.
( Como desde rapazinho só convivia com os meninos
finos da Foz, de vez em quando metia-me no eléctrico
e ia visitar o sítio onde nasci de pais pobres e límpidos.)
Na rua das Musas
onde nasci já aos gritos
(que nunca acordaram ninguém);
foi na rua das Musas
onde ainda hoje as lágrimas fabricam lama
nas lajes de granito
que jurei por ti, mãe,
tornar o sol menos imundo
com este grito
"Poeta,
arranca a Chama
( isto é: o Frio)
que existe no fel
das raivas sujas
- e com ele
incendeia
o mundo."
Ferreira, José Gomes. Obras de José Gomes Ferreira, Poeta Militante - 3º Vol. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1998, pp 202 - 203.
.
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23/04/12
"enquanto se colam nos lábios dos ditadores/ mecanismos com espelhos para darem a ilusão do diálogo,"
( Vejo passar gente monstruosa através
da montra do café. Pesadelo.)
já nasceram como os vejo de mordaças de pano cru,
açames de gelo,
simulacro de dentes com fome a sorrir (chora-se melhor assim),
silêncio por fora das palavras
de que ninguém já sabe o sentido
sem desterro.
Outros entraram nas escolas
de bocas ainda livres
- mas logo corriam os senhores professores com agulhas enfiadas de treva
a coserem-lhes os lábios
com teias de aranha.
E ai de quem não desaprendesse
que os números têm a cor misteriosa dos dedos
- e fechem por favor as crianças nos quartos às escuras,
ensinem-nas a sonhar
a instrução primária dos cárceres
(contanto que não sonhem alto).
Os mais velhos,
esses operam-se,
substituem-se-lhes as cordas vocais por guitarras de açúcar ardente,
enquanto se colam nos lábios dos ditadores
mecanismos com espelhos para darem a ilusão do diálogo,
e pequenos aparelhos transparentes de repetir ecos.
Outras vezes encosto-me
à porta do café
à espera do Carlos ou do Fafe
contente de haver raparigas luminosas nos intervalos,
todas tão ágeis nas suas mordaças de cetim implácido,
tules de voos mentais,
filtros de véus de mel
a cheirarem tão bem a palavras lúcidas
atravessadas de risos e saliva.
De vez em quando
apetece-me quebrar os vidros do café
e perguntar aos monstros
(por gestos, visto as próprias palavras já serem mordaças):
como conseguem comer
com dentes de algodão em rama?
E onde aprenderam a sorrir assim
com as gengivas forradas de sedas de punhal
e arame farpado nos bocejos?
- como se as mordaças tornassem o mundo mais azul
e as línguas beijassem melhor
fechadas em redomas de cristal.
Agora só falta amordaçar o resto,
o vento, os pássaros, as fontes, os vulcões, o fogo,
as maçãs, os oboés, os tufões,
a desordem do sonho.
A desordem, sim. Porque a desordem já começou - informam os jornais
com alarde de tinta inquieta.
A desordem que vai destruir os tijolos do sono
nesta cidade
edificada com perfumes mortos
e materiais de luz
por arquitectos que usam principalmente a argamassa do sol
traçada de céu vivo
na construção de cofres subterrâneos dos Bancos Loucos
onde os poetas guardam o ouro das nuvens dos poentes
para as reformas na velhice.
Sim. Garantem-me e eu confirmo,
graças aos sinais secretos que aprendi para furar as mordaças
( ai dos poetas que não rasgam mordaças nem pedras!)
que já começou a desordem.
Mas uma desordem tão compassada e grave
que, pela primeira vez, não me apetece gritar
com os outros,
os que só agoram reparam nas mordaças
e deixaram de ouvir
os violinos de viverem mortos,
como quem pede desculpa de haver relâmpagos e trovões
- a falsa linguagem dos gigantes das alturas
que faz tremer o mundo
quando se torna humana.
Mas não assim, nas bocas cerradas à força com adesivos
destes pobres anões montados em sombras de burros espectrais
que apodrecem amordaçadamente dos cascos às crinas
e mesmo quando zurram não arreganham os dentes
para acordar o marasmo do pântano
onde os combates continuam e continuarão até à última caveira do Sol,
- só com furor de ecos
em busca de lâminas
nas manhãs desistentes.
Ferreira, José Gomes. Obras de José Gomes Ferreira - Poeta Militante, 3º Vol. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1998, pp 52 - 55.
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da montra do café. Pesadelo.)
Alguns destes monstros
já nasceram como os vejo de mordaças de pano cru,
açames de gelo,
simulacro de dentes com fome a sorrir (chora-se melhor assim),
silêncio por fora das palavras
de que ninguém já sabe o sentido
sem desterro.
