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13/07/13

 
 
(...) só pensavam em dinheiro, nada sabiam de amor, comentava Rhema, eu desculpava-os, era o meu povo, a vida não os ensinara a seguir o amor, só o dinheiro, desejavam reencarnar numa casta superior, aquela que eu desprezara, não contemporizavam com frangues exóticos, olhavam para mim com o olhar de piedade dos ricos, o mesmo que inúmeras vezes vira soltar dos olhos do meu pai, eles, mais pobres do que eu, carecidos de um grande amor, o que nos sustentava era o arroz e o caju, tínhamos clientes certos no mercado de Pangim, abastecidos pelos furgões, o Augusto não vendia o arroz e os cajus a mais ninguém, orgulhava-se dos seus clientes de Pangim e não lhes dava troco quando lhe perguntavam o que fazia ali naquele sertão numa comunidade sem nome, isolado, no meio de gente rude, o Augusto levantava a mão, sorria com um sorriso bonito, nada dizia, eles percebiam, os portuguses tinham sido expulsos em 1961, o Augusto quisera ficar, isolara-se, longe das cidades, apiedavam-se dele, passavam-lhe a mão pelo cabelo, cumprimentavam-no à europeia (...) o Augusto abria as mãos, dizia, é aqui que me sinto bem, ao pé da minha mulher, e apontava para mim, acocorada à entrada do nosso casinhoto de taipa, descascando feijão, quando a Sumitha tinha dois anos um goês de Ribandar ofereceu uma grossa quantia pela menina, o Augusto expulsou-o a murro do nosso terreno (...) no final delirava, chamava-me Rosa, Rhema presumiu ser o nome da mãe dele, esclareci-lhe, não, era o nome da mulher que Augusto deixara em Lisboa, Rhema percebera quando Xavier a procurara recentemente, dizendo-lhe ter chegado a Goa um filho do Augusto, Rhema nunca desconfiara, nunca o marido lhe dera um indício de ter sido casado, amou-me muito, disse Rhema, tudo trocou por mim, conforto, dinheiro, cidade, crença, mas não imaginei que também tivesse trocado a mulher legítima pelo meu amor...
 
 
   Real, Miguel. O Feitiço da Índia. Alfragide: Pub. Dom Quixote, 2012, pp 320 - 322.
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12/07/13

 
 
  Os empregados do Churchill Palace Hotel desculpavam-se, Bombaim era um estaleiro, modernizava-se, os novos arruamentos ganhavam passeios, candeeiros de luz eléctrica, portarias que garantiam o asseio, polícias de farda creme, bombas de água para incêndios, caixotes de lixo municipais, mas eu assemelhava Bombaim a uma cidade sobrevivente de um terramoto ou de uma guerra civil, Hassan mostrara-me os subúrbios, vislumbrava tendas cinzentas, filas de tendas, como um acampamento militar, pressupunha que cada tenda albergaria uma família (...) as faces resignadas dos eternamente pobres, os filhos passivos presos entre os panos das pernas, seres condenados ao opróbrio e à miséria, Hassan parava, eu olhava demoradamente, contemplando aquele bando de maltrapilhos que, no campo ou na cidade, há três mil anos assim vivia, manipulado por rajás, marajás, brâmanes, samorins, reinetes, republicanos, socialistas, capitalistas ou comunistas, há três mil anos nasciam pobres, viviam miseravelmente e morriam desgraçados, amaldiçoados pelo destino. Insone, saía à noite do hotel, buscava lugares frequentados por europeus, a mole imensa neogótica de pedra e mármore da Estação Central, os imóveis da universidade, o vão da Porta da Índia, onde chusmas emporcalhadas de indianos adormeciam todas as noites, cobertos por cartões de supermercados europeus (...) arrumavam-se uns contra os outros, buscando no corpo alheio o calor interior que em cada um fenecia, trocando sémen e suor, recalcando no sono a vida malbaratada, bandos de crianças andrajosas invadiam as ruas pela manhã, pés nus, trapos rotos, narizes ranhosos, olheiras de adulto, mãos negras de fuligem e carvão, ofereciam-se aos brancos e indianos proprietários de vendas e lojas, faziam tudo, recados, arrumações, carregos, cosiam peles ensanguentando as mãos, transportavam tijolos, carvão, pranchas de teca do triplo do tamanho do seu corpo, batiam punhetas e faziam broches, levavam e iam ao cu em troca de um pão com goiabada, um púcaro de café, um prato de arroz com caril, uma coxa de frango tandoori, assaltavam casas e lojas, massacravam cães de rua, se preciso matavam, regressavam às famílias à noite, mortos de cansaço, arrastavam dez rupias na mão fechada com que a mãe compraria peixe e arroz para a família de sete filhos e pai defunto; crescidos estendiam uma esteira ou um pano velho de sari na rua, levantavam uma venda, vendiam pincéis de barba roubados durante a noite, giletes usadas, esferográficas de tinta seca, borrachas desgastadas, manuais escolares sublinhados, furtados aos armazéns do Estado (...) um motorista zanga-se comigo, eu zango-me com ele, viro-lhe as costas, zango-me com Bombaim, cidade extremada...
 
