30/12/12



       "  Egeo I  "

Hay para Ulises un sonido que contiene
todo lo ya visto y lo por venir;
hay un desgarramiento que puede ser
el primer gemido placentero
de todas las vírgenes del mundo,
un alcohol que es el mismo zumo
que bebiste en algún sitio
en algún sueño

la sirena contempla tu confusión
y no puede ayudarte

no hay casa
ni chimenea
ni ancianos
que te reconozcan por la voz
(como en el tango)

mientras Penélope goza con amigos y enemigos,
oh! estúpido Ulises,
babeas literatura por estas aguas fastuosas
para el prestigio de la muerte
y el olvido.

   Futoransky, Luisa. Partir, digo. Madrid: Libros del Aire, 2010, p 25.
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29/12/12



         " Ulysses "


E ele e os outros me vêem.
Quem escolheu este rosto para mim?

Empate outra vez. Ele teme o pontiagudo
estilete da minha arte tanto quanto
eu temo o dele.

Segredos cansados de sua tirania
tiranos que desejam ser destronados

Segredos, silenciosos, de pedra,
sentados nos palácios escuros
de nossos dois corações:
segredos cansados de sua tirania:
tiranos que desejam ser destronados.

o mesmo quarto e a mesma hora

toca um tango
uma formiga na pele
da barriga,
rápida e ruiva,

Uma sentinela: ilha de terrível sede.
Conchas humanas.

Estas areias pesadas são linguagem.

Qual a palavra que
todos os homens sabem?

   César, Ana Cristina. Um Beijo que Tivesse um Blue: Antologia Poética. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2005, p 85.
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28/12/12


Opto pelo olhar estetizante, com epígrafe de mulher moderna
desconhecida. (" Não estou conseguindo explicar minha ternura,
minha ternura, entende?") Não sou rato de biblioteca, não
entendo quase aquele museu da praça, não tenho embalo de
produção, não nasci para cigana, e também tenho o chamado
olho com pecados. Nem aqui? Recito WW pra você:
"Amor, isto não é um livro, sou eu, sou eu que você segura e
sou eu que te seguro (é de noite? estivemos juntos e sozinhos?),
caio das páginas nos teus braços, teus dedos me entorpecem,
teu hálito, teu pulso, mergulho dos pés à cabeça, delícia, e
chega -
Chega de saudade, segredo, impromptu, chega de presente
deslizando, chega de passado em videoteipe impossivelmente
veloz, repeat, repeat. Toma este beijo só para você e não me
esquece mais. Trabalhei o dia inteiro e agora me retiro, agora
repouso minhas cartas e traduções de muitas origens, me
espera uma esfera mais real que a sonhada, mais direta, dardos
e raios à minha volta, Adeus!
Lembra minhas palavras uma a uma. Eu poderei voltar. Te amo,
e parto, eu incorpóreo, triunfante, morto".


  César, Ana Cristina. Um Beijo que Tivesse um Blue: Antologia Poética. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2005, p 77.
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25/12/12

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                                 “ Nem sempre a cidade é triste “

 

 Nem sempre a cidade nos surge na sua multiplicidade de formas. Dias há em que parece apostada em oferecer-nos a sua face mais feia, a sua face mais horrivelmente cruel. Olhem, nem vos sei explicar! A única coisa que consigo é dizer-vos que, naquela manhã, não havia ponta a que me pudesse agarrar. Desci a rua de roldão e, mal cheguei ao Largo do Chiado, apenas queria uma mesa vaga na esplanada. O regateio com o alfarrabista deixara-me esgotada. Raio do homem! Anda uma pessoa dez anos à procura de um livro raro e depois de o encontrar ainda tem de travar uma batalha campal… Desculpa, interrompeu-me o Gonçalo, o homem teve razão, ele até te ofereceu o livro! Ah, se visses a cara de sonso dele, no final: ó professora, nós temos estado a discutir o preço da obra, não a venda, à senhora não o vendo, ofereço-o! Gonçalo ria. Agarrou-me pelos ombros: tenho uma mãe que detesta perder torneios. Larga-me! Tomás olhava-nos com aquele seu olhar liquefeito, olhar de cão abandonado, de quem traz em si todos os rasgões do mundo…

( Hum, já me esquecia de falar no Tomás! Veio aqui para casa quando o Gonçalo andou com a irmã, depois tem se deixado ficar: paga as despesas como um hóspede e partilha das vidas como um íntimo…)

Depois, ainda afogueada, sentei-me a ver a cidade a desdobrar o seu espaço, as suas personagens. Ironia cínica, rosnou Gonçalo. Não sei o que era, mas dava-me prazer. Primeiro foi um casal jovem: mochilas enodoadas, alpercatas cambadas, cabelos desgrenhados, enfim, uma tentativa de imitação das classes baixas, mas logo traída pelo olhar altaneiro, pelos queixos levantados. Bem, a minha senhora mãe hoje está cheia de azedume, disse o Gonçalo, vou-me deitar.

