Mostrar mensagens com a etiqueta Victor Oliveira Mateus (Textos sobre). Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Victor Oliveira Mateus (Textos sobre). Mostrar todas as mensagens

24/10/13

Uma conversa tida esta semana com a jornalista e poeta Maria Augusta Silva, In Site "Casal das Letras":
.
.
                                    VICTOR OLIVEIRA MATEUS
                               «Continua a insistir-se numa conceção
                                         de escola burocratizada
                                   e que tresanda a Idade Média» 
.

Autor que tem a mestria de casar o clássico com a modernidade, da sua poesia disseram entre outros: Olga Savary: «Como um espia ou um detetive de afetos, abandonando-se num tufo de metáforas, eis a periculosidade do poeta, especialmente do poeta português Victor Oliveira Mateus. Nas asas da poesia, Victor solta os pássaros e canta — e voa. (…)». Cláudio Neves: «Victor escreve no limite entre a poesia e a prosa, e nos faz crer que o faz sem perigo — quando, nesse perigoso limite, muitos poetas de diversos calibres se têm perdido.» Alexandre Bonafim: «(…)Em sua escrita, o deserto torna-se região das especulações filosóficas, dos encontros e desencontros com o outro. Aliás, o deserto de Victor possui uma ambiguidade importante. É nesse espaço que o eu lírico vivenciará tanto a solidão quanto o total da entrega ao outro-amado. Para Victor, somente o mergulho no exílio do mundo e do outro poderia gestar o arrebatamento dos encontros profundos(…)». Maria Augusta Silva: «(…) Uma escrita na qual as palavras são a mágica tranquilidade (sábia viagem) com que o poeta tem vindo a trabalhar a consciência do texto.» Ana Paula Dias: «A forte aptidão metafórica da poesia de Victor Oliveira Mateus, pelo inesperado de certas associações lexicais e pelo fulgor de imagens extremamente certeiras e originais, consubstancia-se numa fala subtil que se move em torno do movimento em direção ao Outro e da noção de Ausência; nela joga-se a inquietação do sujeito num mundo polarizado entre o Absurdo e a Graça, o Efémero e a Luz (…).» Henrique Levy: «(…) A poesia de Victor Oliveira Mateus ensina-nos o poema como semente aquecida no coração da memória, resgatada pela alma, oferecida e alimentada pelo corpo. Comovem-me as palavras, as letras, a ética do poema (…)».


Ter a sua obra poética distinguida com o Prémio Eugénio de Andrade da União Brasileira de Escritores representa o quê ao fim de muitos anos de escrita?
.
  Há sempre uma determinada alegria quando sentimos que o nosso trabalho ecoa noutras mentes, noutras regiões, contudo penso que é importante aceitarmos, com muita prudência, tudo aquilo que nos é dado, pois o excesso de confiança pode condicionar a violência da queda. Foi grande a minha satisfação, foi grande a minha gratidão para com aqueles que de mim se lembraram. Mas no essencial sigo sendo o mesmo.
.
Um dos versos de Eugénio de Andrade era, e mantem-se, profundamente perturbador: «Quando se morre?». O Victor achou alguma vez resposta para esta interrogação?
.
  Jaspers fala do confronto com a morte como uma dessas situações-limite, que, pela sua inexplicabilidade, nos estimula a ousadia do procurar respostas.
.
Já se confrontou com a morte? 
.
   Por volta dos trinta anos. Dois anos dialoguei com ela todos os dias. Não parti… não parti e nunca mais pensei nela! A questão da morte não me atormenta, aliás, numa das suas entrevistas Clarice Lispector diz que o escritor morre muitas vezes. Somos ínfimos e estamos de passagem, urge não esquecer isso. A questão que me atormenta é outra: «Que coisa é esta a que chamamos vida?»
.
Se ainda pudesse falar com Eugénio de Andrade, que gostaria de contar-lhe?
.
   Não conheci pessoalmente Eugénio, privei (e privo) com poetas igualmente grandes dessa geração; por esta minha experiência, não me parece que aquilo que, eventualmente, tivesse a dizer-lhe lhe pudesse interessar, assim como, talvez por egoísmo, preferisse escutá-lo a falar. Pertenço a uma geração de autores que, sem cair num encumear artificioso, cultivou sempre uma sentida deferência para com as gerações anteriores.
.
Já descobriu um pôr-do-sol mais fascinante do que o da praia de Lefteris, de que nos fala no seu livro A Irresistível Voz de Ionatos?
.
   Interessante a pergunta. A Gulbenkian chegou a proporcionar um encontro entre mim e Angélica Ionatos, aquando de um dos seus concertos em Lisboa. Eu estava com uns amigos e ela ficou surpreendida por ter inspirado um poema tão grande como aquele. Não sei se vi algum pôr-do-sol mais fascinante do que esse de que fala o meu poema… todos são simultaneamente iguais e diferentes. 
.
 E cada um de nós olhará a natureza de modo diverso…
.
   Não tenho uma visão cartesiana da Natureza, da qual derivam muitas visões poéticas, sobretudo as que se fundamentam num certo niilismo individualista; a minha Natureza é sagrada, é a que vem de Plotino e dos Renascentistas, mas já estou a fugir à pergunta…
.
Algum homem poderá ser uma ilha?
.
   Neste momento travo uma luta com François de Singly exatamente por causa desse tema. Olho com alguma desconfiança as virtudes do individualismo, ou melhor, reconheço que as ilhas podem ser belas e regeneradoras, mas temo que elas esqueçam os arquipélagos para que sempre tendem.
.
Trabalha a sua poesia com uma incontestável sobriedade estilística. Requere muito ofício até chegar a esse apuro?
.
   Sou cauteloso, talvez seja isso. Não quero que aquilo que me sai das mãos resulte de um qualquer tipo de trabalho exclusivamente formalista e alheio à vida concreta dos homens. Isto não é um juízo de valor, estou só a falar de mim. Cada um tem o seu caminho e o meu passa por uma Escuta atenta daquilo que Há e pela tentativa — tantas vezes gorada! — de que esse Sentido se possa desvelar através do dizer poético.

A formação que tem em filosofia ajudou-o enquanto poeta?
.
   Para ser franco não tenho um distanciamento de mim que me permita dizer algo sobre isso. Quando escrevo um artigo, quando faço uma recensão, é um facto que no meu fazer está sempre aquele aparelho teórico da filosofia e creio que o mesmo sucede nos poemas. Sim, acho que a filosofia em mim tem algo de condenatório: infiltra-se no interior do verso independentemente da minha vontade.

Que diz agora o poeta ao filósofo? Que diz o filósofo ao poeta?
.
   É o poeta que deve dizer ao filósofo, penso. Os Antigos sabiam isso. A poesia liga-se a um olhar primeiro, a um olhar que visa o originário e, nesse sentido, a filosofia joeira aquilo que lhe chega através de uma sucessão de olhares; a filosofia, quanto a mim, padece de uma menoridade ontológica na sua relação com aquilo que Há.
.
Foi professor de Filosofia. Colheu muitas lições dos seus alunos?
.
   Lamentavelmente, nos últimos anos, ensinaram-me muito pouco, ensinaram-me tão-só aquilo que não deve ser a escola. Há uma profunda hipocrisia no modo de viver hoje o ensino: por um lado fala-se de desmotivação, de abandono escolar, etc. Por outro lado, continua a insistir-se numa conceção de escola burocratizada e que tresanda a Idade Média.
.
Entretanto, na arte da tradução, de que autor se sentiu mais próximo ao traduzi-lo? 
.
  Voltaire. Tenho uma profunda admiração pelo séc. XVIII francês, mais especificamente por Voltaire, autor que sempre me fascinou.
.
Neste momento, qual a palavra que gostaria de sublinhar na sua «gramática dos afetos»?
.
  Paixão. Os seres incapazes de se apaixonar assustam-me, muitos deles rondam as psicopatias e, quando frios e ávidos de poder, são perigosos, mas prefiro não desenvolver o tema…
.
Pois… E a velhice assusta-o?
.
   Não. Assusta-me a decadência, que pode surgir em qualquer idade, a velhice não. Há um excelente romance de Louise Weiss sobre a velhice, Dernières Voluptés, e um outro da Vita Sackville-West, Toda a Paixão Abolida. A visão que temos hoje da velhice é aquela que a moral burguesa e a sociedade dos números tem vindo a difundir: o velho-fardo, o velho-não-produtivo, o velho-que-já-está-atrasado-para-a-morte, etc. É dentro deste paradigma que a velhice assusta. Mas nem sempre foi assim e pode nem sempre ser assim: tive amigos de muita idade, alguns grandes escritores, com quem aprendi imenso.
.
Num só verso, como resumiria o nosso país?
.
  Que Camões me perdoe a soberba:
"Ó glória de mandar, ó vã cobiça". 
.
.
 OUTUBRO DE 2013, In Site "O Casal das Letras"

.
.


