada
e aí plantassem as flores que amei em vida
açucenas rosas Palminhas de Santa Teresa (ditas Frésias)
ervilhas-de-cheiro goivos cravos jasmins
tudo flores com perfume
que é a alma das plantas
Sempre gostei mais de dar do que de receber
por isso ficarei feliz se forem à minha beira
buscar flores
os que me quiserem bem
Que as levem para casa e as ponham numa jarrinha com água
à cabeceira ou em cima da mesa de escrever
ou de comer
onde possam sentir minha presença viva
e trocar comigo olhares e sorrisos
e quem sabe talvez palavras
essas    as mais importantes    que em vida
nos não soubemos dizer

   Lopes, Teresa Rita. Afectos. Lisboa: Editorial Presença, 2000, p 25.
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"Hoje é tudo de compra./ Até os afectos./ Até a vida."


  " De compra "

Tenho a casa cheia de bordados e rendas
da minha Mãe e minha Tia.
Assim como eu faço escrita
elas faziam rendas e bordados
para se cumprir

Elas bordavam com linhas
eu bordo com sílabas

As pessoas que hoje já não fazem
rendas nem bordados
que compram tudo feito
vão constantemente à loja
e ao psiquiatra

Lembro-me que a minha Mãe
até a roupa interior fazia em casa.
De uma combinação de nylon dizia-se
com respeito
" é de compra ".

Hoje é tudo de compra.
Até os afectos.
Até a vida.

   Lopes, Teresa Rita. Afectos. Lisboa: Editorial Presença, 2000, p 39.
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Presença...

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Poemas meus num prestigiado espaço de poesia.

Vejam aqui:  http://www.amadeubaptista.blogspot.pt/
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Aguardamos uma luz de seiva
que reacenda a treva que nos cega.
Uma luz que não fira a brancura dos muros
nem as sombras dos alpendres
onde plantámos as giestas bravas.
Uma luz que devolva à terra
a farta lembrança das nascentes.
Uma luz para ficar como herança
quando as aves da morte se afastarem
para sempre deste caos
que, assustadoramente, nos acusa.

  Pires, Graça. Uma Vara de Medir o Sol. São Paulo: Editora Intermeios, 2012, p 81.
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Vou pela irregularidade das pedras
de uma aldeia envelhecida.
Há casas vazias com manchas e verdete
no trinco das portas e muros caídos
que são o fim e o começo de múltiplas evasões.
Os líquenes cobrem aleatoriamente
os degraus de granito e é lodoso o fio de água
vertido pela fonte de outras sedes.

  Pires, Graça. Uma Vara de Medir o Sol. São Paulo: Editora Intermeios, 2012, p 55.
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12/05/12

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Vamos com passos de lodo
pelo declive das dunas.
Já são tardios os atalhos que pisamos.
À boca das vagas acende-se a morte
e a ceguez das gaivotas que vagarosamente
se entregam ao turvo movimento das algas,
exaustas também da corrente estonteante
dos peixes à procura do sal e da luz.

  Pires, Graça. Uma Vara de Medir o Sol. São Paulo: Editora Intermeios, 2012, p 29.
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11/05/12

" Chaque jour j'attends tout. "

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Je veux bien souffrir, mais je ne veux pas désespérer. Je ne laisserai personne éteindre en moi la petite lampe rouge de la confiance.

Chaque jour j'attends tout.

   Bobin, Christian. La Présence pure et autres textes. Paris: Gallimard, 2008, p 194.
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" J'ai toujours le même âge que ceux que je rencontre. "

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Hier aprè-midi, en voyant mon père, j'avais quatre-vingt six ans. Un peu plus tard, en regardant un nouveau-né, j' avais deux mois et des poussières. J'ai toujours le même âge que ceux que je rencontre.

(...) La vérité vient de si loin pour nous atteindre que, lorsqu'elle arrive près de nous, elle est épuisée et n'a presque plus rien à nous dire. Ce presque rien est un trésor.

Je ramène de la maison de long séjour un besoin de toucher, ne serait-ce que furtivement, l' épaule de ceux que je rencontre, et une méfiance accrue des beaux discours.

  Bobin, Christian. La Présence pure et autres textes. Paris: Gallimard, 2008, 147.
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10/05/12

"Tout."

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L'arbre est devant la fenêtre du salon. Je l'interroge chaque matin: " Quoi de neuf aujourd'hui?" La réponse vient sans tarder, donnée par des centaines de feuilles: "Tout."

  Bobin, Christian. La Présence pure et autres textes. Paris: Gallimard, 2008, p 125.

"Votre coeur était comme le miroir. Maintenant il est comme vos montres. Il ne chante plus..."

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Chez nous pas de montre ni d'horloge.

Le temps qui passe a la beauté pour unique preuve - la beauté ou la douleur, tant il est vrai que nous n'avons jamais su démêler l'une de l'autre, tant il est vrai que beauté et douleur sont dans nos âmes comme les deux aiguilles de vos montres, quand elles se superposent.