(Tomás não parava de me olhar. Não que o assunto parecesse interessar-lhe, todavia, esfíngico, tentava captar todos os modos do dizer.)

   Espera. Falta ainda o episódio do bardo. Do bardo?! Sim, é que no murete do metro havia um friso de tal modo diversificado… fixei-me num rapaz que durante mais de meia hora dedilhava uma viola e mirava um caderno sebento, pois ali esteve ele, aquele tempo todo, numa infindável lengalenga e sem virar a página. Era um poema curto mas profundo, voltou Gonçalo a sentar-se. Olhem, o que é um facto é que o rapaz sabia um ror de línguas e veio depois percorrer a esplanada, de mão estendida. A mim pediu-me em inglês, não lhe respondi, depois insistiu em italiano, como eu continuasse a não lhe responder, resolveu ficar especado na minha frente, a medir forças com o olhar, então achei por bem dizer-lhe em latim que não o entendia. Gonçalo engasgou-se com a cerveja: não é possível, tiveste coragem de te pores a falar em latim com ele?! O rosto de Tomás iluminou-se, os seus olhos eram agora dois sóis a brilhar por detrás das lentes arredondadas, a sua boca parecia querer esboçar dois traços, que, a medo, avançavam a tactear esse silêncio que tão bem o caracterizava. Não sejas precipitado, recomecei eu, ele até acabou por se sentar à minha mesa e… Gonçalo voltou a levantar-se: eis o clímax; a minha mãe e o cavaleiro andante!, agora é que me vou mesmo deitar. És um parvo, admoestei-o eu, para vocês homens estas coisas acabam sempre da mesma maneira, são mesmo primários, ainda pensei que fosses um bocado diferente, mas afinal: gabarolices e ruminações do não feito é o vosso lema, além disso, o rapaz tinha metade da minha idade.

( Hoje sei – porque ele me viria a dizer – que foi esta a passagem que fez Tomás decidir-se pela sua partida no dia seguinte.)

   E depois?! Depois nada, estás a imaginar-me ao lado de alguém com metade da minha idade? Vocês analisam sempre tudo do lado do homem, dando uma imagem repulsiva da mulher mais velha: a flacidez, a menor resistência ao esforço, etc., mas alguma vez nos perguntaram algo sobre o assunto? Se nos interessava tocar uma pele cheirando a talco e cueiros? És horrível!, resmungou Gonçalo. Horrível não, estas coisas têm sempre duas versões: se vocês achincalham as estrias por que não haveremos nós de fugir do acne? Abandonaram os dois a sala, precipitadamente. Estava eu ajeitando as latas vazias da cerveja, os cinzeiros sujos, quando Gonçalo regressou: foste de uma enorme crueldade. Eu?! Sim tu! Sempre tão centrada nos livros e afinal não vês o que está debaixo do teu nariz, por que pensas que o Tomás anda aqui às voltas em casa? Agarrei-me a uma das estantes, siderada. O quê, não te achas uma mulher interessante que possa atrair alguém também especial como o Tomás?! Eu não sabia o que pensar. Tudo se abatera sobre mim de um jacto. Acho bem que te reabilites, rematou Gonçalo, furioso, ele está a arranjar as coisas para se ir embora amanhã. Tantas teorias e afinal… Por favor, peço-te, deixa-me sozinha!

   Uma hora depois bati-lhe à porta do quarto. A luz estava ainda acesa, passava das duas da manhã: mas… está a arrumar as malas?, avancei eu, falsamente ingénua, aconteceu alguma coisa? Tomás, hirto, com um pólo na mão: acho que devo ir, respondeu com voz sumida, quase um sussurro. Mas não pode ir agora, Tomás! Não posso?! Não… eu vinha precisamente convidá-lo para vir uma semana para a casa de Aveiro; o Gonçalo vai começar com as frequências e nós íamos para lá. Silêncio. Tomás a compreender o que ambos já tínhamos compreendido. Acha que devo ir?, perguntou triste, titubeante. Tem de vir! E agarrei-lhe o braço. Diga que sim, insisti. E os seus olhos foram de novo dois sóis por detrás das lentes, as suas palavras – sempre tão comedidas – foram ainda mais serenas: partimos a que horas? E sorrimos, cúmplices.
 