 
   Real, Miguel. O Feitiço da Índia. Alfragide: Pub. Dom Quixote, 2012, pp 114 - 116.
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11/02/12

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Estranha, mas verdadeiramente, o pensamento de Agostinho da Silva, homem austero, reservado e humilde, possui fortes afinidades com o de Natália Correia, uma poetisa do erótico, do privilégio civilizacional atribuído à mulher, da exuberância fáustica dos sentidos e dos sentimentos, autora extrovertida, noctívaga de bares e botequins, recolhendo-se de madrugada e levantando-se com o esmorecer da tarde.
De facto, a publicação de uma centena de páginas inéditas, recolhidas do espólio de Natália Correia por José Eduardo Franco e José Augusto Mourão, veio tornar mais saliente um conjunto de afinidades intelectuais e espirituais entre ambos os autores. Relendo estas páginas, constatamos a existência de três teses transversalmente presentes na obra dos dois autores:

1) Uma nítida postura militante contra o racionalismo dominante nas sociedades actuais, causa, não de progresso, mas de  decadência;
2) A exigência de uma urgente e radical alteração na actual sociedade através da presença do sagrado no homem;
3) O resgate do modelo arquetipal da cultura portuguesa em torno do culto do Espírito Santo, cuja última Terceira Idade é por ambos identificada com o Quinto Império.