Outros entraram nas escolas
de bocas ainda livres
- mas logo corriam os senhores professores com agulhas enfiadas de treva
a coserem-lhes os lábios
com teias de aranha.
E ai de quem não desaprendesse
que os números têm a cor misteriosa dos dedos
- e fechem por favor as crianças nos quartos às escuras,
ensinem-nas a sonhar
a instrução primária dos cárceres
(contanto que não sonhem alto).
Os mais velhos,
esses operam-se,
substituem-se-lhes as cordas vocais por guitarras de açúcar ardente,
enquanto se colam nos lábios dos ditadores
mecanismos com espelhos para darem a ilusão do diálogo,
e pequenos aparelhos transparentes de repetir ecos.
Outras vezes encosto-me
à porta do café
à espera do Carlos ou do Fafe
contente de haver raparigas luminosas nos intervalos,
todas tão ágeis nas suas mordaças de cetim implácido,
tules de voos mentais,
filtros de véus de mel
a cheirarem tão bem a palavras lúcidas
atravessadas de risos e saliva.
De vez em quando
apetece-me quebrar os vidros do café
e perguntar aos monstros
(por gestos, visto as próprias palavras já serem mordaças):
como conseguem comer
com dentes de algodão em rama?
E onde aprenderam a sorrir assim
com as gengivas forradas de sedas de punhal
e arame farpado nos bocejos?
- como se as mordaças tornassem o mundo mais azul
e as línguas beijassem melhor
fechadas em redomas de cristal.
Agora só falta amordaçar o resto,
o vento, os pássaros, as fontes, os vulcões, o fogo,
as maçãs, os oboés, os tufões,
a desordem do sonho.
A desordem, sim. Porque a desordem já começou - informam os jornais
com alarde de tinta inquieta.
A desordem que vai destruir os tijolos do sono
nesta cidade
edificada com perfumes mortos
e materiais de luz
por arquitectos que usam principalmente a argamassa do sol
traçada de céu vivo
na construção de cofres subterrâneos dos Bancos Loucos
onde os poetas guardam o ouro das nuvens dos poentes
para as reformas na velhice.
Sim. Garantem-me e eu confirmo,
graças aos sinais secretos que aprendi para furar as mordaças
( ai dos poetas que não rasgam mordaças nem pedras!)
que já começou a desordem.
Mas uma desordem tão compassada e grave
que, pela primeira vez, não me apetece gritar
com os outros,
os que só agoram reparam nas mordaças
e deixaram de ouvir
os violinos de viverem mortos,
como quem pede desculpa de haver relâmpagos e trovões
- a falsa linguagem dos gigantes das alturas
que faz tremer o mundo
quando se torna humana.
Mas não assim, nas bocas cerradas à força com adesivos
destes pobres anões montados em sombras de burros espectrais
que apodrecem amordaçadamente dos cascos às crinas
e mesmo quando zurram não arreganham os dentes
para acordar o marasmo do pântano
onde os combates continuam e continuarão até à última caveira do Sol,
- só com furor de ecos
em busca de lâminas
nas manhãs desistentes.
Ferreira, José Gomes. Obras de José Gomes Ferreira - Poeta Militante, 3º Vol. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1998, pp 52 - 55.
.
01/05/11
" Guardei-a no fundo das palavras "
.
Poema XX de "Cidade Inexacta"
(Mais um aniversário melancolicamente
covarde de uma revolução qualquer perdida.)
De repente lembrei-me da espingarda
que escondi nos versos por causa da polícia
e não sei onde pára.
Guardei-a no fundo das palavras,
perdi a chave do alçapão
e agora, neste dia de barricadas com teias-de-aranha,
que vai ser de mim
sem morte nos dedos?
A espingarda! Onde está a espingarda?...
(A boneca, a boneca do Carlos Queiroz...)
... ferrugenta talvez
mas ainda útil nas paradas de névoa
com cartuchos de lágrimas
(de lágrimas secas)
para matar os homens e chorá-los logo.
Pertenceu ao Zé do Telhado,
disparou nas guerrilhas do silêncio,
andou nas mãos dos gritos
- clavina
de carregar pela boca
no Museu da Cólera.
E agora? Onde está?
Talvez na palavra Amor,
Talvez na palavra Ódio,
Talvez na palavra Medo,
Talvez na palavra Morte,
Talvez na palavra Merda.
José Gomes Ferreira in "Poeta Militante" 3º Volume, Publicações Dom Quixote,
Lisboa, 1998, pp 106 - 107.
.
Poema XX de "Cidade Inexacta"
(Mais um aniversário melancolicamente
covarde de uma revolução qualquer perdida.)