 

03/07/13

Acerca de... ( XVII )


               " Forte o reencontro dos dois reinos... "
 
 
   Este pequeno livro começa com um jogo singular: o pólo dos afectos, celebrado nas dedicatórias, e o dos desafectos que os primeiros versos anunciam. Com efeito, as dedicatórias, talvez pelo facto de a autora destas linhas conhecer os afectos do autor, funcionam como marcações que nos informam sobre a intencionalidade textual: a representaçao de um mundo interior e intimista.
   Porém, este não é um sujeito lírico "tradicional", que expressa a sua angústia e se deleita nessa expressão: este é mais um sujeito enunciador que "informa sobre" o mundo à volta, em monologante diálogo com um interlocutor, pressentido, convocado, mas não manifestante. Estranhamente, porém, aproximando-se essa enunciação da de uma voz narrante:
 
Tinha pensado em fechar a porta.
Em trancar-me por dentro. A mim e à casa.
Ou talvez à vida - quem sabe, afinal,
deste jogo as indistinções mais frias?
Tinha pensado tanta coisa: que não
gosto de gente que fala alto,
daquela que corre de olhar vazio,
da que tece o lucro de suas ações
em torno de ações sem lucro, enfim,
tudo isso tinha eu pensado... (...)
 
   Desde um título que causa estranhamento - Gente Dois Reinos (junção de palavras que não produz expressão significante)-, logo de início se pressente essa dificuldade de equilíbrio entre o querer arrumar as ruínas do passado, qual "anjo da história" (1), encaixotando-o, e a circunstância de esse passado se impor na sua consciência e a entrar "porta adentro"; entre o voo da imaginação e o jogo da realidade que a existência impõe; entre o vivido e a sua memória que, para funcionar tem de ir "à busca de um tempo perdido" temperada por uma imaginação esquizofrénica, no sentido de Gilles Deleuze e Fálix Guattari (2), que encena a cisão do eu, multiplicando-o temporalmente, e  espacialmente, ao mesmo tempo que intenta a aproximação do "mil planaltos" da consciência humana. Tanto a imagem da porta quanto a do retábulo acentuam, na primeira parte, "Elementos", a circunvalação de um eu cindido: a imagem da porta - inicial, insidiosa e obsidiante - dispersa-se por todos os trechos do percurso de reconhecimento interior em que o sujeito assume a partilha ora entre um eu criança e o seu "duplo", ora entre "eu de hoje" e o "eu de ontem" (I/7) que entram em interlocução com o eu analista, afinal o sujeito enunciador, embora saibamos que "forte o reencontro daquilo que permanece" (II). Em todo o caso, a porta é ainda elemento que sinalizando defesa e protecção, sugere também abertura a outros cenários (inclusive o genesíaco, tão intenso no poema I/3) que constituem o modelo de um devir que é narrado, desde uma "busca uterina", para a qual, no entanto, o enunciador sugere a sua inaptidão (sempre por aquele outro interlocutor não manifesto, mas claramente o outro eu):
 
(...)  Mais tarde, muito
mais tarde, acusar-me-ias de inaptidão,
de incapacidades várias e envenenamentos
de uma narrativa há muito condenada;
 
   A memória dinamiza esse percurso rememorativo, tanto a do vivenciado quanto a do imaginário cultural, particularmente literário (com Proust disseminado pelo texto, também por via de Philippe Besson, mas ainda Frei Jerónimo Baía, Miguel Torga, Antonio Machado, Antonio Carlos Secchin), e a do imaginário histórico em que a figura de Dom Pedro II parece surgir como exemplo de desconcerto da moral e da ética na exposição das feridas históricas, seja pela sua existência política (a destituição e desterro do irmão, D. Afonso VI, a primeira usurpação) seja pela relação pessoal, familiar, afectiva (o casamento com a cunhada, Dona Maria Francisca de Sabóia, considerada a segunda usurpação), a gerar a intermitência da dissolução dos mapas morais e éticos:
 
 
(...)     Pedro com os cabelos revoltos, a mochila
a descair, as palavras umas atrás das outras; Francisca atenta
 
na sua dúplice paixão, as sílabas mitigadas, um agradecido
gesto ante a lealdade que continuamente vou tecendo, para lá
de tanta intermitência. Sonho a prontidão de um sonho imenso,
um território onde o verde irrompa e se dissolva numa qualquer
extensão de mim, indissolúvel luz a fincar presença na pavorosa
dissolução dos mapas.
 
 
   Longo poema em duas partes, a representarem os dois reinos elementares da consciência - o vivido e o imaginado, o privado e o público, o sensível e o histórico - que constroem a epopeia de um diálogo monologante entre um eu e o seu "duplo", este Gente Dois Reinos desafia a imaginação do leitor também na leitura da associação a estabelecer entre as partes: enquanto "Elementos" se compõe de dez partes (poemas?) que, em síntese, visam o complexo para nele buscar o veio da harmonia apenas para depois tentar o simples (I/5), nos quatro segmentos poemáticos de "Reinos" a lingagem ultrapassa a densidade existencial para ganhar em dimensão que convoca a vigília histórica. Por ela modalizando os meandros da existência.
 
 
(1) Cf. Walter Benjamin. "Sobre o conceito da História" (1940). Magia e Técnica, Arte e Política. Obras Escolhidas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
(2) Gilles Deleuze e Félix Guatari. Mil Planaltos: Capitalismo e Esquizofrenia - Vol 2. Lisboa: Assírio e Alvim, 2008.
 
 
  Inocência Mata in Gente Dois Reinos de Victor Oliveira Mateus. Fafe: Editora Labirinto, 2013, pp 7 - 9.
.

Acerca de... ( XVI )


(Nota - o excerto que se segue, postado aqui com autorização do seu autor, é parte integrante de um mail. Esse mail, com a escrita cuidada - como aliás é hábito - de um poeta que tão bem conhece todos os pormenores relacionados com os poemas longos, leva a cabo uma análise clara e atenta dos aspectos formais de Gente Dois Reinos. É evidente que outros mails recebi relativos ao livro em questão, mas apenas este desenvolve, rigorosamente, um tema que a crítica oficial raramente refere. )
 
 
 
 
" (...) Entre o mais, surpreendeu-me a arrumação dos textos no poema maior e ainda mais as partes na sua ligação, a segunda parte surge com violência na arrumação do poema porque, tratando de outro assunto, o continua. Jogou na maior dificuldade e resultou: a união dos opostos - a que o título assintáctico não é estranho - no discurso, no tema, mas não no que de si emana dele. Conheço os problemas dos poemas grandes, dos que tenho escrito e publicado e dos que tenho deitado fora ao longo dos anos por falta de qualidade ( tantos como os editados, três). E esses problemas, a unidade entre as estâncias, digamos assim, à falta de melhor definição, o desenvolvimento do poema sem arrastamentos de texto, a coesão do poema com o feito final que, à primeira vista, poderia parecer vir em contra-mão mas que lhe dá o fim que um poema longo exige, o atrevimento saborosíssimo de inovação da parte II, Reinos, esses problemas que conheço, dizia, cumpre-os o Victor com mão segura, além da substância do poema e da sua linguagem... "
 
 
                                                                       Nuno Dempster   ( inédito )
.
.
 
 
 
 
 
 
 

01/07/13

Acerca de... (XV)



            "  Por uma estética do exílio  "

   A Irresistível Voz de Ionatos, de Victor Oliveira Mateus, é um livro que se lê de uma assentada, tanto pelo galope seguro com que o texto nos conduz, quanto pela estrutura com que foi concebido.
   São vinte e sete poemas, ou vinte e sete seções de um só poema, que têm como cenário uma ilha ( ou ilhas ) da Grécia, e, por motivo central, uma evocação amorosa ( ou a evocação sucessiva de uma falta ) em que se vão tecendo imagens e considerações sobre a natureza do desejo, do tempo, da morte e da própria poesia. Como nas óperas de Wagner, certos temas aparecem e reaparecem sutilmente associados a diferentes imagens, deixando-nos a intuição de que seu significado mais profundo, embora se intensifique, nos escapa. 
 
 
(...) Ilha para lá do vazio, da felicidade imitada,
dos escombros: terra finalmente alcançada com o teu
braço sobre os meus ombros. Nenhum mal a poderia
já extinguir como marco nunca havido, nem a persistente
 
fragrância a si própria acrescentada de sêmen e saliva
- de nós húmidos rastros - no abandono dos cômoros, nem
tão-pouco as terríveis perdas, que nas cidades fervilham
em correria inóspita e vã, parecer por nós recusado
quando à ilha havíamos chegado naquela extrema manhã.
 
 
   Assim começa o livro, insinuando uma subjacente narrativa que se irá construindo e consumindo conforme nos familiarizamos com suas idas e vindas. E a ilha, com suas luzes e destroços, com seus bares atarefados e seus pescadores, com seu relevo e o branco compacto de suas casas, se vai amalgamando à sensação de perda, ao perdedor e ao perdido:
 
(...) Tenho saudades
do ritual dos peixes, do rumor
inconsolado da brisa a soar
mansa no abandono dos búzios,
do emaranhado das algas
a envolver-nos a prontidão
dos passos. Tenho saudades
de mim nesses tempos,
quando não tinha saudades.
 
   Aqui e ali, surgem composições menos reflexivas e de maior carga confessional, como em:
 
 
Nunca soube lançar o pião
como os rapazes no terreiro,
entre os contentores: aprendizes
de ladrões, de proxenetas,
 
arrumadores. Nunca soube
lançar o pião. Nem puxar-lhe
o cordel entre os dedos
ou içá-lo, rodopiante, na palma
 
da mão, acima do solo,
conspurcado e mudo. Lancei
a minha vida, os meus
anseios. E foi tudo.
 