Com efeito, para além da comum pulsão de infinita liberdade, que a ambos forçou uma postura social e intelectual contra o regime do Estado Novo, constata-se nos dois pensadores a existência de uma pulsão revolucionária que continuamente lhes altera a existência, em Natália concretizada nos seus diversos casamentos (situação escandalosa para a sociedade puritana das décadas de 50 a 70) e em Agostinho no modo contestatário que, ao longo da sua vida, presidiu às suas relações com as intituições cristianizadas do Estado Novo (Escola, Igreja, Universidade, Estado). Assim, este triplo conjunto de teses desenha uma comunidade de pensamento, insuspeito até 2005, entre a autora de Mátria e o autor de Vida Conversável.
Entre todas as escritoras portuguesas da segunda metade do século XX, Natália Correia constitui-se como a que mais afirma a sua obra literária numa atitude nitidamente contestária da racionalidade lógica e tecnológica do actual estado da civilização ocidental. Toda a sua obra no campo da poesia e do ensaio se constitui como um forte libelo contra o domínio da razão sobre a sensibilidade, bem como, do ponto de vista social, contra o domínio da lógica do interesse da razão de Estado contra a justiça presente no sentimento espontâneo da população (...) Natália Correia crê em tudo o que a Igreja Católica recalcou ao longo da sua história: a Grande Deusa, ou Deusa-Mãe, pudicamente transfigurada pela Igreja Católica em Virgem Santa ou Imaculada Conceição, os atlantes, as fadas, a vidência maravilhosa, a carne que enfeitiça o Além; crê na fusão quotidiana entre tempo e eternidade, na força do Amor profano, num futuro neo-pagão que já houve antes, no politeísmo dos deuses. Dito de outro modo, Natália Correia crê na existência de uma alternativa ao actual estado da Civilização Ocidental, não fundada em projectos contemporâneos de futuro, como o marxismo ou o ecologismo radical, mas na ressurreição com novas qualidades de momentos civilizacionais e culturais arcaicos onde fora possível "harmonizar as partes dissonantes" através de um "empenho... mais fecundo". (...)
Assim, desde a década de 1960, com a publicação de Mátria, de Madona, da peça de teatro O Encoberto, e da organização da Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, bam como das meditações nascidas a partir do ensaio Descobri que era Europeia, Natália Correia peregrina poética, ficcional e ensaisticamente em torno dos limites e das margens da nossa sociedade, desvinculando-se totalmente da atracção das duas alternativas ideológicas oferecidas - o capitalismo e o comunismo, como confessa tanto em Poesia de Arte e Realismo Poético como em Descobri que era Europeia, explorando correntes estéticas e temas recalcados ou marginalizados pelas estéticas dominantes, como o evidencia o apego ao surrrealismo e ao romantismo, a investigação sobre a condição da mulher e a inquirição sobre as origens da poesia portuguesa.
Como se constata, coexiste nas obras de Natália Correia, ao longo das décadas de 50 e 60, um apertado e agressivo cerco envolvente da essência racional da sociedade europeia contemporânea, um fundo desprezo pelo novo sentido civilizacional estabelecido pelos estados Unidos da América relativamente aos valores humanistas europeus, e a busca de uma alternativa civilizacional, redentoramente apresentada em Mátria e em Madona, para de modo ficcional explodir posteriormente nos contos de A Ilha de Circe, sobretudo no conto "Mãe, Mãe, porque me abandonaste?". Constituía-se assim o seu pensamento maduro, ou, se se quiser, o tema central e irradiante por que se entende tanto cada parte como a totalidade da sua obra: a crença na existência de um complexo de valores femininos civilizacionalmente recalcados e culturalmente violentados pela nossa civilização, simbolizados arcaicamente pelo culto da "Grande Deusa" ou "Deusa Mãe", expressão de um paganismo imanentista e naturalista assente na simbiose entre a sensibilidade do corpo e a espiritualidade da alma, que o judaísmo moisaico, o platonismo grego e o cristianismo romano e medieval decapitaram em nome da razão lógica e do poder do Estado, subjugando simultaneamente, de um ponto de vista social e político, a fonte física e mental desta primitiva sociedade pagã, orgiástica e naturalista - o universo da mulher. Neste sentido, tornar-se-ia necessário, hoje, para a autora, subverter o sentido global da civilização, resgatando-a do domínio do homem para a acomodar a um "futuro que houve dantes", isto é, aos valores femininos - eis o propósito filosófico de Natália Correia e eis o sentido da sua obra no seio da cultura portuguesa da segunda metade do século XX, praticamente só compreendido após a sua morte devido às peripécias políticas e ao ambiente de vadiagem nocturna por que superficialmente se tem aureolado a última vintena de anos da vida da autora (...).
Nos documentos publicados do espólio, Natália Correia registou a sua crença em "uma nova fé que o homem moderno possa aceitar", prenunciada através de alguns "sinais de retorno ao sagrado", libertado das cinzas do racionalismo expresso nos domínios avassaladores da tecnologia e da massificação das sociedades, que "des-significam a existência". Por outro lado, Natália Correia denuncia a sociedade actual como expressão da "androcracia mosaica", evidenciando um longo trilénio de pressão cultural e civilizacional sob o domínio de valores racionalistas vinculados à visão masculina do mundo. Neste sentido, Natália Correia considera o complexo social tecnocrático e científico actual expressão de uma razão lógica, contabilista e fria, resultado de um estado de decadência europeia que progressivamente tem vindo a desumanizar o homem, isto é, a desdignificar a existência humana no seu todo(...).
Para Natália Correia, o sagrado evidencia-se como uma força imanente ao homem e à natureza, força e pulsão que a ambos envolve, conduz e orienta, força celebrada sem mediações litúrgicas e sacerdotais, como se cada homem, na multiplicidade da sua existência, vivesse imediata, directa, sensível e sentimentalmente a unidade-pluralidade divina. O mesmo defende Agostinho da Silva com uma radical diferença: se em Natália Correia, o sagrado se estatui como força (ou energia) e pulsão imanente na pluralidade da natureza e na unidade humana, na teoria de Agostinho da Silva seriam abolidas, no futuro, todas as distinções ontológicas dicotómicas (belo/feio, bem/mal, justiça/injustiça, uno/múltiplo, essência/aparência, ser/devir, tudo/nada, Deus/criatura...), sendo, portanto, abolida a distinção imanente/transcendente, vivendo cada homem em estado de plenitude, extinguindo-se deste modo os antigos valores vinculados à propriedade, ao trabalho, ao casamento, ao Estado, renascendo a humanidade numa nova e feliz existência paradisíaca..
Se para Natália Corrreia este novo estado de existência humana consagrará a assunção de múltiplos estados dionisíacos, dando origem a uma certa forma de "politeísmo pentecostal", para Agostinho da Silva este novo estado reproduzirá a existência humana da "Idade de Ouro" ou do "Paraíso", consagrando a vivência do homem com, melhor, no seio do espírito de Deus, ou seja, do Espírito Santo. Tal como para Agostinho da Silva, para Natália Correia este mesmo espírito divino constitui-se como essência do homem, mas, para esta autora, de acordo com o privilégio atribuído na sua teoria à Grande Deusa, o Espírito de Deus ou Espírito Santo é de essência feminina. Neste sentido, não se deveria escrever "Espírito Santo", mas "Espírita Santa", correspondente à verdadeira - segundo Natália Correia, mas abundantemente contestada por José Augusto Mourão - tradução para português das expressões judaica e aramaica "Shekinah" e " "Ruah Kadesh". A civilização ocidental, desde logo na sua raiz judaica, teria subvertido a essência feminina do sagrado, correspondendo historicamente ao total abandono do estado de matriarcado e consequente passagem ao de patriarcado, e imposto o total domínio androcêntrico, recalcando a era histórica anterior - época de grande felicidade, na visão de Natália Correia. Neste sentido, o esgotamento desta nova sociedade antropocêntrica conduziria inevitavelmente tanto à re-emergência dos antigos valores femininos quanto à re-irrupção do sagrado no meio da sociedade. Assim o fora no passado, assim o será no futuro (...).
Tanto em Agostinho da Silva como em Natália Correia, o medelo arquetipal da cultura portuguesa reside na celebração do culto do Espírito Santo tal como fora praticado na Idade Média, desde o século XII, fortemente incrementado, mesmo generalizado e popularizado, pelo fervor religioso da rainha Santa Isabel. Para Natália Correia, porém - como salientámos -, o termo "Espírito Santo" conteria semanticamente um valor feminino, constituindo-se para o povo judaico a expressão religiosa da Deusa mediterrânica(...) o culto do Espírito Santo (...) surge, assim, para ambos os autores, como a matriz fundadora da cultura portuguesa e o espelho perfeito do conjunto de valores comunitários e igualitários que nortearam o Portugal medieval, fundando-lhe o arquétipo da sua cultura. A descentralização do poder por via da independência dos municípios face aos nobres, a igualitarização de todos com todos dentro dos concelhos, gerando as assembleias dos mais velhos e dos homens-bons, encontraria fundamento cultural na atitude religiosa do culto, não do Pai, símbolo do poder, não do filho, símbolo do amor e do sofrimento que resgata, mas do Espírito de Deus, símbolo da unidade de todos com todos, base do actual ecumenismo proclamado pela crença no advento da Terceira Idade do Mundo ou Idade do Espírito Santo. Do mesmo modo, fundado na crença do advento de uma futura idade paradisíaca, ganham sentido o espírito peninsular de cruzado e o espírito monástico, ambos totalmente submetidos, para a vida ou para a morte, à vontade de Deus, base filosófica da atitude ousada empreendedora dos Descobrimentos (...)
Em função das três afinidades conceptuais salientadas entre as teorias de Agostinho da Silva e Natália Correia, podemos sintetizá-las sublinhando que ambos os autores defendem idêntica postulação da cultura portuguesa como mediadora universal do anúncio de uma nova era mundial, assente na divinização do homem (...). Porém, Natália Correia enfatiza a vertente imanentista do sagrado e Agostinho a superação das antinomias imanente/transcendente pela assunção de uma vida humana plena, total e una.
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Miguel Real in " O Pensamento Português Contemporâneo 1890 - 2010 ", Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 2011, pp 806 - 815.
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09/12/10