 Mateus, Victor Oliveira. Nem sempre a cidade é triste In "Letras com vida: Literatura, Cultura e Arte" Nº 4, 2º semestre 2011, Centro de Litªs. e Cultªs. Lusófonas e Europeias da Fac. de Letras da Univ. de Lisboa, pp 141 - 142.
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24/12/12

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                      "  O  Joelho  de  Colbert  "


     Não devia ter combinado aqui. Neste espaço, onde as dimensões do tempo se misturam e a beleza irrompe como corola abruptamente fendida pelos socalcos de uma cidade que desce até ao rio. Não, não devia ter combinado aqui, neste local tão firmado nos mais ousados afetos, sempre à mistura com uma memória inapagável, voraz, e que em tortura me corrói os dias. Talvez pudesse ter optado por um outro lugar. Quem sabe, por uma das esplanadas lá de baixo, sempre repletas de veraneantes, onde o cheiro do peixe se nos entranha no corpo, ou por uma das vielas dos bairros antigos de pescadores, muitos vivendo ainda nas mais precárias condições.
     Mas aqui, neste Forte de S. Filipe, consigo uma lucidez bem difícil de encontrar no turbilhão da cidade. A proximidade dos objetos, a falta de perspetiva, turva-nos sempre o olhar e a correta avaliação do que nos cerca. Hoje, deste terraço, a foz do Sado aparece-me com o encanto que teve naquele primeiro dia. Até os golfinhos, fingindo cumprir um qualquer aprazado ritual, saltam divididos entre o azul das águas e a luminescência dos reflexos por elas devolvidos. Dois overcrafts fazem a ponte com a península de Tróia, em frente. Por baixo do sítio onde me encontro, alguns caiaques entregam-se ao fascínio de juvenis acrobacias. Duas traineiras entram na barra acompanhadas pelo grasnar ávido das gaivotas. Ouve-se uma sirene.
     Acabo sempre por regressar a este local. Trago um livro, uma revista, ou o portátil, e por aqui me deixo ficar, trabalhando, reflectindo, ou, tão-só como hoje, deixando-me aconchegar por tudo o que me envolve, exactamente como no primeiro dia, quando observava a enseada da outra margem, vendo uns minúsculos pontos negros à beira da água - talvez trabalhadores na apanha de bivalves ou turistas dirigindo-se para as antigas ruínas romanas. Neste abandono de mim, sou surpreendido por uma voz infantil que me pergunta o que estou a fazer. Olhei para o lado e vi um miúdo com cerca de três anos, bermudas verdes às ramagens, boné com pala virada para trás. O que estou aqui a fazer? Boa pergunta. Não há como as crianças para, na sua simplicidade, nos alertarem para a nossa condição de viventes tantas vezes à deriva! O meu silêncio forçou-o a insistir. A voz de um homem repreeendeu-o, perguntando-me, depois, se ele me estava a incomodar. Não lhe respondi. Levantei  a mão, encostando-a ao rosto do miúdo, que, acalmado, semicerrou os olhos. O homem, surpreendido, disse não ser habitual o filho serenar com tanta facilidade. Uma música roufenha vinha do interior da pousada. Ouviu-se de novo o som da sirene. Uma das traineiras começou obliquando na direção do porto, onde outrora laboraram as fábricas de conserva. O homem sentou-se à minha mesa e apresentou-se:
- Fernando Colbert. - Estendeu-me a mão. Sorri.
- Como o Ministro das Finanças do Rei-Sol? - Perguntei. Ao que ele respondeu não ser nem rei, nem sol, nem nada. E começou confiadamente a desfiar as suas recentes vicissitudes: o divórcio, o poder paternal partilhado, a solidão...
     O empregado trouxe o café e, num gesto inesperado, o miúdo tocou-lhe no braço fazendo derramar o líquido pela mesa. Todas as minhas folhas A4 completamente perdidas e uma gota a cair exactamente no joelho de Colbert, que, levantando-se de um jacto, conseguiu evitar desastre maior.
     A este primeiro dia outros se seguiram: a troca de experiências, a visão do mundo, os projetos, ora expostos com fulgor, ora desvelados com alguma suspeita.
     A aproximação entre os seres surge umas vezes de aspetos convergentes, mas outras por tácitas cumplicidades, que no quotidiano se vão inscrevendo aos poucos e sem planos preestabelecidos.
     Disso dá testemunho este novo encontro:
- Lembra-se da nódoa no joelho? - Perguntei com ironia. Colbert olhou-me significativamente e sorriu.
- Em mim não há lugar para a nódoa. - Respondeu.
     A comunhão selou-se.
     Vendo bem, fez sentido ter combinado aqui. Local do primeiro dia. E o rio cintilou, dotado de alma, como se nessa transfiguração quisesse revelar tudo aquilo que os homens insistiam em ocultar.
 