   Ressaltemos que Victor, como Nerval ou Rimbaud, não parece conceber distinção de fato entre a poesia e a prosa. Ou melhor, não concebe diferenças de gênese entre uma e outra forma de expressão literária do " princípio poético " - para usar aqui o conhecido nome que deu Edgar Poe a essa súbita elevação, essa comoção de que somos tomados diante da obra de arte.
   Seus poemas de nada se desincubem, recuperando atribuições quase esquecidas pela poesia contemporânea. Seus versos descrevem, narram, comentam. E o fazem afastando-se tanto do minimalismo e da sintaxe nominal, tão caros aos nossos dias, quanto da mera poesia didático-discursiva. Assim também que, não raro, o poeta intercale interjeições, interrompa-se, reformule idéias e imagens, quebre frases em dois versos ( ou mesmo em duas estrofes ) sem incorrer no virtuosismo vazio ou na hesitação de estilo.
   Por vezes, o efeito de sua escrita jaz na simplicidade do recorte:
 
Azul que em azul te desdobras.
Cerco de baías. Moldura de espuma.
 
Noutras, é obtido pela inserção explícita de expressões comparativas ou de vaguidão em suas analogias:
 
A mulher da loja em frente traz consigo
algo das antigas deusas. Das possuídas
sibilas. (...)
 
   Dito melhor: Victor escreve no limite entre a poesia e a prosa, e nos faz crer que o faz sem perigo - quando, nesse perigoso limite, muitos poetas de diversos calibres se têm perdido. Produzindo muitas vezes prosa poética, que apenas da forma usual da poesia se apropria, assume certo sabor clássico, como em:
 
                                              ( ...) enquanto a impreterível
presença das pontes vinca este doce gorjeio que, sempre
em nós acrescentado, impedir não tentamos nem podemos.
 
   Porém, à revelia das inversões sintáticas e do vocabulário, o resultado soa natural. Como se o poeta pensasse alto e no ritmo que as palavras já trazem consigo.
   Borges, que também ignorava distinções genéticas entre a prosa e a poesia, já dizia que o tempo lhe ensinara que as melhores metáforas são as mais familiares - a morte e o sono, o crepúsculo e a velhice... Se concordamos com ele, concordaremos também com Victor Oliveira Mateus na eleição de sua ilha como imagem atemporal da distância, da perda, do exílio. Distância voluntária, e talvez segura, na qual pode ele retomar temas da tradição sobre os quais, contudo, sempre há o que ainda ser dito. Exílio em que pode exercitar seu estilo fluido e sincrético, a despeito das precárias e provisórias noções do que seja atual ou antigo.
 
 
     Cláudio Neves, in A Irresistível Voz de Ionatos de Victor Oliveira Mateus. Fafe: Editora Labirinto, 2009, pp 41 - 43.
.
 
 
 

28/07/12

Acerca de... ( XIV )


   À mercê das tempestades que tornam ainda mais inóspitos os espaços de areia e pedras que são os desertos, estes poemas fazem-se. As mãos traçam-nos, meticulosamente. As mãos sabem que tudo é evanescente, como as dunas, que apontam direcções, mas também podem ter um efeito alucinatório para os imprudentes; talvez por isso: "os homens vagueiam (...) com desespero no tosco emaranhado das dunas. " São mãos nómadas e errantes. Mãos que resgatam as palavras, os afectos, a natureza humana, do seu carácter transitório.
   Retomando a tradição dos grandes caminhantes como Bashô - atrevo-me a afirmar que o Victor Oliveira Mateus é um leitor atento da Poesia e da Filosofia do Oriente, expressas em referências subtis como a flor de Lótus - o deserto torna-se o centro de todas as errâncias: da errância  dos nómadas e da errância que acompanha a busca espiritual. Angel Silesius desejava subir mais alto que Deus, no Deserto, para atingir a indiferenciação do princípio, mas o deserto é um signo de uma ambivalência incandescente na sua "fértil aridez", porque é o lugar da sede, do terrível e do sublime, das extensões infinitas onde nos perdemos e morremos, por isso o eu se resguarda: "O meu lugar é um minúsculo e límpido poço." O deserto é o espaço de ressonância para o grito do poeta que, embora seja o buscador ( o "aceitante") dos mistérios imperscrutáveis, vive ainda no caos infernal de um tempo iníquo - paradigmático dessa realidade é o poema 14. No entanto, não se pense que este escriba dos desertos (a conotação do deserto pluraliza-se continuamente) se superioriza em relação aos que cedem a toda a sorte de miragens - embora no poema 4 a "Senhora da morte eterna" encarne os fenómenos da máscara, ostentação e jogos mistificatórios rejeitados definitivamente pela natureza do poeta, o poema 8 é uma prece para que nunca o próprio sujeito seja um subvertor da ética: "Meu Deus, fazei com que os outros não me atraiçoem nunca e, sobretudo, que eu nunca os apunhale na sua dignidade! Dai-me a suprema lucidez do Viandante...". No poema 9, o sujeito da enunciação assinala o perigo que o abismo encerra; respira, de quase alívio, no poema 15, porque a sua voz, embora enfraquecida, "canta o outro lado do abismo"; apesar do desalento dos primeiros versos: "sei tão pouco de tudo/ tão pouco! Tantos anos gastos a pensar, para afinal descobrir a pouca importância das coisas", o eu  escreve, e cada linha do poema é um testemunho necessário para que a fertilidade aconteça, porque só a obscura transparência da palavra pode ficar como testemunho do vivido, como aprendizagem.
   Este é um livro de uma viagem iniciática, que tem por principal leit motiv o desejo erótico: o rosto do "tu" inscreve-se como uma nervura - a princípio indelével, depois mais funda, em todos os signos do desejo que afloram nas linhas do livro. O "azul desmaiado dos olhos", o corpo do outro, "essa figura sentenciosa de beduíno", as suas palavras, fazem parte do espaço - que nunca finda - do deserto. O deserto é o território do absoluto e da solidão interior - a comunhão erótica procura um mais além, "aquilo que o excede a mim entrega." A alteridade imprevisível do outro abre uma ferida no conhecimento do mesmo: uma ferida, ou uma brecha. Por essa alteridade, se acede a uma liberdade sem limites, a uma consciência mais profunda. O erotismo é uma via para aceder ao absoluto, e, como tal, também inflige provações em quem padece, tece as suas armadilhas: a princípio o olhar do tu parecia ser de escárnio, mas, aos poucos, se foi instituindo olhar de desejo, flecha apontada numa só direcção, certeira, invencível: "... e a minha fuga um pássaro degolado pelo teu corpo." (poema 11)
   No deserto, há fios invisíveis que se infiltram entre os grãos de areia e vão fendendo paulatinamente o território antigo. Fundam outro deserto. O amor é o órgão para se ver a Deus, escreve Simone Weil. O corpo é consagrado nestes poemas: "E é o teu corpo nu, exausto, branco como um templo, porque todos os corpos são um templo no solo consagrado que há." (poema 21). O rosto amado é o lugar do indizível segredo. Não há transubstanciação do eu no outro. Há comunhão, há a maravilha deste outro como eu que me ama na noite, parece ciciar-nos o poeta. Eis a primeira noite de Novalis: acolhedora e manancial de conhecimento; o corpo tem a nudez de uma pedra. O conhecimento lítico do deserto de Lucchesi. Nestes poemas, ardemos no centro do amor.
   Para Octavio Paz, o erotismo é uma metáfora do conhecimento e o corpo lido no poema (o esplendor do corpo) é um criptograma, um meio de decifração de sinais que preparam a descoberta do mundo. Cabe à palavra do poema preparar um outro sentido para o mundo. Cabe às mãos - acantonadas no deserto - serem o elemento que indica os caminhos do Erotismo e da Poesia, ainda que, como os místicos que sabem que a desvelação de um mistério nunca é completa, o sujeito hesite em atribuir um nome ao "êxtase do que pressinto": "misto de assombro e agonia, estranho dizer, talvez poesia."
   Eu bebi a água da minha sede na cintilação das areias desta escrita.

          Isabel Aguiar Barcelos in Mateus, Victor Oliveira. Pelo Deserto as Minhas Mãos. Carcavelos: Coisas de Ler Edições, 2004, pp 7 - 9.
.