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Cheguei a Fátima ao meio-dia, o santuário em obras, compressores e betoneiras cessavam o seu ruído sacrílego, os operários estiravam-se entre pilhas de pranchas de madeira e montículos de areia e cimento, sorviam da lancheira feijão seco com uma colher; olhar embrutecido pelo vinho, um corredor especial esperava-me, desimpedido, o crucifixo na mão, as contas enroladas no antebraço, o terço de prata oferecido por Pio XII, em quem pouco confiei, um Papa titubeante, severamente indeciso, esquecido dos princípios éticos cristãos, mais italiano do que supremo representante de Deus na terra, percebia-se a vaidade nas sedas imaculadas dos paramentos, nas sotainas engomadas e superiormente vincadas, nos sapatos vermelhos da tradição, na barba dupla ou triplamente escanhoada, diferente da do seu antecessor, Pio XI, a casula amarrotada, a mitra tombada na cabeça, Pio XII fora núncio na República de Weimar, conhecera Hitler pessoalmente, assistira à crescente subida eleitoral do Partido Nacional-Socialista, às manifestações medievais do ódio germânico contra os judeus, os ciganos e os homossexuais, não levantou o dedo em nome dos desprotegidos, dos que sofriam, dos humildes, carregados em camiões para abrirem estradas a picareta, passavam sob a varanda da nunciatura, roncando o seu poder maligno, nada fazia, nada fez, devia tê-lo feito, em nome dos antigos erros da Igreja, da ética universal, devia ter estado ao lado do Bem, mestre em palavras dúbias, como Pôncio Pilatos, orientava sem orientar, devia ter comandado o povo católico contra a Besta, Hitler, não o fez, assemelhava-se àqueles que em Portugal me tinham dito que entre a foice e o martelo e a cruz gamada, esta ainda continha a cruz, Hiltler seria recuperável com o tempo, os judeus não, os comunistas menos, foi de um seu confidente a famosa frase "o comunismo, um inimigo a exterminar", título de inúmeros jornais e livros católicos, o medo dos vermelhos abriu a porta a Mussolini e a Hitler, Pio XII considerava o socialismo, o comunismo e o anarco-sindicalismo consequências degeneradas do liberalismo e do ateísmo europeus, forçoso liquidar este, o capitalismo, para que por asfixia natural morressem socialistas e comunistas, Hitler, a Besta, na mente maquiavélica da Igreja, constituía o instrumento de liquidação do capitalismo, ficariam enfim frente a frente a Besta e a Cruz, o fim dos tempos, o Armagedão, todo o fervor da Igreja deveria assentar na morte do capitalismo, condenara os padres da Acção Católica que evangelizavam os operários, a Igreja devia retirar-se do mundo e deixar o mundo autoliquidar-se, no final emergiria triunfante, recolhendo os restos, preparando uma nova evangelização, um novo mundo, sob os cadáveres de milhões de europeus. As minhas relações com a Igreja foram sempre heterodoxas, em Portugal tinha dificuldade em relacionar-me com os bispos de ventre inchado como uma panela de gorgulho, especialistas em temperar refogados e apreciar o ponto de açúcar no caramelo, meu pai e avô recordavam como a Igreja se ratraíra no tempo do exílio, reduzida a uma relação formal de apoio,(...) aconteceu o mesmo na instauração da república portuguesa, bem podíamos, eu e o Manuel, ficar à espera do apoio da Igreja, foi preciso o negreiro Afonso Costa ter expulsado dois bispos para a Santa Sé cortar relações diplomáticas com Portugal, defendiam-se, como instituição, não defendiam a Monarquia, é assim que vejo a instituição Igreja, digo instituição, distinguindo fortemente a mensagem de Jesus da cúpula reitora da Igreja, defensora em exclusivo dos seus interesses, vim a este descampado de Fátima em busca do sagrado, o sentimento de protecção espiritual que experimentara na infância, no tempo de Leão XIII, o único Papa de quem me senti próxima, adaptou a Igreja aos tempos modernos, a encíclica Rerum Novarum, Das Coisas Novas, jogou a Igreja para os bairros dos trabalhadores, as fábricas, defendendo um capitalismo social de aproximação aos pobres, de comiseração para com estes (...) tanta esperança tivera eu de que o Luís Filipe, se tivesse chegado a governar, se a monarquia se tivesse prolongado mais dez anos, tornasse Portugal um país exemplar, como as monarquias escandinavas e inglesa, que libertaram os seus povos da fome e da ignorância...
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Miguel Real in "As Memórias Secretas da Rainha D. Amélia", Publicações Dom Quixote,
Alfragide, 2010, pp 246 - 249.
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30/11/10

