22/01/11

Acerca de ... (II)

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"Pelas Tuas Mãos, o Mistério da Poesia (Impressões de

Viagem, Pelas Vias da Fertilidade do Deserto Mateusiano)."

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Motivada pela sensorial "sedução dos horizontes ávidos de luz" (p. 43) da palavra e do silêncio, manifesta-se, em Pelo deserto as minhas mãos, a Poesia como " uma lúcida desrazão que acalma" (p. 63).
Nas epifanias amorosas, os olhos da pessoa amada fazem eco, ao alcance da "primordial Alegria de quem conjuga/ amor e liberdade..." (p. 41). E isto porque, reunindo "surpresa e desejo" (p. 31), essas epifanias ultrapassam a instância da língua e ganham densidade existencial, ao reconhecer-se o ser humano como Natureza.
Daí que o poeta, desejoso também de Poesia, declara: " mas dentro dos meus olhos há mares que não domino. Mares/ anteriores às palavras. Narrativa primeira que sempre me escapa" (p. 39); trazendo, para os versos, imagens do que Félix Guattari (Les trois écologies, 1989, pp. 38 - 39) denominou "Territórios Existenciais", a integrarem as dimensões ecológicas subjectivas, ambientais e sociais, pelas quais se ressingularizam as experiências humanas. É ainda esse sentido ecológico que me parece levar o poeta a se interrogar: Que verdade tem um límpido regato (sempre às avessas consigo próprio)? Vejo-o e ao enorme oceano para que aponta. Acaso deverei eu falar de outra coisa?
O deserto, dentro e fora do poeta, promove o dizer amoroso e socializador do poema, em busca da "exuberância consentida" (p. 25) que é a vida, a fazer avançarem "os ramos" do corpo ou a conduzir a uma des-muralização, por quem lhe tem a "senha". A conjunção erótica a ser sentida e declarada pelo amante ("um pássaro degolado pelo teu corpo") completa a cena da integração ecológica entre a interioridade ( o sentimento do um-no-outro) e exterioridade (a identificação entre homem e pássaro).
Ecológicas também são as imagens da solidariedade e do engajamento mental, social, ambiental de "Como afagarei eu a terra?" (p. 37) alicerçado na vivência da alteridade, pelas veredas da compreensão da dor e do dinamismo de sobrevivência dos que passaram pelas guerras e tiveram corpo e alma mutilados.
Assim, a fertilidade do deserto, como em João Cabral de Melo Neto ("Cultivar o deserto/ como um pomar às avessas") faz brotar os mistérios do corpo no corpo do poema, a revelarem, em expressões antológicas, a "desordem do mundo" (p. 35), a desordem do corpo, a desordem do poético que, em Pelo deserto as minhas mãos, num "misto de assombro e agonia, estranho dizer" é, decerto, poesia.
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Angélica Soares
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Nota - A primeira obra que li, em 2003, da Profª Dra. Angélica Soares da Universidade Federal do Rio foi um interessante ensaio sobre a escrita de algumas mulheres-poetas brasileiras. A partir daí lancei-me para outros livros seus nomeadamente um sobre Álvares de Azevedo.
O artigo acima transcrito data de 2005 e diz respeito a um livro meu de 2004.
Estes textos não são parte de correspondência privada (cartas, mails, etc.), no entanto, caso os seus autores me informem eles serão imediatamente removidos.
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