Acerca de... ( XIII )


                         " Il ritorno in Italia del poeta Victor Oliveira Mateus "

   Victor Oliveira Mateus, poeta portoghese di grande forza e intensità, ci regala la sua sesta raccolta, dal titolo Regresso (Editora Labirinto, Fafe, 2010). Regresso, e cioè "ritorno", é parola già di per sé carica di attese e di poesia. Presuppone un viaggio nella memoria, alla ricerca di un luogo, di una persona, di un rapporto, di un ricordo, di un'immagine, di un vissuto. Il luogo in cui si ritorna qui è Torino, città che il poeta ripercorre da solo, attento a ogni particolare, cogliendo ogni momento in un soliloquio illuminato dalla nostalgia e dal vuoto della figura amata. In realità, forse più che cercare l'amata, il poeta cerca sé stesso, certa colui che è rimasto intrappolato in un momento, in una fotografia, nei ricordi che non si cancellano e che impediscono di continuare l'esistenza. Nei versi di questa densa raccolta, di un lirismo riflessivo e filosofico, le poesie sono tappe essenziali di un viaggio interiore e paiono, più che un incontro, un doloroso e necessario commiato.
   Insieme all'io lirico, seguiamo il suo itinerario fra i luoghi del ricordo: Via Roma, Piazza San Carlo, Via Po, Piazza Vittorio Veneto e poi ancora il Palazzo Reale e altri monumenti e vialli della Torino che appassiona i visitatori di tutto il mondo. Ma non ci facciamo ingannare da quello che, solo in apparenza, è un giro turistico. Fra passanti e visitatori affrettati o chiassosi,  troviamo l'io intento a compiere una sorta di pellegrinaggio per una città che è stata, insieme, testimone e scenario di momenti che debbono essere rivissuti e ossessivamente sviscerati affinché si possa placare la sensazione di qualcosa che è rimasta incompluta:

(... ) E foi, mais ou menos
por essa altura, que eu quis voltar atrás. Voltar atrás
para encontrar a origem. Uma porta. Para começar
tudo de novo, mas de outro modo. Voltar atrás
para encontrar o princípio - e a mim através dele

(p. 18)

(...) E fu più o meno
da quel momento, che volli tornare indietro. Tornare
per trovare l'origine. Una porta. Per ricominciare
tutto di nuovo, ma in un altro modo. Tornare
per ritrovare l'inizio - e me stesso tramite esso

   Una malinconia accompagna i passi del poeta e un disincanto di chi se che il suo è un incontro a cui solo uno dei duo personaggi si presenterà. Non è un caso che egli affermi, nella poesia che apre la raccolta, che non voleva ritornare e che lo ha fatto solo per un'assoluta compunzione dell'anima:

À minha maneira tudo fiz para não voltar
aqui. Para não me expor à inútil corrosão
da memória, ao enganoso magma das
palavras. A meu modo sempre evitei estas
grades, estas árvores simetricamente

encaixotadas acenando-me ao fundo

(p. 11) 

A modo mio tutto ho fatto per non tornare
qui. Per non espormi all'inutile corrosione
della memoria, all'ingannevole magma delle
parole. A modo mio ho evitato sempre queste
grate, questi alberi simmetricamente

allineati che mi accennano in fondo

   La città è indaffarata, i passanti distratti mentre il poeta è sospeso, come fuori dal tempo (anche se non dallo spazio), alla ricerca delle stesse coordinate spazialo-temporali in cui si è compiuto un rapporto e un'esistenza: " Aqui, debruçado sobre o Pó,/ sorvendo-lhe as águas e os reflexos, digo-me finalmente/ ao que vim: procurar pegadas, retalhar acidentes..." ( Qui, affacciato sul Po/ assorbendogli le acque e i riflessi, mi dico finalmente/ perché sono venuto: cercare orme, riordinare i fatti... ) p. 14.
   In questo diario intenso i grandi temi dell'esistenza si mescolano a fatti e gesti quotidiani e la vita entra nei versi attraverso le voci della città, attraverso i dialoghi rubati che si intrecciano ai pensieri e al percorso in profondità fatto dall'autore. Tutto diventa materia di poesia, tutto viene catturato dallo sguardo attento di un io che analizza sé stesso e il mondo e che, nei momenti di più intensa nostalgia, sdrammatizza con ironia il suo stesso dolore.
   Con un eloquio chiaro e posato, con versi lunghi e regolari (quasi sempre più de dodici sillabe), egli procede al riconoscimento dei luoghi in cui è vissuto, sorpreso che nulla vi sia rimasto impresso, che la vita proceda e non lasci memoria di sé. Allora è necessario ricorrere alle fotofrafie, ricontrollare oggetti e immagini, ricercarsi in uno scatto che ha immobilizzato volti e movenze e strappato al nulla ciò che ormai vive solo nella memoria:

Na foto ela está sorridente. Ar inocente,
conseguido. Ele também, triunfante
e pose a condizer, embora presa de presa
mas sem o saber. Outros iguais nas mesas
vizinhas - esperam a hora para descer (...).
Nas foto lá estão os toldos branco-

sujo a cobrir as mesas, as cervejas, os sorrisos.
A um transeunte foi-lhe roubado o espanto,
fixado naquele pedaço de papel sem brilho.
Debruço-me para dentro da foto, mas não
me vejo. Contudo, tenho a certeza que estou

(p. 15)

Nella foto lei è sorridente. Aria innocente,
riuscita. Anche lui, trionfante
nella giusta posa, catturati uno dall'altro
mas senza saperlo. Altri identici nei tavoli
vicini - attendono l'ora di andarsene (...).
Nella foto si vedono i tendoni bianco-

sporco che coprono i tavoli, le birre, i sorrisi.
A un passante à stato rubato lo stupore,
fissato in quel pezzo di carta opaca.
Mi sporgo dentro la foto, ma non
mi vedo. Eppure sono certo che ci sono

   Ha ragione il critico e poeta brasiliano Paulo Franchetti quando afferma, nella postfazione del libro, che non si percepisce veramente un "tu" in questi versi, ma solo un "io" alla ricerca, in viaggio e in attesa. Il titolo di una delle più belle poesie del libro, " Desabitada presença " ( Disabitata presenza), nella sua ossimorica sintesi può ben riassumere il senso di questo ritorni ai luoghi disabitati da colui che si è venuto, invano, a cercare.
   Per questo, Regresso è una sorta di requiem, di canto dell'assenza. Le ultime poesie hanno, infatti, titoli che rimandano all'ambito religioso: " Vésperas, sem oração " (Vespri, senza preghiera), " Litania para um dia depois " (Litania per il giorno dopo). È il commiato che permette all'io lirico di ritornare al punto da cui era partito e di ricominciare l'esistenza che la parola e la poesia se non salvano, almeno guariscono, consolano e danno un senso al viaggio e alla vita.

         Vera Lúcia de Oliveira in " Fili D' Aquilone ", Numero 22, aprile/giugno 2011.
.

Acerca de... ( XII )


(Texto acerca do poema " Num café da Via Monginevro " e do livro " Regresso" )

" Pois é, coloco-me na condição do rapaz do café observando/ lendo o poeta Victor Oliveira Mateus, com o mesmo assombro e admiração. Sua poesia, com cenas que fluem e situações que se diluem, que derivam observações desviantes, nos levam a um estado de contemplação metafísica. Viajar com ele, sem direito a regresso. "

   António Miranda in Site "Poesia de Ibero-América ".
.

15/03/12

Acerca de...(XI)

.
O que mais me impressionou nessa poesia é a tensão constante entre o discurso e a forma do verso. Se é que de verso se trata. Temos de fazer algum esforço, colocar a linha entre parêntesis, para ouvir mais próxima a cadência dos outros versos, que se escondem dentro e ao redor dos definidos pela tipografia. Ao mesmo tempo, os cortes trazem um princípio de medida. Muito além, entretanto, do limite das doze sílabas: bárbaros, como se dizia. Em alguns poemas, a persistência do número de sílabas (em extensões médias de catorze, por exemplo) cria como um discurso duplo. Há uma frase que se ergue pela força do sopro lírico - a direção entusiasta da frase, para aproveitar remotamente uma formulação de Mallarmé - e que se vaza num molde abstrato, que a rompe, sem a impedir de se afirmar no seu ritmo próprio. Lembrando versículos entranhados num corpo estranho, o fraseado impõe aos poucos os princípios da sua regularidade, de que resultam interessantes harmónicos de sentidos. Por qualquer ângulo que se olhe, o que este livro faz é expor uma percepção aguda de cambiantes e contrastes. Uma desproporção anima o embate dos opostos: interior e exterior, carência e posse, olhar para o outro e olhar do outro, sensação de partida e anseio pelo regresso. O discurso constitui os temas. A forma do verso os cristaliza, por meio do corte violento e aparentemente arbitrário, dos blocos regulares de linhas que se sucedem além dos requisitos ou emblemas da sintaxe, nos quais de repente brilha uma frase repetida, modulada agora pela nova posição em que se encontra. O motivo do retorno dá o título e tom dos poemas. O poeta retorna pela memória, pela celebração do momento efémero. Retorna a si mesmo, à história de si que repete à beira do momento do abismo. Mas as suas palavras recusam o retorno fundamental. Apenas como desenho abstrato e como injunção de leitura se define esse verso. A voz coletiva do pulsar antigo aparece como escolho, ponto de referência, tentação. Por isso talvez não sinta que há de fato um tu nesses versos. Ainda quando surja, é uma duplicação da voz, um espelho, um caminho ou uma fuga de si mesmo. Uma busca, afinal. Mas essa, apesar da intenção, nunca redunda em retorno, nem se resolve em reencontro, mas apenas em viagem cujo fim só poderá ser também o fim do viajante. O que senti quando li este livro é que, para um desígnio tal e uma tal concepção do tempo e dos limites da própria percepção, a vida é mesmo um milagre, o verso também e, maior que todos, seria o regresso, se pudesse acontecer.

    Paulo Franchetti in Mateus, Victor Oliveira. Regresso. Fafe: Editora Labirinto, 2010, pp 43 - 44.
.