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... a Filomena consolou-a, não sei, disse, o seu pai apaixonou-se e viveu um grande amor, uma maravilha, trocou de país em nome do seu amor, outra maravilha, aprendeu uma nova língua, uma nova cultura, o que poucos homens têm o privilégio de fazer, nova maravilha, depois viveu feliz vinte anos, acreditando no comunismo, presumindo-se na vanguarda do mundo, vinte anos de existência maravilhosa, em seguida deu-se a queda, a felicidade tornou-se infelicidade, com a mesma força, a mesma intensidade, o gosto em desgosto, a alegria em tristeza, em suma, a ilusão em desilusão - acho que o João Carreira da Mota foi um homem cheio de sorte na vida, a maioria de nós vive mediocremente, repetindo a eterna rotinazinha do trabalho, ao almoço uma dose de bacalhau à lagareiro, depois o trabalho, ao jantar uma posta de salmão, à noite muita televisão, o círculo repete-se no dia seguinte, e no dia seguinte, o seu pai, disse a Filomena, foi um homem de vida cheia, a Yanna não tem por que chorar, o seu pai era um nada em Sintra, um canteirozito, igual a qualquer outro, tornou-se tudo em Sófia, dono da vida e do futuro, e voltou a ser nada em Plovdiv, atravessou o ciclo da existência: nada, tudo, nada, nem sofreu o nada decadente da velhice, a maioria de nós percorre a existência sobrevivendo no nada: nada, nada e nada. Yanna sorriu, agradeceu à Filomena, retirou da maleta de estudante um embrulho irregular, de papel verde amarrotado, usado, abriu-o, o tinteiro de prata, velho, carcomido, mostrou-nos, devia devolvê-lo ao Estado português, não é meu, eu reembrulhei o tinteiro, de valor insignificante, percebia-se que não era de prata, as avarezas de Salazar, ferro disfarçado de prata, uma peliculazinha de prata, meti-o na maleta de Yanna, guarde-o, disse, conte aos seus filhos a história do avô, mostrando-lhes o tinteiro que viera de Portugal, eles vão gostar de saber a história de João Carreira da Mota, o soldado revolucionário que por amor veio para a Bulgária.
Levantámo-nos, Yanna passou-me o envelope com as memórias da rainha D. Amélia, Miguel, disse, entregue na Torre do Tombo, no espólio de Oliveira Salazar, donde nunca devia ter saído, passou-me um envelope para a mão, abri, a declaração da descoberta do manuscrito após a morte do pai, assumo a responsabilidade; muito bem, disse eu, aproximámo-nos da porta envidraçada, a empregada abriu-a, curvada até aos joelhos, cheia de salamaleques bizantinos, espreitando gorjeta, que dei, farfalhuda, enfatizando a superioridade do Ocidente, depedimo-nos, a Filomena ofereceu a casa em Sintra a Yanna, sempre que viesse a Lisboa, ela não podia fazer o mesmo, a casa da avó era um cubículo de uma assoalhada, ela dormia na sala, num sofá, beijámo-nos, Yanna olhou-me fixamente, a sua compostura gélida tremeu, emocionada, uma lâmina de água sulcava os seus olhos, agarrou-me o braço, comovida, Miguel, disse, tenho de ser sincera, os meus pais não morreram num acidente de viação, suicidaram-se, jogando o carro por uma ravina de 100 metros, abraçaram-me muito fortemente no dia da partida para Plovdiv, beijaram-me demoradamente, disseram-me que este tempo não era já o seu, aconselharam-me a não ficar presa a cadáveres, eu não tinha percebido, o meu pai depôs as mãos nos meus ombros e disse, solenemente, faz a tua vida sem te preocupares com a política, calhou-nos um tempo em que só os medíocres e os oportunistas vivem para a política, Yanna, disse-me o meu pai, muito sério, foram estas as últimas palavras que lhe ouvi, não fiques presa a cadáveres.
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Miguel Real in "As Memórias Secretas da Rainha D. Amélia", Publicações Dom Quixote,
Alfragide, 2010, pp 54 - 55.
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06/12/09

