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20/09/11


 " Três verdades contemporâneas "


Creio no invisível
Creio na levitação das bruxas
Creio em vampiros
Porque os há.

  Conceição Lima in " O País de Akendenguê ", Editorial Caminho, Alfragide, 2011, p 37.
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     "Inadiável empresa "


Jazem à beira do caminho, os destroços.
Fugitiva é a inocência
Talvez haja porém tempo
Para redimir a palavra.
Sentir é também saber neutro
Este sol
Nas contorcidas feições da manhã.

Aniquilarão todos os papiros?
Exilarão a última estátua?
Deceparão o sentido da mão?

Na derme da lava
Sob a inclemência da lavra
Vibra a praia
O projecto dos dias puros
Inadiável empresa.

   Conceição Lima in " O País de Akendenguê ", Editorial Caminho, Alfragide, 2011, p 68.
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  " Circum-navegação "


Os barcos regressam
carregados de cidades e distância.

Adormecem os grilos.
Uma criança escuta a concavidade de um búzio.

Talvez seja o momento de outra viagem
Na proa, decerto, a decisão da viragem.

Aqui se engendram alquimias
Lentos hinos bordados em lacerações
Sossegaram os mortos
Há grutas e pássaros de fogo
Rebentos de incómodos recados

O difícil ofício de lavrar a paciência.

Acontece a arte da viagem
Tanta aprendizagem de leme e remendo...

É quando o olho imita o exemplo da ilha
E todos os mares explodem na varanda.

 Conceição Lima in " O País de Akendenguê ", Editorial Caminho, Alfragide, 2011, pp 106 - 107.
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19/07/09


          "Manifesto Imaginado de um Serviçal"
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Chão inconquistado, chama-me teu que sobre minha fronte se
esvai a lua esburacada na sanzala. Não mais regressarei ao Sul.
Morador interdito, ficarei nas tuas entranhas. Aqui onde tudo
dei e me perdi. Morro sem respirar o hálito de uma outra cidade
que adubei.
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Irmãos:
Deitai-me amanhã no terreiro à hora do sol nascente: quero
olhar de frente as plantações. Quero contemplar, morto e inteiro, meu
legado involuntário de africano em África desterrado.
Clamo o pó que reclama a exaustão serena do meu corpo.
Não mo podeis usurpar, ngwêtas, com o ferro da vossa força.
Não mo negueis, ó híbridos forros, com vosso frio desdém de
séculos. Este barro é meu, espinho a espinho penetrou o osso dos
meus passos como um sopro cruel e palpitante. Até ao fim onde agora
começo porque a morte é o estuário de onde desertam os barcos todos
que cavaram meu destino.
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Irmãos:
Pelo mar viemos com febre. De longe viemos com sede.
Chegámos de muito longe sem casa.
Dai-me a beber agora a amarga infusão do caule do aloé, quero
esgotar o cálice do nosso calvário.
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Dai-me uma coreografia de labaredas e vertigens que a nossa
saga é uma constelação de astros absurdos.
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Dai-me amanhã em oferenda todos os sons que criei e os sons
que não criei mas aprendi
a puíta, o ndjambi, o bulauê
a dêxa também e o socopé
Trazei-me os silêncios todos que percorri
Mostrai-me os caminhos que não trilhei mas construí
Celebrai-me anónimo na praça que não verei mas antevi
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Ilhas! Clamai-me vosso que na morte
não há desterro e eu morro. Coroai-me hoje
de raízes de sândalo e ndombó
Sou filho da terra.
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Conceição Lima In " O Útero da Casa", Ed. Caminho, Lisboa, 2004, pp 35-37.
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17/07/09


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            "A Casa"
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Aqui projectei a minha casa:
alta, perpétua, de pedra e claridade.
O basalto negro, poroso
viria da Mesquita.
Do Riboque o barro vermelho
a cor dos ibiscos
para o telhado.
Enorme era a janela e de vidro
que a sala exigia um certo ar de praça.
O quintal era plano, redondo
sem trancas nos caminhos.
Sobre os escombros da cidade morta
projectei a minha casa
recortada contra o mar.
Aqui.
Sonho ainda o pilar -
uma rectidão de torre, de altar.
Ouço murmúrios de barcos
na varanda azul.
E reinvento em cada rosto fio
a fio
as linhas inacabadas do projecto.
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Conceição Lima In "O Útero da Casa", Ed. Caminho, Lisboa, 2004, pp 19-20.
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