Acerca de...(X)

.
Difícil a tarefa de apresentar Regresso, de Victor Oliveira Mateus, que o leitor tem ora em mãos. E difícil por dois motivos, em especial: primeiro, porque o seu autor, poeta que é, é sempre e em tudo avesso a definições; depois, porque, levando ao paroxismo certa tendência da poesia portuguesa, o livro é todo ele uma aposta, incondicional e sem reservas, na atualidade dessa tendência, a qual, esta sim, pode definir-se como "um não sei quê, que nasce não sei onde,/ vem não sei como, e dói não sei por quê", segundo o insuperável dístico de Camões.
Trata-se, pois, aqui, de amor e memória: e entre eles a poesia, a fazer de ponte, a mediar entre o que foi e o que está sendo. É um dos "grandes temas" de sempre, caro leitor, a que assim chamamos, de resto, não por outro motivo, senão apenas porque não passam. Como Ulisses, Ítaca e o tema do regresso.
O regresso de Victor, porém, tem mais de Santo Agostinho que de Homero: é antes um retorno a si mesmo, in te ipsum redi. E a poesia, para ele, é exatamente esse caminho de volta, de um presente precário a um passado diáfano, cujo resultado, ou efeito, no fim de contas, não é nem remissão, nem negação de si: mas a algo mais modesta, e sempre mais difícil, aceitação da precariedade de vida, e, nela, da diafaneidade do sujeito: "átomo de mim na mais aérea vastidão", diz o poema-título.
"E quem pode, com um dedo, apontar um aroma?", pergunta Rainer Maria Rilke, um dos poetas-filósofos por excelência, num dos mais belos versos dos Sonetos a Orfeu. É precisamente esse, não outro, o impasse que nutre, ou mais do que isso, que organiza, de um ponto de vista formal, Regresso, do poeta-filósofo Victor Oliveira Mateus. E já então o leitor informado poderá seguir a sutileza desse aroma, ora pelas ruas, ora no parque, ora num café de Turim. Não daquela, porém, senão de outra: uma cidade aérea e musical, onde as nossas certezas se desmancham, e onde as paixões, quando pulsam, estão "viradas para dentro".

   Érico Nogueira in Mateus, Victor Oliveira. Regresso. Fafe: Editora Labirinto, 2010, pp 9 - 10.
.

14/03/12

Acerca de...(IX)

.
A forte aptidão metafórica da poesia de Victor Oliveira Mateus, pelo inesperado de certas associações lexicais e pelo fulgor de imagens extremamente certeiras e originais, consubstancia-se numa fala subtil que se move em torno do movimento em direcção ao Outro e da noção de Ausência; nela joga-se a inquietação do sujeito num mundo polarizado entre o Absurdo e a Graça, o Efémero e a Luz.
Esta voz feita de palavras ancoradas num ritmo discursivo não nomeia, antes, faz escutar o rumor quase inaudível das pequenas coisas (muitas vezes até no Silêncio e pelo Silêncio no interior dos versos); sobretudo nos primeiros poemas da sequência de "A Noite e a Voz", o "tu" surge frequentemente como contraponto ao real, por vezes como uma espécie de oásis no Absurdo, representado por uma imagética sensorial de cores, luz, sons e odores - em que são recorrentes o "brilho", a "luz", a "estrela", a "cintilação", o "cristal", o ´"murmúrio", a "música", a "voz", o "cheiro". Presença evocada, por vezes partilhada (1.,2), presença metonímica e constante - o "olhar", os "olhos", a "boca" (4.,6.,11.) - associada ao "rigor dos afectos", ao "cataclismo dos desejos" (12.), mas inevitavelmente sob o signo da ausência, quer pelo movimento de chegada/ partida ou desencontro - sinal do efémero e paradoxal dos sentimentos (1.,2.,5.,7., 18.,20.,27.), de "assalto" (3.,4.) quer pela antecipação da mesma, pelo saber que "nada fica para sempre" (4., 11.). Mesmo quando há comunhão, partilha, esta é sempre marcada pela antecipação da disforia pelo "eu", suspenso "entre o eterno e o sabor inadiável da morte" (7.,8.,11.,21).
Ausência é ainda morte e Absurdo: morre-se "de ausência" (19.) e ausência dos "amigos mortos", o luto da perda primordial, arrasta consigo o Absurdo e o despojamento (24.,26).
Este movimento em direcção ao outro, embora simultâneo do sofrer do Absurdo e do Efémero, é também muitas vezes, uma busca do Sentido, de "outra coisa" (2.,6.) e a evocação dele, uma "subtil fresta/ aberta numa montanha de alcatrão e corvos secos" (3) ou um lampejo da Graça (6.). Assim, afectos/ fantasia/ interioridade opõem-se à "vastidão fria do labirinto" (10.) e à "voraz negritude da cidade" (5.), à exterioridade, sempre sinalizada negativamente: "efémero/ gotejando filamentos de absurdo" (2), "céu de bruma e desespero" (6.).
Mas as formas de aceder ao Outro são também solidárias, há no poema a integração da consciência crítica, a combinação de uma dimensão ética e poética na abordagem do quotidiano (15.,23.,24.,28.).
Consiste muitas vezes no silêncio o mais perfeito abrigo para a alma, sobretudo quando o Absurdo atinge com a força de uma realidade opaca e cega, mas a poesia pode não limitar-se ao dizer - e por isso, cenários como a guerra, o "bombardeamento sobre a Sérvia/ que deixou todos aqueles mortos na estrada" e a doença, o insidioso cancro mudo do "adolescente do gorro de lã" e dos "três velhos da sueca" sublinham, expõem cruamente esse binómio ausência/ absurdo, chaves para a leitura da rede de sinais do horizonte poético de Victor Oliveira Mateus, igualmente presentes nestes textos em que o Outro assume tais contornos colectivos e sociais: o absurdo na ausência de sentido da guerra (15) e da doença (16.,17.).
Não obstante, Absurdo e Graça coexistem na deslumbrante leveza dos sinais que a beleza do mundo nos oferece e que esta poesia assinala, como se aquilo que verdadeiramente é nunca possa ficar preso nas teias do primeiro: a inocência da joaninha (25.) e do esquilo, "pequena roda de maravilha na maquinaria desdentada do mundo" (28.), a ilha onde "apesar de tudo" há "uma lucerna/ pequenina, um pássaro nunca visto no halo fresco da madrugada" (23.), "a alegria das coisas simples" (29). Aliás, abandonada a incessante busca do Outro, superados a Ausência e o Absurdo, chega-se ao despojamento, à iluminção do Grande Despertar, já entrevisto nos poemas sobre a morte.
Perpassa por toda esta escrita uma espécie de sabedoria que integra ainda na sua voz os elementos da natureza: "água", "fogo", "sol", "lua", "rio", "planta", "ave", e sabe transmitir a vibração de cada um dos seus mais ínfimos átomos às palavras dos versos: passado o caminho dos "longos ribeiros quase secos", das "velhas estradas de pedra", no final de um percurso no qual o Outro, as paixões, o Absurdo e o Efémero marcaram as vivências do sujeito, faz-se a superação - "Passado está, enfim, todo o caminho: ponte, provação necessária" (31.) e opera-se a passagem para a Iluminação, para o Grande Despertar - a sós e ao som da música.
E assim, na "continuação da Noite,/ interminável " (30.) se chega à síntese, pela superação dialéctica - a Poesia é a Voz e a Voz a Poesia, lugar da serenidade, da aceitação e do apaziguamento possíveis no mundo da ausência.

   Ana Paula Dias in Mateus, Victor Oliveira. A Noite e a Voz. Lisboa: Universitária Editora, 2001, pp 5 - 7.
.

17/11/11

Acerca de...(VIII)

.
Reseñas de libros: " Voces actuales de la poesía portuguesa... "