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Coordenador d'O Livro Negro da Feira do Livro de Lisboa (Jornal, 1985), sobre a abstrusa proibição de venda de revistas no recinto da Feira do Livro, dos álbuns (Re)Descobrir Stuart e A Vida das Imagens (Diário de Notícias, 1989 e 1994) e Grandes Repórteres Portugueses da I República, Pedro Foyos, polivalente no campo do jornalismo, tem-se dedicado muito intensamente à fotografia, dirigindo diversas revistas da especialidade.
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1. Contextualização
No romance, publicou um muito bem fundamentado romance histórico, de qualidade superior, O Criador de Letras (Hespéria, 2009), sobre a vida quotidiana no Próximo Oriente e a invenção do alfabeto, e, na rentrée escolar deste ano, um romance marcante na literatura juvenil portuguesa, Botânica das Lágrimas, livro de leitura aconselhada a professores e, sobretudo, alunos do ensino básico (3º ciclo) e secundário.
Integrado na corrente literária designada internacionalmente por young adult fiction, o romance de Pedro Foyos prossegue a linha pioneiramente desbravada, após o 25 de Abril de 1974, por Alice Vieira, Ilse Losa, Luísa Dacosta, Maria Alberta Menéres, António Torrado, Luísa Ducla Soares, José Jorge Letria, João Aguiar, António Mota, Ana Saldanha, Álvaro Magalhães, Maria do Rosário Pedreira e Maria Teresa Maya Gonzalez, Conceição Coelho, Isabel Alçada e Ana Maria Magalhães (e muitos, muitos outros) de actualização do romance juvenil em Portugal, que, indubitavelmente, pelo serviço público de leitura e pelo número de vendas, tem atravessado uma autêntica fase de ouro.
Face à literatura juvenil clássica (Swift, H.C. Anderson, Stevenson, Júlio Verne, E. Salgari, M. Twain, Enid Blyron, Ana de Castro Osório, Ricardo Alberty, Simões Mueller...), o conteúdo das histórias pertinentes à nova literatura juvenil portuguesa tem operado três substituições:
a) abandonou a componente moralista e/ou religiosa enformadora de muitos textos clássicos, não raro expressão de preconceitos sociais coevos, fortemente aculturadores da mente das crianças, substituindo-a por uma visão ecolágica, socialmente relativista e etnicamente multicultural das relações sociais, deixando entrar nos textos o novo Portugal democrático e europeu, tolerante e lusófono;
b) abandonou o tema da evidenciação ostensiva dos aleijões sociais ( o órfão, a criança enjeitada, analfabeta e miserável; os bairros de barracas...), substituindo-o pela vida diária de uma criança pequeno-burguesa dos subúrbios ou de classe média urbana (o público leitor privilegiado), tecnologicamente activa, cientificamente informada e individualmente carregada de iniciativa;
c) substitui as antigas histórias mitológicas célticas e greco-romanas, dotadas de um estendal de seres mágicos (sereias, silvos, nereidas, grifos, unicórnios, fadas, gigantes denignos, anões malignos, bruxas velhas de narigueta e verruga...), por um universo fantástico novo fundado na ciência e na tecnologia, unindo estas aos antigos processos mentais míticos e mágicos, como a saga de Harry Potter o prova abundantemente. Uma característica, no entanto, permanece idêntica entre a literatura juvenil clássica e a actual - no fim da aventura, o herói e o leitor são invariavelmente recompensados pelo regresso (mais ou menos triunfante) à ordem benigna interrompida pela irrupção do mal.
Em síntese, a literatura juvenil, clássica ou actual, alimenta-se de duas categorias - o realismo e o fantástico -, de cuja combinação nascem tanto a sua atractiva beleza quanto os seus limites. Neste sentido, literariamente falando, o século XX pode ser considerado o tempo de irrupção e independência da literatura juvenil portuguesa, para o qual muito contribuiu, sem dúvida, num outro registo, O Romance da Raposa (1929), de Aquilino Ribeiro, e as As Aventuras Maravilhosas de João Sem Medo (1963), de José Gomes Ferreira, livros absolutamente admiráveis..
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2.Botânica das Lágrimas
Botânica das Lágrimas não só obedece às quatro características acima indicadas, como, de certo modo, as resume, evidenciando-se, assim, como um belíssimo romance juvenil de aventura, fundado em dois pólos, o realismo e o fantástico, de obrigatória leitura, repetimos, pelos professores de ensino básico e secundário. Debruçado sobre um tema de grande actualidade nas escolas - o bullying ("tirania juvenil de forma continuada em ambientes escolar", p.374), Botânica das Lágrimas captou em perfeição o ambiente escolar próprio da prática do bullying (a extorsão de dinheoro aos mais novos, a destruição de bens pessoais, o "corredor da morte"...), a personalidade frágil mas ostensiva da prática de Rufino Cromado, de cérebro sobredotado, mas psicologicamente abjecto, de Simão-mão-de-betão, de Jeco Marado, a personalidade igualmente frágil mas corajosa dos "capitães" dos "Guerreiros Valentes", alunos mais novos que se sentem violentados e humilhados por esta prática, revoltando-se contra ela, nomeadamente Leopoldo, o "General Leo", e o seu ajudante "Bravo Toninho".
Do mesmo modo, o autor opera uma harmoniosa ligação ao exterior da escola, seja através da evidenciação de um leque de sentimentos próprio da puberdade (orgulho, revolta, vaidade, companheirismo, amor próprio, atracção sexual...), seja através da relação terna e angustiada entre Leopoldo e a sua mãe, hospitalizada (vergonha de chorar, necessidade forçada de se tornar adulto). Porém, a chave de ouro de Botânica das Lágrimas reside, indibitavlemente, por um lado, na opção pelo Jardim Botânico, em Lisboa, como cenário maior do romance (a visita de estudo "Passeio Plantástico"), e na utilização majestosa da figura do professor Brotero como guia (homenagem ao botânico Félix Avelar Brotero, mas também ao professor Fernando Catarino, aliás, citado no romance, como Rómulo de Carvalho/ António Gedeão e Viiriato Soromenho Marques), e, por outro, pela introdução do fantástico através do encontro de Leopoldo com Camões e do diálogo daquele com as árvores, diálogo diversificado consoante a natureza (isto é, a personalidade) de cada árvore. Esta é, de facto, a ideia chave do livro, que terá forçado o autor a uma demorada investigação científica, ilustrada pelos úteis anexos do romance. O mais forte momento dramático do romance reside, assim, na ajuda que o reino vegetal do Jardim Botânico presta aos "Guerreiros Valentes# no combate contra o bando do Ruffino Cromado e a prática do bullying, repetindo, em 2009, o episódio republicano da "Grande Coça de 1914".
Uma forte chamada de atenção para a atractiva combinação de aparatos estéticos: (1) a mancha gráfica do romance, dotada de um apurado jogo de letras e de separadores, (2) a divisão dos capítulos por minutos (entre as 9h,15 e o meio-dia), (3) o entreacto "trágico" ligado á história da implantação da República e (4) a intercalação no texto de quadros que se, por um lado, vão sintetizando a história das peripécias do General Leo, anunciam, por outro, "nós" bloqueadores da intriga, que o sesenrolar da história posteriormente desbloqueará.
Belíssimo romance para ser incluído no "contrato de leitura" do programa da disciplia de Português e partilhado em sala de aula entre professores e alunos.
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"Miguel Real In "JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias", Ano XXIX/Nº 1022, de 2 a 15 de Dezembro de 2009, pp 22 - 23 .
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28/08/09