De repente lembrei-me da espingarda
que escondi nos versos por causa da polícia
e não sei onde pára.
Guardei-a no fundo das palavras,
perdi a chave do alçapão
e agora, neste dia de barricadas com teias-de-aranha,
que vai ser de mim
sem morte nos dedos?
A espingarda! Onde está a espingarda?...
(A boneca, a boneca do Carlos Queiroz...)
... ferrugenta talvez
mas ainda útil nas paradas de névoa
com cartuchos de lágrimas
(de lágrimas secas)
para matar os homens e chorá-los logo.
Pertenceu ao Zé do Telhado,
disparou nas guerrilhas do silêncio,
andou nas mãos dos gritos
- clavina
de carregar pela boca
no Museu da Cólera.
E agora? Onde está?
Talvez na palavra Amor,
Talvez na palavra Ódio,
Talvez na palavra Medo,
Talvez na palavra Morte,
Talvez na palavra Merda.
José Gomes Ferreira in "Poeta Militante" 3º Volume, Publicações Dom Quixote,
Lisboa, 1998, pp 106 - 107.
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10/02/09

(Vejo passar gente monstruosa através
da montra do café. Pesadelo.)
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Alguns destes monstros
já nasceram como os vejo de mordaças de pano cru,
açames de gelo,
simulacro de dentes com fome (chora-se melhor assim),
silêncio por fora das palavras de que ninguém já sabe o sentido
sem desterro.
.
Outros entraram nas escolas
de bocas ainda livres
- mas logo corriam os senhores professores com agulhas enfiadas de treva
a coserem-lhe os lábios
com teias de aranha.
E ai de quem não desaprendesse
que os números têm a cor misteriosa dos dedos
- e fechem por favor as crianças nos quartos às escuras,
ensinem-nas a sonhar
a instrução primária dos cárceres
(contanto que não sonhem alto).
.
Os mais velhos,
esses operam-se,
substituem-se-lhes as cordas vocais
por guitarras de açúcar ardente,
enquanto se colam nos lábios dos ditadores
mecanismos com espelhos para darem a ilusão do diálogo,
e pequenos aparelhos transparentes de repetir ecos.
.
Outras vezes encosto-me
à porta do café
à espera do Carlos ou do Fafe
contente de haver raparigas luminosas nos intervalos,
todas tão ágeis nas suas mordaças de cetim implácido
tules de voos mentais,
filtros de véus de mel
a cheirarem tão bem a palavras lúcidas
atravessadas de risos e saliva.
De vez em quando
apetece-me quebrar os vidros do café
e perguntar aos monstros
(por gestos, visto as próprias palavras já serem mordaças):
como conseguem comer
com dentes de algodão em rama?
E onde aprenderam a sorrir assim
com gengivas forradas de sedas de punhal
e arame farpado nos bocejos?
- como se as mordaças tornassem o mundo mais azul
e as línguas beijassem melhor
fechadas em redomas de cristal.
.
Agora só falta amordaçar o resto,
o vento, os pássaros, as fontes, os vulcões, o fogo,
as maçãs, os oboés, os tufões
a desordem do sonho.
.
A desordem, sim. Porque a desordem já começou - informam os jornais
com alarde de tinta inquieta.
A desordem que vai destruir os tijolos do sono
nesta cidade
construída de perfumes mortos
e materiais de luz
por arquitectos que usam principalmente a argamassa do sol
traçada de céu vivo
na construção de cofres subterrâneos dos Bancos Loucos
onde os poetas guardam o ouro das nuvens dos poentes
para as reformas na velhice.
.
Sim. Garantem-me e eu confirmo,
graças aos sinais secretos que aprendi para furar mordaças
(ai dos poetas que não rasgam mordaças nem pedras!)
que já começou a desordem.
.
Mas uma desordem tão compassada e grave
que, pela primeira vez, não me apetece gritar
com os outros,
os que só agora repararam nas mordaças
e deixaram de ouvir
os violinos de viverem mortos,
como quem pede desculpa de haver relâmpagos e trovões
- a falsa linguagem dos gigantes nas alturas
que faz tremer o mundo
quando se torna humana.
.
Mas não assim, nas bocas cerradas à força com adesivos
destes pobres anões montados em sombras de burros espectrais
que apodrecem amordaçadamente dos cascos às crinas
e mesmo quando zurram não arreganham os dentes
para acordar o marasmo do pântano
onde os combates continuam e continuarão até à última caveira do sol,
- só com furor de ecos
em busca de lâminas
nas manhãs desistentes.
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José Gomes Ferreira, Poema I de "Grito Plural"
In "Poesia V", Liboa, 1958.
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