En varias ocasiones, he comprobado que el mejor indicio de la repercusión que una literatura determinada tiene en la sociedad es la variedad de títulos que podemos encontrar en los estantes de una librería. Así de cotidiano y de fiable. En el caso de la poesía portuguesa, tan cercana geográficamente a nosotros, casi gemela, esta ecuación puede aplicarse y llegaremos a un resultado nada sorprendente: una presencia tímida y segura en sus títulos. La poesía portuguesa se encuentra en España amparada casi siempre por la perpetuidad exitosa de los clásicos: Camões, las obras completas de Pessoa, algunos hermosos vestigios de Eugénio de Andrade, mínimos latidos del saudosista Teixeira de Pascoaes y de la delicadeza herida de Florbela Espanca. Muy poco de Manuel Alegre, al igual que muy poco de Sophia de Mello y Jorge de Sena. Siempre existe alguma sorpresa, pero ese sentimiento siempre será una excepción.
Tan lejos y tan cerca, a la vez. Y esa lejanía entristece, porque Portugal posee voces que embellecen la poesía, su existencia. Más allá del magnífico y enigmático Fernando Pessoa, más allá de su fantasma múltiple y perfecto, hay poetas que siguen dignificando la poesía en portugués.
En mis numerosas viajes a Lisboa he tenido la oportunidad de acercarme al latido tranquilo y rítmico de la poesía portuguesa contemporánea. Durante mis paseos por librerías lisboetas como la hermosa y culturalmente activa "Fabula Urbis" de la rua Augusto Rosa - regentada por un hombre sabio y agradable como es João Pimentel -, la lebrería "Portugal" del Chiado o las más comerciales - pero no peores - como "Bulhosa" de Campo Grande, he podido encontrar poetas de peso, de verso redondo, poéticamente habitables: la silenciosa voz de Cristovam Pavia, la cristalina presencia de Albano Martins, el sobrecogedor abandono trascendente y melancólico de Ruy Belo o el ritmo hilado de Manuel Gusmão, entre otros. Esta lista podría alargar-se infinitamente. Por ello, me centraré en dos libros que vieron la luz en Portugal en la editorial Labirinto en 2010 y 2011: Regresso (2010), de Victor Oliveira Mateus y A incidência da luz, de Graça Pires.
El libro de Oliveira Mateus ya dice mucho en su título. En él acontece un regresso, un regresso a sí mismo. Pero no debemos quedarnos ahí. Late en él ese regreso de Novalis hacia el alma como quien regresa al origen: " Volver atrás/ para encontrar el principio: y a mí través de él." dice en su poema "Alucinación". Este poemario tiene la belleza de los viajes, pero los verdaderos viajes son los parten de la soledad, desde la otredad de quien contempla el mundo como si la memoria ungiera con sus aguas la pureza de la primera existencia. Es un libro puro en cuanto desposesión asume la voz poética: "Cuando partí estaban/ todos atareados viajando, pero de otro modo". La pérdida llega desde esa diferencia del que se contempla en la distancia para regresar, para fundirse con su origen, como místicamente lo hizo Plotino.
Oliveira Mateus se reconstruye a través de la poesía, se encuentra en ella como en diversas fotografias de sí mismo. Creo que no hay maior nostalgia que aquella que surge de contemplar a quien se fue en una fotografia. Mirar-se a los ojos, a través del velo del tiempo, es recortar una ausencia. Oliveira Mateus se recorta en imágenes de Turin o del río Po desembocando en Venecia, aunque quién sabe si también recuerda a Virgilio su desembocadura en el Hades.
Todo en este libro es una presencia dashabitada enmarcada en una ciudad. En esa misma cuidad donde se dan encuentros que pudieron ser y no fueron. Nadie como la memoria tiene la habilidad de llevar al acontecimiento aquello que nunca fue. Quizá por eso el recuerdo salve. Quizá por eso hiera también: "Grito dentro del paisage. Grito y la convulsión/ del verde arrasa las colinas enfrente (...)". La voz poética sabe que de ninguna reconstrucción se sale indemne. Siempre asusta ese pequeño desplazamiento del color, esa variante tímida de la tonalidad que hace que no reconozcamos el lugar. Quién o qué ha provocado ese cambio? Tal vez el triste vacío que siempre queda al regresar, el envejecimiento que emana de las cosas perdidas: "Y está también tu rostro, casi sin contornos:/ sombra disolviéndose en la sombra". La sombra, ese camino que nos hace regresar, siempre hace el recuerdo más inhóspito, a veces fingido: "Donde ese Parque de memoria y fingimiento?". Lo que se enmascara siempre produce inquietud, pero también busca proteger una verdad, el recuerdo puro, perdido, de sí mismo.

   Marta López Vilar in "Ojos de Papel", Madrid, Julio 2011.
.

13/11/11

Acerca de...(VII)

.
" Pelo deserto as minhas mãos: a poesia de Victor Oliveira Mateus"

Na literatura do Ocidente, tornou-se um verdadeiro leitmotiv a figura emblemática do estrangeiro. André Gide revelará, em seu "O Imoralista", uma personagem em constante errância, em permanente busca por um lugar indefinido, sempre distante. Em "A montanha mágica", Hans Castorp encontrará nos Alpes um recanto onde aprofundará suas reflexões sobre o existir humano. Aliás, Thomas Mann será o exímio autor das personagens exiladas. Também em "Morte em Veneza", a sua personagem central, Gustav Von Aschenbach, torna-se, na famosa cidade italiana, o estrangeiro por excelência. Outros autores, como Paul Bowles, farão do deserto o refúgio dos outsiders, dos excluídos. Esse leitmotiv se tornará, para os escritores, símbolo de uma resistência ao mundo reificado, consumista, universo no qual o objecto toma o espaço do ser.
Indo ao encontro dessa tendência, o poeta português Victor Oliveira Mateus, em seu "Pelo deserto as minhas mãos", plasma todo um cenário estranho, distante do mundo das metrópoles. No deserto de Mateus, o assombro aflora, com intensidade, perante os encontros e despedidas amorosos, marcando, dessa forma, o destino de um eu lírico em errância, em peregrinação não pelos espaços físicos, mas pelos desvãos dos seus sentimentos.
Em sua escrita, o deserto torna-se região das especulações filosóficas, dos encontros e desencontros com o outro. Aliás, o deserto de Victor possui uma ambiguidade importante. É nesse espaço que o eu lírico vivenciará tanto a solidão quanto a total entrega ao outro-amado. Para Victor, somente o mergulho no exílio do mundo e do outro, poderia gestar o arrebatamento dos encontros fecundos. Nessa ascese, é preciso, antes, ouvir a verdade da própria existência, para, a partir daí tramar, com harmonia, os amores.Anti-baudelairiano, o poeta de "Pelo deserto as minhas mãos" rejeita os paraísos artificiais, a fim de buscar, na aridez desértica, uma forma de existência mais plena. Essa recusa ao mundo capitalizado pode ser encontrada, por exemplo, no seguinte texto:

Nas cidades de onde venho
secam as árvores ao som das sirenes
e os pássaros, alucinados, buscam direções
nas pupilas das crianças.
Nessas cidades tudo é pressa e desassossego,
enquanto os homens, improvidentes, desaprendem
a sublime auscultação da terra;
nem sequer o coração dos outros podem ler
ou o rumor inconsolável das águas
- para eles aquilo que apenas vêem!
E com um nó no peito desatado
pintam de harmonia um novo Caos.

Ao auscultar essa terra árida, o seu silêncio, o homem torna-se capaz de ler o coração do outro. Ou seja, é preciso isolar-se, de forma serena, para ter a sabedoria de oferendar-se, em plenitude, ao amor. A solidão, nesse caso, é salutar, ela representa a busca de uma sabedoria, de uma compreensão do existir. Perambular pelas rotas do deserto é palmilhar o próprio âmago, o íntimo da subjectividade. Há qualquer coisa de sacrifício espiritual nessa poesia, de aprendizado da alma, capazes de levar o eu lírico à agudeza da vida e das relações amorosas. Assim, a voz do deserto é, na verdade, o clamor de um outro perdido, quase esquecido:

Que voz chora por mim
no outro lado das grandes pedras? Que lamento? Que murmúrio
por entre a sombra rala dos arbustos? Talvez seja o vento: o zurzir
de um estranho vento oceânico no meu rosto enquanto durmo. Ou
talvez seja o sol, que esgarçando as longas nuvens, cai depois
a pique sobre o meu corpo. Ou ainda - quem sabe? - talvez nenhuma
dessas coisas seja, mas apenas o esquivo sibilar de um réptil no
seu ardil para me tentar

Mas não, nada disso poderá por mim chorar no outro lado
das grandes pedras. Nada, a não ser o eco dos teus olhos; o azul
desmaiado desses olhos, onde o meu sonho era um barco impossível
e as palavras soçobravam na raíz do meu desejo

Todo o deserto, toda a infinita secura das planícies de areia, são transmutadas, nesse poema, no corpo amado, nesses olhos em estado de alumbramento. A entrega acontece como uma descoberta mágica, encantada, da pulsação e da vida do outro. Tal amor precisa ser palmilhado, como se palmilha as areias do deserto. É preciso descer às profundezas do corpo amado, para alcançar a ascese final, a revelação absoluta do gozo:

Descer-te o corpo palmo a palmo
Descer-to como quem sobe ao cume do mais alto monte, como
quem encontra a firmeza de um espaço, para o qual nenhuma língua tem nome
Descê-lo ou moldá-lo, nem eu sei bem: o rosto jovem, o sedoso
peito, as coxas; descê-lo e construir o murmúrio sibilante do vento,
ou de uma boca entreaberta no rumor ofegante da tarde

Descer-te o corpo palmo a palmo
Não o corpo fardo, prisão, informe desejo que a si se basta
numa infindável corrosão de tudo, mas um corpo luz, amigo,
que, sorrindo, aquilo que o excede a mim entrega

Nesse poema, o autor consegue transformar o corpo em um terreno acidentado, no qual o eu lírico terá de descer, percorrer, caminhar, a fim de ascender às matrizes do seu próprio espírito. Dar-se ao outro é entregar-se à serenidade de si. O poeta, nesse texto, de forma sublime, traça, com uma fome de escultor, cada traço físico desse ser mágico, talhando-o com leveza e ardor: "rosto jovem", "peito sedoso", "coxas"... Uma metonímia fecha esse poema com esmerada beleza: todo o riso é o corpo amado; toda a pele, todos os poros, são um rir calmo, repleto de alumbramento. O mistério desse outro é um adentrar na noite, na falta de compreensão do mundo e do milagre de amar:

À noite as tuas palavras
não são as tuas palavras, aquelas que de dia usas, quando nem
nos conhecemos e o disfarce é um regato de água fétida por entre
os refugiados
À noite as tuas palavras são tão diferentes:
trazem-me o silêncio das coisas raras
ensinam-me a sedução dos horizontes ávidos de luz
desvelam-me o teu corpo, tão esplendorosamente branco,
no cadenciado ritmo das antigas deserções
O mesmo com os teus olhos também à noite tão diferentes:
ardem como ilhas num vasto oceano de ondas paradas,
nossa imensidão que nem nostraga nem nos salva
Enfim, à noite nada de ti coincide contigo
mas isso ninguém sabe, nem sequer tu... apenas eu que aqui
o escrevo, enquanto espero um outro anoitecer