"Marcello Caetano - O mito esvaziado"
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Marcello Caetano. O Homem que Perdeu a Fé, de Manuela Goucha Soares, "a biografia completa", segundo reza o anúncio da capa, possui o dom de reunir o melhor da reportagem jornalística com o melhor da investigação histórica. Dito de outro modo, reúne a narrativa da existência de um homem político com a descoberta e a inventariação de fontes históricas novas que iluminam de uma outra luz a vida do biografado.
No campo da biografia, todos os cuidados são poucos quanto ao escrúpulo e ao rigor da análise, porque não raro, em Portugal, sobretudo no aspecto político, se confunde biografia com hagiografia, como se constata pela recente publicação de biografias sobre políticos vivos ou sobre figuras carismáticas do Estado Novo. Descansemos, porém, neste caso.
Com efeito, o trabalho de Manuela Goucha Soares não só segue uma rigorosa metodologia jornalística (pesquisa, entrevistas, testemunhos escritos e orais, aplicação da regra do contraditório, deslocação aos lugares, neste caso ao Brasil), como aplica igualmente regras básicas da investigação histórica (a pesquisa em fontes originais e a descoberta de novos documentos, inclusive fotos), como, igualmente, propõe um fio condutor analítico-interpretativo na história colectiva.
Neste último caso, a autora conseguiu uma vincada harmonia entre a vida particular de Marcello Caetano e os acontecimentos públicos que lhe iam moldando o destino político, evidenciando um entrelaçamento muito forte entre a evolução do país e a evolução da vida do biografado. Polémico apenas o subtítulo (O Homem que perdeu a Fé) - a hipostasiação de um facto íntimo da vida do biografado que não explica nem a sua actividade política nem interfere nas suas intervenções públicas.
Que nos dá a ler a autora através da narração da vida de Marcello Caetano? A grande, grande conclusão que se extrai do encadeamento dos factos vivenciais apresentados reside na circunstância, até hoje não suficientemente relevada do ponto de vista histórico, que - primeiro - Marcello Caetano nunca superou o estatuto de um funcionário superior do Estado Novo, nem sempre passivo, mas sempre obediente ao chefe, isto é, a Oliveira Salazar; segundo, quando lhe faltou o chefe, não o soube substituir através de políticas próprias actualizadas, segundo um horizonte político próprio, desbloqueador do nó górdio em que se tornara Portugal, limitando-se a prolongar as do passado ("complexo" do funcionário superior). Quando sucedeu a vacatura de Primeiro-Ministro, Marcello Caetano evidenciou os seus genuínos limites políticos, transpondo para este alto cargo político e administrativo a estrutura mental e as categorias sociais próprias de um funcionário há 40 anos conivente e convivente com o regime, explorando os limites deste, mas evidenciando uma forte incapacidade para o renovar.
Com efeito, como funcionário superior, Caetano encontra-se ao lado de Salazar desde o primeiro minuto do regime do Estado Novo. Este convida-o para Subsecretário de Estado das Corporações e Previdência Social, Marcello Caetano recusa (encontra-se em plena preparação das provas de doutoramento) e Salazar nomeia-o para a Comissão Executiva da Comissão Central da União Nacional com a incumbência de preparar o primeiro congresso desta organização política. Mais concordante ou mais discordante, Marcello Caetano frequenta o pequeno círculo de conselheiros de Salazar durante 30 anos, até ao final da década de 50. As suas discordâncias, porém, nunca são levadas ao limite da ruptura, muito longe disso, revelando - conclui-se após a leitura do livro de Manuela Goucha Soares - "pequenos atritos tácticos e conjunturais mas grandes afinidades estratégicas ao nível da criação e organização corporativa do Estado Novo".
De facto, não foi a política que fez de Marcello Caetano um grande homem, mas os sesu estudos de Direito - este seria, porém, um caminho que daria um outro tipo de biografia (a "biografia intelectual"), que, estatuindo-se apenas como um plano da vida do biografado, Manuela Goucha Soares não seguiu, e muito bem, oferecendo-nos um retrato mais completo.
De facto, como classificar senão de funcionário superior incondicional do regime um jovem político (35 anos) nomeado para fundar e dirigir a Mocidade Portuguesa? Que outro senão um fiel e leal discípulo poderia escrever as cartas ao chefe dadas a conhecer pela autora (pp. 81 - 82)? Que outro senão um funcionário superior poderia ser nomeado Ministro das Colónias, em 1944, em plena II Guerra Mundial, seguindo de imediato em viagem para as colónias de modo a promover o cerrar de fileiras dos territórios ultramarinos em torno da política do Chefe? Que a outro senão a um indefectível exigiria ao chefe mais e melhor no campo social e corporativo contra a "burguesia capitalista" (p.97)? Que outro senão um lealíssimo colaborador poderia ser nomeado, em 1947, presidente da Comissão Executiva da União Nacional, alertando o chefe para a ineficácia da propaganda do Estado Novo, que não arregimentava as "massas populares" (p. 107)? Que outro senão um fidelíssimo poderia ser nomeado Presidente da Câmara Corporativa em 1949?
Face à fidelidade ao regime, haveria, de facto, dissonância crítica com o chefe? Como político, Marcello Caetano é fiel; como intelectual, crítico. Como a autora evidencia, é justamente a crise académica de 1962 que revela a diferença entre o político e o intelectual, levando a um afastamento.
Porém, após a subida ao lugar do Chefe, em 1968, o mito esvazia-se de todo. No essencial, Marcello Caetano, preso a uma educação integralista e incapaz de encontrar verdadeiras alternativas para o bloqueio em que Portugal vivia (Guerra Colonial; existência de uma classe média sem expressão no espaço público; isolamento internacional...), segue a política do seu antecessor, evidenciando a sua real face política - a de um funcionário superior do regime. Com efeito, lendo a biografia de Marcello Caetano por Manuela Goucha Soares rápido se conclui que, dentro de um século, a História não registará o seu nome, "saltando" de Oliveira Salazar directamente para a revolução do 25 de Abril de 1974, como a História não regista (senão por académicos e eruditos) o nome do ministro sucessor de João Franco, entre 1908 e 1910, "saltando" do nome deste para a implementação da I República, em 5 de Outubro de 1910.
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(Manuela Goucha Soares, Marcello Caetano. O Homem que perdeu a Fé, A Esfera dos Livros, 293pp, 30 euros)
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Miguel Real In "Jornal de Letras" 1014, Agosto, 2009.
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10/04/09

Foto tirada, em péssimas condições, no Casino do Estoril em 2007, quando
o Miguel Real recebeu o "Prémio Fernando Namora". Da esquerda para a
direita: Ana Paula Dias, Victor Oliveira Mateus, Miguel Real, Teresa Oliveira
e Henrique Levy.