  Mateus, Victor Oliveira. O Joelho de Colbert In " Um Rio de Contos: Antologia Luso-Brasileira ". Dafundo: Editorial Tágide, 2009, pp 236 - 237 ( Organização de Celina Veiga de Oliveira e de Victor Oliveira Mateus).
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13/12/12



  " Arte-manhas de um gasto gato "


Não sei desenhar gato.
Não sei escrever o gato.
Não sei gatografia
      nem a linguagem felina das suas artimanhas
Nem as artimanhas felinas da sua não linguagem
Nem o que o dito gato pensa do hipopótamo ( não o de Eliot)
Eliot e os gatos de Eliot (" Practical Cats" )
Os que não sei
e nunca escreverei na tua cama.
O hipopótamo e suas hipopotas ameaçam gato (que não é hipogato)
Antes hiponímico.
Coisa com peso e forma do peso
e o nome do gato?
J. Alfred Prufrock? J. Pinto Fernandes?
o nome do gato é nome de estação de trem
o inverno dentro dos bares
a necessidade quente de tê-lo
onde vamos diariamente fingindo nomear
eu - o gato - e a grafia de minhas garras:
toma: lê o que escrevo em teu rosto
lê o que rasgo - e tomo - de teu rosto
a parte que em ti é minha - é gato
leio onde te tenho gato
e a gatografia que nunca sei
aprendi na marca no meu rosto
aprendi nas garras que tomei
e me tornei parte e tua - gata - a
saltar sobre montanhas como um gato
e deixar arco-irisado esse meu salto
saltar nem ao menos sabendo que desenho
e escrita esperam gato
saltar felinamente sobre o nome de gato
ameaçado
ameaçado o nome de G A T O
ameaçado o nome de G A S T O
ameaçado de morrer na gastura de meu nome
repito e me auto-ameaço:
não sei desenhar gato
não sei escrever gato
não sei gatografia
                    nem...

  César, Ana Cristina. Um Beijo que Tivesse um Blue: Antologia Poética. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2005, pp 35 - 36.
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12/12/12

Acerca do último livro de Nuno Dempster.


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  O livro de contos recém-publicado da autoria de Nuno Dempster apresenta-se-nos como um conjunto de narrativas todas elas integradas no cânone literário do realismo e aqui surge-nos uma característica deste livro que me parece interessante referir: o autor, sem recorrer a técnica alguma de encaixe, e sem se afastar desse cunho do concreto que pretende para os seus contos, acena-nos, por vezes, com características e técnicas daquilo, que, para alguns teóricos, não chega a formar géneros literários específicos, assim, encontramos tonalidades da escrita gótica em “A chaise longue”; da ficção policial – sobretudo o mistério, a estranheza e a actuação do protagonista tão avessa à razão natural - em “Jack”; da narrativa histórica em “Vénus”. Contudo, esta deriva do autor, aparentemente aleatória, não é utilizada para dar foros de cidadania a quaisquer dos movimentos referidos, mas apenas para enfatizar uma realidade que se pretende actual e concreta. Mas Nuno Dempster não se limita a circundar as suas opções estilísticas com acenos de uma ou outra escola, de um outro movimento, ele considera o realismo, em algumas das suas várias facetas, em cada um dos seus contos, no entanto, convenhamos, essa mesma consideração não é exclusiva mas tão-só predominante, pois na trama narrativa todas se encontram interligadas. Por conseguinte, podemos encontrar um realismo de cariz sociocultural em “O papel de prata”, de tipo subjectivo em “Meia dúzia de sardinhas” e até mesmo sociopolítico em “ A bilha de água”.