O texto, como um pêndulo, risca o dia, delimita as luzes e as trevas e revela, no ser amado, a existência de dois seres distintos. Durante o dia, o outro amante é previsível, sereno. Somente a tormenta das trevas é capaz de acender nesse outro o mistério, a sedução fatalizante, a sina dos naufrágios e perigos. Estamos no domínio da paixão, daquele sentir terrível capaz de arrebatar nossa vida por completo, de nos levar ao estado de possessão febril, de loucura delirante, de gozo supremo. As metáforas e as comparações, tão bem talhadas, revelam a hábil artesania do poeta. Aliás, essa é uma grande virtude de Victor, a de tramar metáforas e comparações de forte poder encantatório. Dessa forma, os olhos são como ilhas de imenso oceano, águas profundas a tragar por completo o eu lírico. Os horizontes são tomados pela fome de arrebatamento, eles têm sede de luz. Essas imagens, assim como muitas outras (todo o livro é um pontilhado de metáforas vivas, repletas de uma imagética de pura inventividade), tornam o livro uma raridade preciosa.
Os poemas, conduzidos por um ritmo muito semelhante ao do poema em prosa, possui versos longos, extensos. Tal ritmo imprime lentidão ao discurso. Esse efeito é de suma importância, pois ele funciona como uma espécie de câmara lenta, com a qual o leitor vai captando as minúcias desse mundo repleto de areias, de beduínos, de cavaleiros, de pedras preciosas. O ritmo casa-se perfeitamente com o forte apelo pictórico do livro:

Às vezes também os homens
espreitam na margem do oásis, vageiam com desespero no tosco
emaranhado das dunas. Às vezes também eles, por entre os cedros,
em mim desenham um estranho mistério: falam alto, gesticulam...
São suas vozes uma ave inusitada no azulado entardecer do deserto.
Mas eu finjo nem perceber

É no longe o que procuro
bem no centro dessa paisagem, no macio regaço dos povos nómadas,
onde as caravanas se balanceiam sem nunca se deterem
O meu lugar é um minúsculo e límpido poço, todo rodeado
de seixos, para lá do ocre de tantos palácios antigos - é o lugar onde
não sou, um estilhaçado vitral que ninguém vê, mas que liberta

O não ser, no livro de Victor, tangencia a totalidade das paixões. É preciso, portanto, ao modo de Pessoa, perder-se para encontrar-se, fugir para cair no próprio ser. Roteiro pontilhado de oásis, repleto de paixões e mistérios, "Pelo deserto as minhas mãos" é uma aventura pelos escaninhos da própria palavra, pela poesia, enfim, feita de magnitude e sublime encontro com o outro, esse ser a fervilhar nossos desejos.

    Alexandre Bonafim in " O Silêncio de Orfeu ", Biblioteca 24 Horas, São Paulo, 2011, pp 94 - 99.
.

19/08/11

Acerca de... ( VI )

.
Estava fora do país quando o Victor, de quem tenho a honra e o privilégio
de ser amigo, me pediu para fazer a apresentação de "Regresso", tendo-me
enviado por e-mail os poemas e a eles juntado umas simpáticas linhas nas
quais indicava ser de sua vontade que eu estivesse hoje aqui a falar sobre
o referido livro.
Nem queria acreditar! Pensei que se tratasse de um engano.
O que levaria um poeta com a qualidade e o vigor do Victor a pedir-me que
falasse da sua poesia e dos seus poemas?
Geralmente a tarefa de apresentação de obras poéticas é indicada a quem
sabe e estuda poesia e não a quem vive e ama a poesia, aludindo-a como
livre e longe, epítetos capazes de compreender a existência humana:
Longe na distância que separa o poeta dos outros, de uma sociedade que
ajuda a construir, mas da qual se afasta por amor e, muitas vezes, por lágrimas;
Livre, porque há no poeta a certeza de tocar as consciências futuras, cons-
truir sedosos caminhos sem barreiras, permanecendo quieto, devolvendo o
movimento à ignorada beleza das palavras.
Aceitei o desafio! Aqui estou, agradecendo ao Victor este convite, felicitan-
do-o pelos poemas e a todos pedindo desculpa e compreensão para as
fracas e poucas palavras que posso e sei dizer sobre "Regresso".

A poesia, não é recordação, é uma presença feminina importante, o contrá-
rio do poeta, por isso ele próprio - o lado mais visível da saudade!
Com a poesia - e através do poema - aprende-se a Humanidade, o desejo
e a sua lei, a entrega, o abandono, o convívio com o abraço que nos não
quer, mas ao qual desejamos sempre regressar... Aprende-se a ser devol-
vido, constantemente, ao amor da infância, à posse dos lábios detidos na
memória e no medo. A vida passa a ser feita de ilusões, de actuais e an-
tigos sentimentos, de uma troca amorosa constante, de rios doces e ocea-
nos salgados, de permanecermos e de partirmos... sempre.
REGRESSEI a Lisboa, contactei o Victor que me confirmou a vontade
verdadeira que fosse eu a falar do seu livro de poemas. Infelizmente tive
de o ler em folhas de papel, soltas... o livro físico ainda não existia!
REGRESSO - esta é a primeira pessoa do Presente do Indicativo de ver-
bo "regressar"? Ou não será antes um substantivo? Encontraremos, neste
livro, substâncias psicológicas ou momentos de uma dada acção? Deixo
aqui estas interrogações como base de possíveis linhas de leitura!

A competência da poeticidade de "Regresso" declara o reflexo intelectual
na vivência dos dias. Os poemas afirmam-se num corpo, no mundo rece-
bido através dos sentidos.
A poesia de Victor Oliveira Mateus ensina-nos o poema como semente
aquecida no coração da memória, resgatada pela alma, oferecida e alimen-
tada pelo corpo. Comovem-me as palavras, as letras, a ética do poema
e o que me traz aqui também são as imagens de Turim, que tenho gravadas
na memória e que neste conjunto de poemas redescobri: no leito do rio Pó,
na Praça San Carlo, na Diagonal que corta a cidade ou na via Roma... Em
tempos vivi em Turim, onde leccionei, agora regressei-lhe pela voz de um
sujeito poético habitado pela cidade, pelos destinos de sombras imacula-
das, de noites perpétuas e artificiais, de paisagens inabitadas, de lugares
vazios de lembrança, de caminhos frios e ininteligíveis, de espaços de aban-
donos prometidos, de largos, praças esquecidas, palácios-museus, de es-
pectros estranhos, de uma lívida imagem presente, de mosteiros e conven-
tos, abadias de morrer, de silêncios no silêncio, de braços imateriais...
A memória persegue o sujeito do poema, nela, este procura a unicidade
na extravagância das diferenças, da mesma forma que essa Itália unida
e transformada em nação por Vitorio Emanuel e Garibaldi, se mantém
diversa nas suas culturas, línguas, modos de ser... O indivíduo busca a sua
singularidade, deparando-se com a multiplicidade, deparando-se com
esse ser muitos a regressar ao mesmo! Nesta condição, poema, poesia
e poeta transportam, nas mesmas águas, um não sei quê de estar ali
não estando, sendo o oposto também verdadeiro. Assim, creio que existe,
em "Regresso", um persistente fio condutor que é, afinal, a grande preocu-
pação do autor, latente em toda a obra - a questão da busca total do sen-
tido da Vida, e isto com uma visão intensamente envolvente, porque cor-
poral, espiritual e mental.
Regressar não é voltar a um local, nem mesmo a um estado de alma, ou
revisitar sensações (o sujeito da enunciação dá-se conta da completa im-
possibilidade de regresso a um tempo pretérito!), regressar é tornar futuro
o já passado, tentando que este se espelhe no presente! Regressar é o
movimento que tenta contrariar a insofismável verdade da inexistência do
tempo; esta tentativa de demonstrar a inexistência do tempo, que a língua
teima em marcar... : faz-nos voltar de novo onde o pretérito já foi e será
(também) futuro! O regresso é também um movimento filosófico cheio de
novidade, curiosidade, mobilidade psicológica - Vida! De tanto regressar-
mos construímos a nossa própria história, a consciência, a saudade. Assim,
se constantemente soubermos regressar, adiamos a morte! Pois voltarmos
aos braços, e lábios, de um amante pode ser a prova que vamos tentando
fixar na memória o futuro de um corpo desnudo que, com o tempo, se des-
vaneceu, e que agora se nos dá transformado numa realidade não tangível.
Um dia, a escritora Isabel da Nóbrega ensinou-me como avaliar uma obra
poética, dizendo: "se no final da leitura, por um impulso inexplicável, te pu-
seres em pé, então estás em face de um bom livro, de uma esplêndida obra
literária!" É por isso que, de pé, aplaudo o "regresso" de Victor Oliveira
Mateus a mais um livro de poemas.
Muito obrigado!

 Henrique Levy, texto de apresentação do livro "Regresso", Lisboa, 27 de Novembro de 2010.
.

18/08/11

Acerca de ... ( V )

.
Começo por felicitar a Editorial Labirinto pela iniciativa de publicar
este belo livro de poesia da autoria do poeta Victor Oliveira Mateus
trazendo até nós, deste modo, o irresistível canto de sereia de Angélica
Ionatos, consubstanciado nas palavras inspiradas do poeta.