In "J.L." de 21/4/2009:
As características literárias fundamentais presentes na narrativa Cisne de África, primeiro romance de Henrique Levy, autor já conhecido pelo romantismo sagrado dos seus dois livros de poesia (Mãos Navegadas e Intensidades), encontram-se expressas no lúcido prefácio de Inocência Mata, professora da Faculdade de Letras de Lisboa. Neste sentido, reenviamos o leitor para a caracterização geral deste romance feita por Inocência Mata, ensaiando aqui, no JL, uma abordagem diferente, ada sua integração na tradição literária portuguesa.
Com efeito, a leitura de o Cisne de África suscita-nos a suspeita de ser Henrique Levy, na continuidade de Mário Cláudio, Vasco Graça Moura, Bento da Cruz e, de certo modo, A.M.Pires Cabral, um perfeito novelista camiliano. De facto, aplicada ao tempo da Guerra do Ultramar (1961-1974) e aso espaço colonial Português (Moçambique, Lago Niassa e Lourenço Marques), Henrique Levy desenvolve uma narrativa que prolonga e actualiza - indubitavelmente-, em quatro pontos, a técnica narrativa de Camilo Castelo Branco.
Primeiro: uma história de amor trágica. Maria Helena, lisboeta, abandonada no altar pelo noivo espanhol, parte para Moçambique como enfermeira para refazer a sua vida: aqui, em Massicoonono, aldeia indígena do lago Niassa, fronteira com o Malawwi, assumindo uma vida dupla - de dia socorrendo os soldados portugueses; de noite, os combatentes da Frelimo-, apaixona-se por Raimundo Ndahala, comandante dos "terroristas".
Segundo: a narração do triângulo amoroso como figura de tragédia. Entre o amor de Maria Helena e Raimundo Ndhala instala-se o ciúme maligno de Eponine Kathipe, negra, ajudante de Maria Helena na enfermaria militar, espiã da Frelimo no aquartelamento português; Epoline encontra-se igualmente apaixonada por Raimundo Ndhala e, constatando a união entre os dois amantes, desencadeia uma intriga maligna (os militares e a PIDE já saberiam da ajuda de Maria Helena aos combatentes da Frelimo e preparar-se-iam para a prender) que os separa definitivamente (Maria Helena é forçada a fugir para Lourenço Marques, presumindo receber ordens directas de Raimundo).
Terceiro: envolvimento social da narrativa amorosa. Tal como Camilo, Henrique Levy envolve o coração amoroso na história de um conjunto de relações sociais que prestam consistência histórica ao drama romântrico do amor ( C. C. Branco: consequências da guerra civil entre Liberais e Absolutistas; fidelidades de província a D. Miguel ou a D. Pedro IV; intrigas e conflitos entre liberais, entre tradicionalismo português e modernismo industrial...; H. Levy: Guerra do Ultramar, relações com as mulheres da aldeia de Massiconono, especialmente Juliana, mulher-sábia, guardiã das tradições; relações com os agentes da PIDE, com o dr. Rodrigo Noronha, médico militar; vida em Lourenço Marques ao longo da década de 1960...); do mesmo modo, o desenlace trágico é anunciado pelo absoluto ódio (guerra) entre os grupos sociais a que pertence
de raiz cada um dos amantes: brancos contra negros, portugueses contra moçambicanos.
Quarto: envolvimento da natureza na narrativa amorosa através de uma espécie de compaixão mútua. A permanente descrição feita pelo narrador da natirexa luxuriante moçambicana é conducente à exaltação dos sentimentos dos apaixonados numa lógica de mútuo
testemunho e interpenetração.
Narrativa dramática elevada a tragédia existencial, o Cisne de África explora de modo exemplar
as relações românticas, fastas e nefastas, entre os temas do amor, da morte e da separação entre
o desejo e o objecto do desejo, evidenciando, por múltiplos sinais anunciadores, o fecho trágico inelutável (Raimundo Ndhala, ferido em combate, morre suspirando por Maria Helena, que,
regressada a Lisboa, para sempre se isola, guardando as suas desgostosas recordações num diário).
Do mesmo modo, a exemplo das novelas de Camilo, o ritmo narrativo veloz de o Cisne de África,
diverso do do romance, encontra-se repleto de efeitos suspensivos, todos apontando para um
desenlace trágico. O Cisne de África celebra camilianamente, ao modo romântico, ahipostasiação da paixão, desenvolvendo uma retórica sentimental adversa à racionalidade das instituiçoes sociais, nomeadamente, separadora dos amantes. Finalmente, o Cisne de África estrutura-se em
pequenas unidades dramáticas soltas, relativamente independentes, ao modo do folhetim jornalístico e da novela camiliana (15 capítulos para 143 páginas), cujo movimento de passagem
de uma para outra vai compondo a unidade harmoniosa do texto.
Eis o retrato literário do primeiro romance (novela?) de Hanrique Levy, um autor camiliano na
forma e nos valores estéticos, aplicados ao ambiente social da Guerra Colonial, escritor que
escreve mais com a sensibilidade do que com a razão, numa espécie de vitalismo instintivo que
não se encontra longe, nas descrições relativas à natureza, de um paganismo panteísta de matriz
cristã.

Miguel Real "Henrique Levy- um romance camiliano" In "J.L." de 8-21/4/2009, p 24.
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