Le temps chez nous est comme de l'eau. L'éternité chez nous est comme de l'eau. Le coeur chez nous est comme de l'eau. Le temps, le coeur et l'éternel mélangent leurs eaux partout dans le monde comme beauté, dans le monde comme douleur.

Vous avez d'abord cru que l'éternité était un miroir. Vous avez longtemps cherché à vous y reconnaître, en vain. Vous avez accusé le miroir, vous lui avez jeté une pierre, puis deux, puis trois, jusqu'à ce qu'il se brise en mille morceaux - mille secondes, mille minutes, mille heures.

Votre coeur était comme le miroir. Maintenant il est comme vos montres. Il ne chante plus la lumière. Il compte les ombres.

Vous êtes pressés. Vous êtes essoufflés. Vous vous agitez dans tout ce que vous faites comme le dormeur au fond du lit.

Chez vous le temps s'entasse - et puis se fane.

Chez nous le temps se perd - et puis fleurit.

Attendre, c'est ce que nous savons faire de mieux, l'art suprême auquel tous ici s'exercent, enfants comme vieillards, hommes comme femmes, pierres comme plantes.

Caravane de l'attente avec ses deux chameaux, solitude et silence.

Fier navire de l'attente avec ses deux grandes voiles, solitude et silence.

Celui qui attend est comme un arbre avec ses deux oiseaux, solitude et silence. Il ne commande pas à son attente. Il bouge au gré du vent, docile à ce qui s'approche, souriant à ce qui s'éloigne.

Celui qui attend, nous l'appelons le "tout comblé" - car dans l'attente le commencement est comme la fin, la fleur est comme le fruit, le temps comme l'éternel.

  Bobin, Christian. La Présence pure et autres textes. Paris: Éditions Gallimard, 2008, pp 31 - 33.
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09/05/12

Traduzindo...


.Nota - Chantal Mauduit foi uma importante alpinista francesa. A 13 de Maio de 1998 morre, nos Himalaias, soterrada por uma avalanche, enquanto dormia na sua tenda.. Pouco tempo depois André Velter dedica-lhe um dos mais pungentes livros de poesia que conheço: "L'amour extrême". Ontem, finalmente, consegui a coragem para traduzir um poema desta obra.
(Nota 2 - As traduções incluidas neste blogue encontram-se protegidas pela legislação relativa à propriedade intelectual das mesmas. Não é meu hábito levantar quaisquer obstáculos à republicação de trabalhos meus, agradecia, no entanto, e no que diz respeito às traduções, que ma comunicassem...)


Quando não estou a pensar em ti, é ainda em ti que penso.
Quando falo de qualquer outra coisa, é de ti que falo.
Quando caminho - por aí - ao acaso, é para ti que me dirijo.
Abandono todos os livros que não me falam de ti.
Deito fora os poemas que não seguem na direção dos teus lábios.
Rasgo desenhos e pinturas que não ousam seduzir o teu olhar.
E, por fim, destruo qualquer canção que não me traga de volta a tua voz.

  Velter, André. L'amour extrême et autres poèmes pour Chantal Mauduit. Paris: Gallimard,
2007, p 120 ( Tradução: Victor Oliveira Mateus).
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08/05/12

" Pássaro, pássaro de fogo!// Olhos que te viram cegaram/ para ver-te melhor!"

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 " Pássaro de Fogo "

A princípio o vôo
foi baixo,
acaso tímido.
Com grande silêncio em torno.
As asas batiam,
batiam e fechavam-se
rascantes
- tuas asas e garras! -
contra a espessura do vergel.

Já pela relva
tombavam
sob teu hálito - violentos,
os frutos primeiros.

Contra as altas paredes
nem sequer investiste.

De súbito,
pelos flancos,
incendiaste a montanha.

De súbito cavalgavas o espaço
equilibrando-te
- aura e domínio -
entre o horizonte e a abóboda.

Contra o verde e o azul,
de tua sombra vinha sangue.
(Sob teus auspícios,
contra o ferro, a madeira e a crosta endurecida
da terra,
multiplicavam-se enxadas, foices e malhos.)

Clima de estranho sortilégio
com címbalos, flâmulas e ouro líquido
de outros planetas.

Era um canto, uma dança, um vôo,
o exercício da liberdade,
era porventura a descoberta
do espírito?

Pássaro, pássaro de fogo!

Olhos que te viram cegaram
para ver-te melhor!

   Lisboa, Henriqueta. Melhores Poemas. São Paulo: Global Editora, 2000, pp 70 - 71.
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07/05/12

" Vende-se diabo não hemofílico: "

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 " crônica de bolso "

Vende-se favela a bom preço:
perfume de mognos,
tampos de pino,
rumores de pau-ferro,
moradia umedecida.