Nesta obra damo-nos conta da feliz união da voz da cantora grega com
a palavra mágica do poeta Victor Oliveira Mateus, que parte em deman-
da da ilha encantada de Citera onde, supostamente, a dourada Afrodite
o aguardará com os seus mistérios. A voz é aqui a criatura e a escrita,
o mineral de que se faz o sonho e o pensamento. O poder e o estatuto
da voz é também propriedade do poeta, que sujeita o seu texto ao po-
der dessa mesma voz, o local de partida é incerto, mas o de chegada é
a outra margem do mar, é Citera; a intenção é clara: " um roteiro reve-
lando novos mares, outros países para que neles possa partir e não mais
voltar". É, portanto, uma viagem sem regresso.

O tema da viagem, do périplo e da ilha, glosado por poetas da grandeza
de Yeats e Cavafy, adquire na obra de Victor Oliveira Mateus contornos
que remetem para os níveis mais profundos do significado: a margem da
distância, do sono, do crepúsculo e da morte. Tal como nos antigos
immrama celtas, o poeta demanda uma ilha misteriosa e secreta, e rea-
liza, no seu périplo, um intenso percurso interior. O poeta sabe que esse
local procurado se encontra " para lá do vazio e da felicidade imitada",
mas quando arriba a Citera escreve: "finalmente alcançada com o teu
braço sobre os meus ombros" e, explodindo depois num delírio de sen-
timento: é em ti que me renovo, Citera.

Tal como acontece na viagem de Cavafy para Ítaca, Victor Oliveira Ma-
teus busca e encontra na sua ilha vivências e saberes. Sente o corpo e o
espírito permanentemente tomados por uma excitação rara, que contagia
quem lê a sua poesia. Chegar a Citera é um destino último. Sem Citera
nunca teria partido em busca dos segredos da vida e da morte. Compreen-
der o verdadeiro sentido de Citera é meta final da obra. A viagem é lon-
ga, aventurosa, cheia de perigos e enganos. Mas se monstros encontra-
mos é porque em nossa alma os transportamos. Serão essas "as ilhas
humanas" a que o poeta faz alusão?

Chegados a este ponto já estamos a caminho, e em peregrinação para
um não-lugar. Com o poeta vamos "esquecer o que a realidade foi e assim
construir o que ninguém alcançou". Mais adiante confessa-nos: " do que
mais gosto é do que nelas não há".

O poeta transmutou-se em veículo de Amor e de Poesia, ainda que sem-
pre sob o temor " de que possas não vir", porque ele sabe, ele já conhece
"o amor vivido e o amor buscado de que ele é cópia "; Platão também acre-
ditava que o verdadeiro Amor é afinal o amor à Sabedoria, sendo o desejo
cego um mero impulso, na infinda avidez de ser o outro.
A poesia de Victor Oliveira Mateus é portanto, ela mesma, uma irresistível
voz, prenhe de significados, até à eternização final de tudo o que fica: a obra
poética, na particular paisagem pessoal do poeta, em todas as suas modula-
ções e excentricidades ocasionais.

  Maria Lucília Meleiro, texto de apresentação do livro
" A Irresistível Voz de Ionatos", Lisboa, 31 de Março de 2009.
.

17/08/11

Acerca de ... ( IV )

.
.
Há um lugar principal na poesia de A Irresistível Voz de Ionatos, de
Victor Oliveira Mateus: o do amor, ou seja, o da "(...) terra finalmente
alcançada com o teu/ braço sobre os meus ombros." O do amor sobre-
tudo como sujeito da procura interior, viagem em cada poema renova-
da num "(...) percurso onde sempre me busco/ e busco do ser sua ní-
tida fonte."
Ao centrarem-se na ilha de Cítera, as imagens poéticas incorporam
com delicadeza a representação do alegórico, do mítico e o que neste
existe de onírico e de dimensão filosófica mas empreendem, também,
luminosas aproximações ao concreto: à inquietude, às perdas, ao de-
sejo.
A celebração do amor e seus paradoxos, Victor Oliveira Mateus fá-la
de verso para verso intensificando a dramaticidade do eu entre "essa
infinda avidez de ser o outro" e o despojamento perante " a morte pres-
sentida", em Lefteris cativo "(...) ante a imensidão do mar e o esmore-
cer do sol ", suspenso da "irresistível" voz de Angelique Ionatos. A ten-
são lírica é, no entanto, sempre vigiada, nada de excessos. Exemplo
disso, o poema 22, um dos mais belos do livro: " Nunca te pedi que
ficasses. Nem que uma qualquer/ dádiva fingisses na irremediável
mobilidade dos afectos. "
Conjugando "a beleza clássica e moderna", conforme diz Olga Savary
na contracapa, A Irresistível Voz de Ionatos reforça uma estética do
sensível, um "estilo fluido", sublinhado por Cláudio Neves no posfácio.
Trata-se de uma escrita na qual as palavras são a mágica tranquilidade
( sábia viagem) com que o poeta tem vindo a trabalhar a consciência
do texto.
.
  Maria Augusta Silva in " NS - notícias, sábado 176"
suplemento do "Diário de Notícias" de 23 a 29 de Maio de 2009.
.

Acerca de ... ( III )

.
.
Como um espia ou um detetive de afetos, abandonando-se num
tufo de metáforas, eis a periculosidade do poeta, especialmente
do poeta português Victor Oliveira Mateus. Nas asas da poesia,
Victor solta os pássaros e canta - e voa. De tudo se ocupa sua
poiesis: da pátria, sua terra e chão, o de hoje e o primitivo, do azul
do Tejo e outros azuis, mas fundamental são as pulsações da vida
e da morte, da memória, da infância (já não dizia Baudelaire que
poesia é a infância reencontrada?). Poesia deve ter carne, suor,
sangue, agonia e perplexidade, reflexão e prazer. Em seu novo
livro, Victor nos dá tudo isso, na medida certa. Aqui nada é ex-
cesso. Tudo é sóbrio, porém transborda emoção. Na batalhas
das raízes, buscando-se e buscando-nos nos abismos, esta mis-
teriosa poesia, rubro dragão a rutilar na escuridão, é toda luz, in-
trépido fulgor. Como tantos outros esplêndidos poetas portugue-
ses, Victor Oliveira Mateus atua em nós, seus leitores, com a
beleza clássica e moderna de sua lúcida poesia.
.
   Olga Savary In contracapa de "A Irresistível Voz de Ionatos", Edª Labirinto, Fafe, 2009.
.

22/01/11

Acerca de ... (II)

.

"Pelas Tuas Mãos, o Mistério da Poesia (Impressões de

Viagem, Pelas Vias da Fertilidade do Deserto Mateusiano)."

.

Motivada pela sensorial "sedução dos horizontes ávidos de luz" (p. 43) da palavra e do silêncio, manifesta-se, em Pelo deserto as minhas mãos, a Poesia como " uma lúcida desrazão que acalma" (p. 63).
Nas epifanias amorosas, os olhos da pessoa amada fazem eco, ao alcance da "primordial Alegria de quem conjuga/ amor e liberdade..." (p. 41). E isto porque, reunindo "surpresa e desejo" (p. 31), essas epifanias ultrapassam a instância da língua e ganham densidade existencial, ao reconhecer-se o ser humano como Natureza.
Daí que o poeta, desejoso também de Poesia, declara: " mas dentro dos meus olhos há mares que não domino. Mares/ anteriores às palavras. Narrativa primeira que sempre me escapa" (p. 39); trazendo, para os versos, imagens do que Félix Guattari (Les trois écologies, 1989, pp. 38 - 39) denominou "Territórios Existenciais", a integrarem as dimensões ecológicas subjectivas, ambientais e sociais, pelas quais se ressingularizam as experiências humanas. É ainda esse sentido ecológico que me parece levar o poeta a se interrogar: Que verdade tem um límpido regato (sempre às avessas consigo próprio)? Vejo-o e ao enorme oceano para que aponta. Acaso deverei eu falar de outra coisa?
O deserto, dentro e fora do poeta, promove o dizer amoroso e socializador do poema, em busca da "exuberância consentida" (p. 25) que é a vida, a fazer avançarem "os ramos" do corpo ou a conduzir a uma des-muralização, por quem lhe tem a "senha". A conjunção erótica a ser sentida e declarada pelo amante ("um pássaro degolado pelo teu corpo") completa a cena da integração ecológica entre a interioridade ( o sentimento do um-no-outro) e exterioridade (a identificação entre homem e pássaro).
Ecológicas também são as imagens da solidariedade e do engajamento mental, social, ambiental de "Como afagarei eu a terra?" (p. 37) alicerçado na vivência da alteridade, pelas veredas da compreensão da dor e do dinamismo de sobrevivência dos que passaram pelas guerras e tiveram corpo e alma mutilados.
Assim, a fertilidade do deserto, como em João Cabral de Melo Neto ("Cultivar o deserto/ como um pomar às avessas") faz brotar os mistérios do corpo no corpo do poema, a revelarem, em expressões antológicas, a "desordem do mundo" (p. 35), a desordem do corpo, a desordem do poético que, em Pelo deserto as minhas mãos, num "misto de assombro e agonia, estranho dizer" é, decerto, poesia.
.
Angélica Soares
.
Nota - A primeira obra que li, em 2003, da Profª Dra. Angélica Soares da Universidade Federal do Rio foi um interessante ensaio sobre a escrita de algumas mulheres-poetas brasileiras. A partir daí lancei-me para outros livros seus nomeadamente um sobre Álvares de Azevedo.
O artigo acima transcrito data de 2005 e diz respeito a um livro meu de 2004.
Estes textos não são parte de correspondência privada (cartas, mails, etc.), no entanto, caso os seus autores me informem eles serão imediatamente removidos.
.