  O facto de Nuno Dempster recorrer, nos seus contos, a um narrador não-participante (com excepção de “Uma aula de inglês”), a personagens redondas e a uma quase constante coincidência do tempo cronológico com o tempo do discurso, não só dota a sequencialidade narrativa de uma extrema limpidez, mas também funciona de forma eficaz como estratégia de captação do leitor para a estória de que ele passará também a fazer parte. Ainda relativamente às personagens parece-me importante ressalvar a sua bem conseguida caracterização psicológica, social e cultural, aliás, nem sempre feita de modo directo, e urge ainda acentuar o modo criterioso como todas elas são colocadas, pelo narrador, no conjunto dos acontecimentos – tomemos como exemplo o primeiro conto, “O papel de prata”: a estória decorre em torno do protagonista (Horácio), cuja caracterização – complexa – psicológica e social nos vai sendo dada no decorrer da acção, todavia, apesar do desenrolar desta ser linear (com excepção de “O reflexo” as analepses e as prolepses são banidas da narrativa dempsteriana!) e do espaço ser quase sempre fechado e privado, a acção desenvolve-se pela sedução de um ritmo ao qual o leitor não consegue ficar indiferente, e contribuindo também para esse prendimento o exímio manejar de outras categorias da narrativa, neste caso concreto as personagens secundárias ( Marta, a tia e Hermínio ) e os figurantes (os pais de Horácio). Tal minúcia narrativa pode ser detectada em qualquer um dos outros contos desta colectânea, veja-se, por exemplo, “Swing” em que bastaria a supressão de um mero figurante (neste caso Márcia Medeiros, a professora de matemática) para que todo o conto se esboroasse ou adquirisse um trajecto completamente distinto.

  O livro “O papel de prata, o reflexo e outros contos pelo meio” da autoria de Nuno Dempster e recentemente publicado pela “Companhia das Ilhas” foi, portanto, e pelos motivos apontados, uma obra que li com muito interesse e agrado.

 

 

                                                                                           VICTOR  OLIVEIRA  MATEUS

11/12/12

Galina Vishnevskaya ( 25/10/1926 - 11/12/2012 )


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40
 
 
O meu coração
freme no meu peito e no peito
da magnólia
 
 
41
 
 
Pesa-me nos ombros
o pó dos caminhos
que não percorri
 
 
42
 
Frente ao mar
o meu coração adolescente
pede-me que salte
 
 
43
 
Silêncio. Ouçam
a vida - água correndo
cada vez mais triste
 
 
44
 
Um grão de carne
fenecendo - irmão das rãs
e dos planetas
 
 
      Brito, Casimiro de. A Boca na Fonte. Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim Editora, 2012, p 16.
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10/12/12

 
 
3
 
 
Olhas a montanha.
Em paz. O grande combate
parece imóvel
 
 
4
 
 
Em tudo há velhice
e nascimento - um pé repousa,
outro caminha
 
 
 
5
 
 
Vejo o que já vi
antes - um corpo ondulante
que vem de longe
 
 
 
6
 
 
Na prosa do dia
a rosa alumia. Que prosa
se tudo é rosa?
 
 
 
          Brito, Casimiro de. A Boca na Fonte. Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim Editora, 2012, p 8.
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08/12/12



Sobre os écrans, o poeta há-de verter poemas.
De tudo sabe um pouco,
havendo, ainda, tudo o que adivinha
em seus fulgores de génio e de duende

à deriva no mundo. As mãos levanta
acima da cabeça, com os pés soterrados
pela greda, enredado em escórias,
que, aonde quer que vá, sempre o sitiam.

Com tinta permanente e com ácidos
não pode mais fazer que exorcismar
o que em si há de mais pungente

na rota dos algares e das serpentes.
De pé, espera, a atravessar a noite
que perscruta.

  Baptista, Amadeu. Atlas das Circunstâncias. Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim Editora, 2012, p 30.
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07/12/12



É anfíbia, a adolescência do poeta.
Distinguem-se-lhe no tórax barbatanas
dorsais e pulsam-lhe, na garganta, pequenas
brânquias, que permitem que toque o fundo

do mar, das coisas e da terra.
O poeta é portador de uma beleza
oculta onde tudo se encontra, uma banca
de trabalho, um alguidar, uma reverberação

líquida, cor de fogo, a sitiá-lo dentro
da sua própria vida, a sua descendência,
a chuva que não cessa de cair

sobre as cabeças, diluviana, escaldante,
escura, como uma pedra
didáctica.


   Baptista, Amadeu. Atlas das Circunstâncias. Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim Editora, 2012, p 18.
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