Vende-se diabo não hemofílico:
para almas de toque laminado.

  Frazon, Luiz. roçando água. Franca: Ribeirão Gráfica Editª, 2008, 54.
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" poema-lago/ anote-o "

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poema-lago
anote-o
de modo descuidado
para que
sobre o rascunho do corpo
dilatado
transbordem enigmas

  Frazon, Luiz. roçando água. Franca: Ribeirão Gráfica Editª, 2008, p 34.
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05/05/12

Contando...

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1. - O conto A Confirmação foi publicado no Suplemento h do Macau Hoje (no Território de Macau,
      República Popular da China) no dia 4 de Maio de 2012 ( a referência bibliográfica já foi atualizada
      neste blogue);


2. - Miguel Real escreve sobre a antologia Um rio de Contos na sua mais recente obra: " O Romance
      Português Contemporâneo, 1950 - 2010 ", Editorial Caminho, 2012, pp 188 - 189;

3. - O conto  Nem toda a cidade é triste surgirá dentro de dias no próximo número da Revista Letras
       com Vida.
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04/05/12


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  " Soneto das Luzes "


Uma palavra, outra palavra, e vai um verso,
eis doze sílabas dizendo coisa alguma.
Trabalho, teimo, limo, sofro e não impeço
que este quarteto seja inútil como a espuma.

Agora é hora de ter mais seriedade,
para essa rima não rumar até o inferno.
Convoco a musa, que me ri da imensidade,
mas não se cansa de acenar um não eterno.

Falar de amor, oh meu pastor, é o que eu queria,
porém os fados já perseguem teu poeta,
deixando apenas a promessa da poesia,

matéria bruta que não coube no terceto.
Se o deus flecheiro me lançasse a sua seta,
eu tinha a chave pra trancar este soneto.

   Secchin, Antonio Carlos. Todos os Ventos. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2002, p 137.
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03/05/12

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 " Colóquio "


Em certo lugar do país
se reúne a Academia do Poeta Infeliz.

Severos juízes da lira alheia,
sabem falar vazio de boca cheia.

Este não vale. A obra não fica.
Faz soneto, e metrifica.

E esse aqui o que pretende?
Faz poesia, e o leitor entende!

Aquele jamais atingirá o paraíso.
Seu verso contém a blasfémia e o riso.

Mais de três linhas é grave heresia,
pois há de ser breve a tal poesia.

E o poema, casto e complexo,
não deve exibir cenas de nexo.

Em coro a turma toda rosna
contra a mistura de poesia e prosa.

Cachaça e chalaça, onde se viu?
Poesia é matéria de fino esmeril.

Poesia é coisa pura.
Com prosa ela emperra e não dura.

É como pimenta em doce de castanha.
Agride a vista e queima a entranha.

E em meio a gritos de gênio e de bis
cai no sono e do trono o Poeta Infeliz.

  Secchin, Antonio Carlos. Todos os Ventos. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2002, pp 26 - 27.
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02/05/12


 " É Ele! "


No Catumbi, montado a cavalo,
lá vai o antigo poeta
visitar o namorado.
Não leva flores, que rapazes
raro gostam de tais mimos.
Leva canções de amor e medo.
Cachoeiras de metáforas,
oceanos de anáforas, virgens a quilo.
Ao sair, deixa ao sono cego do parceiro
dois poemas, um cachimbo e um estilo.

  Secchin, Antonio Carlos. Todos os Ventos. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2002, p 17.
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01/05/12

" A não serem dissabores,/ Um também te houvera dado. "

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 " O 1º de Maio "

Entra hoje o mês das flores,
Lindo Maio, o perfumado,
Em que todo o namorado
Dá um ramo aos seus amores!
A não serem dissabores,
Um também te houvera dado.

Dera-te uma bela rosa
Só meia desabrochada;
Inda de pranto banhada
D'aurora pura e formosa!
Imagem da desditosa,
Com meia vida roubada!

Um jasmim também te dera...
É tão alvo e delicado!...
Em seu cálix apertado
Doce lágrima se gera,
Que á memória te trouxera
Um peito nunca manchado!

Mas eu só tinha amor,
Que encontrei murcho no chão!
Calcado sem compaixão,
Já não parecia uma flor!
Ah! quem não teria dor
De assim ver a perfeição?

O meu jardim acabou;
Já não tenho mais que dar:
Para dele me lembrar
Só uma silva ficou
Selvagem, que se criou
Para prender, e rasgar!

   in A Poesia Ultra-Romântica, Vol. I de Jacinto Prado Coelho.

Nota - Maria Browne ( 1800-1861 ) formou, juntamente com Soares de Passos, o díptico mais importante do nosso ultra-romantismo poético. Assinou com vários pseudónimos e teve um salão literário que, na época, era frequentado pelos mais importantes intelectuais como Camilo e Arnaldo Gama.
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